quarta-feira, 27 de março de 2013

O Cristo de Carl Dreyer

Carl Theodor Dreyer figura entre os cineastas de minha preferência. Poucos filmes terão me impressionado tanto e de forma tão marcante como o comovente O martírio de Joana d'Arc (La passion de Jeanne d'Darc, 1928). Quanto o vi pela primeira vez, tomado de emoção diante de uma arte absolutamente desconcertante, com seus planos-sequências longos e lentos, mas sobremaneira os closes como só mesmo Ingmar Bergman seria capaz de fazer iguais, procurei conhecer mais esse cineasta dinamarquês movido a fé e incontido sentimento trágico da vida.
 
Só então deparei com curiosidades não raro chocantes. Para que o leitor possa ter uma ideia do que estou dizendo, aqui vai uma delas: Dreyer era um diretor tão perfeccionista, de tal modo obcecado com a busca de resultados exatos para os seus filmes, que, para emprestar um naturalismo irretocável à personagem de Joana d'Darc, manteve em cativeiro, privada de qualquer conforto ou alimentação satisfatória, assistida apenas nas necessidades mais básicas, a atriz Maria Falconetti. Se obteve desse rigor doentio uma interpretação cênica jamais superada (o martírio de Joana d'Arc foi filmado em incontáveis versões), contudo, é dramático o que ocorreria à bela atriz, que enlouqueceu ao final das gravações e nunca mais voltaria a gozar de saúde mental.
 
Quanto ao artista, deixados à parte tais excessos, pelo que viria a ser muitas vezes condenado, é mesmo extraordinário. Um de seus outros filmes, A palavra, é literalmente uma coisa de louco, uma dessas raríssimas obras do cinema capazes de nos tirar o fôlego, de nos deixar mudos diante da grandeza artística com que Dreyer nos contou uma história a um tempo tão simples e tão esplêndida: um fazendeiro viúvo, mora no campo com seus três filhos. O primogênito é ateu, o mais novo se apaixona perdidamente pela filha de um alfaiate, mas é impedido de levar adiante o romance, pelo pai, por se tratar de uma moça que segue outra religião. O do meio, personagem central do enredo, entra para um convento, dilacerado de dúvidas quanto ao verdadeiro sentido da fé, enlouquece e passa a achar que é Jesus Cristo. No final do filme, quando a esposa do irmão mais velho morre em trabalho de parto, ele incorpora os poderes de Cristo e a ressuscita. A palavra, pois, é uma obra de arte profunda, complexa, inquietante, sobre a crença, o sentido da religião e os limites da natureza humana.
 
A beleza da película, com sua fotografia em preto e branco inigualável, o ritmo angustiante e sedutor de sua narrativa construída com um domínio de linguagem poucas vezes atingido no grande cinema, associados a uma determinação em professar de modo convincente a palavra de Jesus Cristo, fazem da arte de Carl Theodor Dreyer um caso singular, em que pesem as limitações dos meios à época em que foi realizada.
 
Tocado pelo clima da Semana Santa, dediquei-me esses dias a ler um roteiro inédito do diretor dinamarquês intitulado Jesus de Nazaré. Que coisa maravilhosa! Imagino o que seria o filme, com o seu poder incomparável de tocar o mais profundo da alma, de nos tornar mais humanos, mais em sintonia com os valores cristãos professados, no caso, nesses escritos tão sábios e enriquecedores de Carl Theodor Dreyer. Que pena tenha morrido antes de fazer o que, estou certo, seria o seu mais belo filme.
 
Feliz Páscoa!
 
 
 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Clube da esquina 2

As pernas já não atendem com desenvoltura ao comando da mente. Ele, como que se arrasta por toda a extensão do palco e a barriga, protuberante, faz contraponto com o rosto já quase desfigurado pela doença. Ouvidos os primeiros acordes, contudo, e a voz explode, possante, inconfundível, espalhando-se pelo imenso bosque, bem no coração da Pampulha. Ao seu lado, a fina flor da música popular mineira, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Tavinho, Wagner Tiso, Fernando Brant, para falar de alguns nomes de que me recordo no momento em que me sento para escrever a coluna de hoje.
 
Refiro-me, está claro, a Milton Nascimento, o Pituca, que esta semana veio a Belo Horizonte para a festa dos 40 anos do Clube da Esquina 2, um dos movimentos de música popular de maior personalidade e mais força criativa dos anos 70, nascido entre as montanhas desta cidade tão exuberante e tão singular, artística e intelectualmente falando. O cenário, como ficou sugerido, vem a calhar, o campus da UFMG, tomado, em sua assustadora maioria, de gente nova, garotos e garotas que sequer tinham vindo à luz quando esses mineiros se reuniam, numa esquina de rua, para produzir coisas extraordinárias do cancioneiro brasileiro, a exemplo de músicas inesquecíveis, como Cais, Um girassol da cor do seu cabelo, Trem azulNada será como antes, Paixão e fé, Nascente, Olho d'água, Maria Maria e tantos sucessos da maior qualidade estética da segunda geração do Clube.
 
O nome do movimento, pois, vem do fato de que esses artistas, quase meninos, não tendo espaço mais adequado para fazer arte (grande arte, diga-se de passagem), sentavam-se na calçada de uma esquina, violão grudado ao peito, para tirar de suas cordas sons que misturavam linhas estéticas diversas, fundindo a batida suave da Bossa Nova a elementos do jazz e, não raro, do rock'n'roll.
 
Mas a poesia, que o movimento tem o seu viés literário não menos inspirado e original, dava-nos pérolas de que nenhum amante da MPB pode um dia esquecer: "Para quem quer se soltar invento o cais / Invento mais que a solidão me dá / Invento lua nova a clarear / Invento o amor e sei a dor de me lançar / Eu queria ser feliz / Invento o mar / Invento em mim o sonhador / Para quem quer me seguir eu quero mais / Tenho o caminho do que sempre quis / E um saveiro pronto pra partir / Invento o cais / E sei a vez de me lançar".
 
Ao final do show, cuja duração de quase três horas quase ninguém percebe, Milton se despede, sorriso largo e solto, a expressão mesmo de um deus, mas não resiste ao pedido de bis que sai da multidão como um coro ensaiado, e abre o peito em direção ao sem fim de um céu esplendidamente  enluarado: "Eu simplesmente não consigo parar / Lá fora o dia já clareou / Mas se você quiser transformar / O ribeirão em braço de mar / Você vai ter de encontrar / Aonde nasce a fonte do ser / E perceber meu coração / Bater mais forte só por você / O mundo lá sempre a rodar / E em cima dele tudo vale / Quem sabe isso quer dizer amor / Estrada de fazer o sonho acontecer".  O resto, só emoção e saudade.