quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O amor de Lota e Bishop

No teu cabelo negro brilham estrelas/cadentes, arredias./Para onde irão elas/tão cedo resolutas?/ -- vem, deixa eu lavá-lo,  aqui nesta bacia/amassada e brilhante como a lua.
                                                  (Bishop, para Lota, em Banho de Xampu)
 

Tecnicamente perfeito, Flores Raras, o filme de Bruno Barreto em exibição nos principais cinemas da cidade, é a grande novidade cinematográfica do ano. Ambientado no Rio de Janeiro a partir de inícios dos anos 50, narra o avassalador romance entre a arquiteta Maria Carlota Costellat Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop, um protótipo de relação homoafetiva que duraria algo em torno de 20 anos e teria um desfecho trágico em 1967, com o suicídio de Lota, como era conhecida a artista brasileira, em Nova York.
 
Dito assim, todavia, o resumo acima não é bastante para dar uma ideia de como Barreto encontrou caminhos para ir além do que poderia ser apenas mais um filme bem feito sobre relacionamentos homossexuais. É preciso lançar o olhar para o fato de que Flores Raras vai muito além disso: realizado a partir de um roteiro extremamente bem construído, uma direção de atores que beira o sublime e uma fotografia de tirar o folego, para o que é decisiva a beleza natural de Petrópolis, onde se localiza o sítio Santarém, onde o casal passa a viver desde a chegada de Bishop ao Brasil, o filme de Bruno Barreto resgata uma história de amor que envolve duas mulheres extremamente talentosas. Mas o faz com um rigor de pesquisa que torna o filme um documento importante sobre a história do país entre os anos 50-60, momento em que, entre outros acontecimentos marcantes, sobressai o golpe militar de 1964. A cena em que Bishop, enquanto ouve a notícia pelo rádio, acompanha através da janela rapazes, indiferentes, jogando uma pelada nas areias de Copacabana, exemplifica bem a sensibilidade com que Barreto acrescenta a Flores Raras um tempero político: "Que país é este em que um presidente eleito pelo povo é deposto e os homens se divertem na praia?" (cito de memória), pergunta a personagem a uma dada altura do filme.
 
O comentário de Elizabeth Bishop sobre a indiferença dos brasileiros frente às questões políticas do país, felizmente postas por terra com as manifestações de rua no mês passado, serve, contudo, para evidenciar o olhar arrogante da escritora acerca das nossas muitas mazelas. Para ela, como é possível conferir na bela apresentação que Paulo Henriques Britto faz para Os poemas escolhidos de Elizabeth Bishop, editado pela Companhia das Letras, "como país o Brasil não tem saída  --  não é trágico como o México, não, mas apenas letárgico, egoísta, meio complacente, meio maluco". Verdade à parte, o que não atenua a indelicadeza de quem foi recebida com todas as honras pelo brasileiros, sabe-se que Bishop não poupava palavras em seu desânimo contra o Brasil, notadamente o Rio de Janeiro, sobre cuja cidade fez ainda uma declaração impiedosa: "Todas as multidões, ônibus, bondes, lojas, cozinhas são tão sujos, escuros, sebosos!". Ou sobre a vida cultural dos brasileiros: "Os prazeres intelectuais são poucos e pouco sérios, de modo geral!". Alguma admiração da poeta acerca do Brasil, se há, vem sempre embalada por uma surpresa em face do exotismo do país. É assim que reage, também, quando é hora de se referir, como um profeta, aos nossos homens de letras (e um político notável), como Carlos Lacerda, grande amigo de Lota: "... honesto, sim, mas ele tem um ego grande demais e provavelmente vai acabar como um político cínico dentro de dez anos". A história viria a confirmar.
 
Bruno Barreto, embora explorando com sutileza o espírito cáustico de Bishop, de quem omitiu em grande parte a mordacidade das críticas dirigidas aos brasileiros, construiu a personagem com notável rigor, emprestando-lhe, a exemplo do que fez com o perfil psicológico de Lota (irrepreensivelmente interpretada por Glória Pires) uma densidade que torna o filme exemplar do ponto de vista dramático. Ao que se soma, como dissemos, uma composição de quadro irretocável, em que a textura da imagem e os efeitos de luz (o colorido é sedutor) fazem sobressair uma direção de arte digna de nota. Vale conferir.
 
 
            
            
           

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O cinema em crise

Vira e mexe leitores do blog implicam com o fato de escrever tanto sobre filmes antigos, e não "novos", como gostariam. Decido, hoje, justificar o que esperava fosse desnecessário: Não se fazem filmes como os de antigamente. Ou muito pouco. Refiro-me, para ser mais claro, à produção dos anos 30, 40, 50 e, vá lá, 60,  até onde termina a fase áurea do cinema francês, a Nouvelle Vague, sobretudo, com a presença incontornável de François Truffaut. Sem esquecer, óbvio, um certo Godard, Eric Rohmer e Claude Chabrol. Depois desses, é Claude Lelouch quem me encanta, nomeadamente o cineasta de primeira hora. Gente da estirpe de Bergman, Rossellini, Kurosawa...
 
Por oportuno, vindo das mãos de L. G. de Miranda Leão, meu mestre e amigo querido, li outra dia um belo comentário de André Barcinski sobre o assunto. O conhecido crítico chama a atenção para o que pode explicar a pobreza do cinema de hoje, esses que lotam as salas mundo afora: "Filmes eram feitos para cinema. Ninguém achava que o filme seria visto e depois revisto em VHS, laser-disc, DVD, Blu-Ray, TV a cabo, internet etc." Está certo.
 
Nada contra o acesso fácil e barato aos filmes, diga-se em tempo. Ninguém mais que eu haverá de rever com tanto entusiasmo os clássicos de todo gênero do velho cinema. Mas a ampliação do mercado, claro, com os meios de reprodutibilidade técnica a que se referiu Walter Benjamin em ensaio obrigatório, se por um lado socializou o acesso às grandes obras, por outro, como advertiu Adorno, ensejou o fortalecimento da Indústria Cultural.
 
Dos anos 70 à atualidade, passou-se a fazer cinema com os olhos na bilheteria, como informalmente já ocorria com parte da produção cinematográfica do passado, Hollywood à frente. A partir daí, tornou-se comum a realização de pesquisas a fim de saber o que o público gostaria de ver, do que resultou a produção de filmes de categoria inferior do ponto de vista estético. Como lembra Barcinski, "o cinema virou um grande saguão de aeroporto, igual em toda parte."
 
Em atenção ao protesto dos leitores, todavia, devo evidenciar que vejo e revejo os bons filmes do que se pode considerar o cinema "moderno". Nesse sentido, embarco com o que afirmou certa vez um importante crítico americano morto ano passado: "O que há é filme bom e filme ruim." Bate. O resto passa a ser secundário.
 
Essa semana, a propósito, revi Blade Runner (O caçador de androides), o filmaço dirigido por Ridley Scott, com Harrison Ford no papel principal. Trata-se de uma parábola de ficção científica levada a efeito com um rigor estético e um poder de imaginação dignos de nota: a história de seres sobre-humanos criados pela engenharia genética que se voltam contra seus criadores e ameaçam a população de uma grande cidade americana. Algo muito próximo do que se pode ver como uma metáfora maravilhosa sobre o destino dos homens na era pós-moderna, um mundo fragmentado e descontínuo que não sabemos aonde chegará. Como se vê, mesmo em se tratando do dito cinema comercial, é possível fazer coisas boas. Em termos cinematográficos, aqui está um exemplo.