domingo, 20 de maio de 2018

Viagem à Escandinávia

"Ela é viva, inquieta, contraditória, animal, carnal. Ela é plena, dessa plenitude Harriet Andersson dá conta com tanta desenvoltura que não é de estranhar que Bergman tenha feito dela sua musa quase ao primeiro olhar".

São as palavras do crítico Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo, sobre a personagem central de "Mônica e o desejo", 1953, de que recordo mal sinto os pés pisarem o solo da Capital sueca.

Vívidas, apaixonantes, vêm-me à mente imagens clássicas do cinema: o olhar perdido no vazio do mar imenso, de Greta Garbo, em "Rainha Cristina", altiva, sedutora, deslumbrante. E Anita Ekberg, linda, transgressora, adentrando as águas da Fontana de Trevi com Marcello Mastroianni, em "La Dolce Vita", de Federico Fellini. E Ingrid Bergman, nos closes inigualáveis de "Casablanca". E, Liv Ullmann, atormentada sob as sombras da neurose, em "Persona", de Bergman.

Que cinéfilo, como eu, não terá plasmado seu amor pelo cinema nas estrelas dos grandes filmes, Greta Garbo, Anita Ekberg, Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Harriet e Bibi Andersson, Britt Ekland, Ann-Margret e tantas outras atrizes nascidas neste país sobre cujo solo meus pés caminham pela primeira vez, nesta bela manhã sueca.

É maio, início da primavera na Escandinávia, mas o frio ainda é intenso, cortante, enquanto Ticiana e eu percorremos, tomados de espanto, as ruas desta cidade fantástica e de uma vitalidade contagiante...

Inevitável pensar como países assim puderam passar de pobres, para os padrões europeus, para liderar os mais elevados níveis de desenvolvimento, os números mais impressionantes de qualidade de vida, de educação, saúde, segurança... de justiça social, de direitos plenos, de renda pessoal e de harmonia entre as pessoas.

Enquanto os meus olhos se encantam, o coração aperta com a recordação de minha terra, da realidade do meu país longínquo, tão triste e revoltantemente explorado, usurpado, vilipendiado pelas forças do atraso e da desfaçatez.

Aqui, quando estamos a poucos dias da abertura da Copa do Mundo, lembro de que o Brasil conquistou o seu primeiro título mundial, em 1958, pelos pés de Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Bellini, Vavá, Zagallo... Pelas mãos de Gilmar!

Aqui, pela primeira vez na história do cinema, filmaram-se seios nus, os seios de Ulla Jacobsson, em "A última felicidade", de Arne Mattsson, por volta de 1951.

No táxi, que me leva ao teatro ao longo de tantos anos dirigido por Ingmar Bergman, Ticiana e eu comentamos a beleza chamativa das mulheres, essas deusas de olhos acesos a transitar, com passos de garças, os paradisíacos parques que cobrem de verde-cana áreas imensas da cidade.

As mulheres das quais se forjou o mito da sexualidade licenciosa e insaciável, a fome de amor de que nos falou o escritor português Fernando Namora em "Os adoradores do sol", libertas e soberanas, que tiveram forças para conquistar do homem a independência e o direito de cometer, como ele, os mesmos erros da concupiscência e do erotismo desenfreado, e, no entanto, "sonham com toureiros castigadores e com árabes ciumentos".

Estocolmo, 8 de maio de 2018
















Enviado do meu iPad

quinta-feira, 10 de maio de 2018

As Boas Mulheres da China

Vejo no jornal estatística atualizada da violência contra a mulher no Brasil. São números assustadores.

Há coisa de uns cinco, seis anos, uma amiga de Piracicaba recomendou que eu lesse As Boas Mulheres da China, da jornalista Xinran. Passado tanto tempo, contudo, lembro com detalhes do livro e do impacto que me causou. 

Quando sento à frente do computador para escrever a coluna de hoje, vêm-me à mente alguns dos depoimentos que fazem parte da narrativa, e que ainda repercutem em mim sempre que sou levado a refletir sobre a violência praticada contra mulheres no mundo inteiro. 

O livro nasceu do conjunto de entrevistas realizadas por Xinran num programa de rádio com nome delicado e poético: Palavras na Brisa Noturna, no qual, a então jovem jornalista, dedicou-se durante oito anos a discutir questões femininas que poucos teriam a coragem de tratar, num país curvado ao peso de tradições culturais milenares e num contexto profundamente machista e autoritário. O que resulta dessas conversas, ao contrário da delicadeza e poesia do título, é aterrador. 

Impossibilitada de publicar o livro na China, Xinran, nascida em Pequim, em 1958, teve de abandonar o país e se fixar em Londres, onde As Boas Mulheres da China pôde finalmente ser lançado. No Brasil, sairia pela Companhia Das Letras. 

Com sensibilidade, prudência e um senso de realidade que viriam a constituir um dos aspectos mais notáveis do livro, conferindo-lhe uma densidade poucas vezes alcançada sobre um tema nem sempre tratado com a devida atenção, Xinran foi tomando esses relatos, pontuados de sofrimento, desilusões, opressão, tristezas de toda espécie, para edificar uma obra que o mundo inteiro deveria ler. 

São mulheres dilaceradas pela brutalidade masculina, num país que se vangloria de ser hoje a segunda maior potência econômica do mundo. Estupros, casamentos forçados, práticas perversas a fim de proporcionar o prazer sexual do homem, tudo no livro é bastante para gerar a indignação do leitor. Casos como o de Hongxue, para ficar num exemplo, a mulher que se descobriu para o afeto não pelas carícias de mãos humanas, mas pelas patas de um inseto. 

A violência contra a mulher chinesa, já não bastassem as informações culturais transmitidas de uma geração a outra, começa muito antes do nascimento. A política de um só filho, estimulada pelo governo, vem resultando num desequilíbrio brutal entre homens e mulheres, numa população que passa hoje de 1,3 bilhão de pessoas. Esta a razão por que os abortos se dão no país de forma seletiva, isto é, quando os exames de ultrassom indicam o sexo feminino do bebê durante a gravidez. Muitas mães fazem o aborto para se livrarem de fetos do sexo feminino. 

Estatísticas dão conta de que 25 milhões de rapazes estão em idade de casar, mas não encontram com quem. Isso tem levado ao aumento da violência contra a mulher, sequestros e comércio de meninas e adolescentes, bem como ao crescimento da prostituição. 

Se as mulheres na China, desde a Revolução de 1949, livraram-se dos chamados "pés de lótus" (ataduras eram violentamente apertadas a fim de impedir que crescessem), que lhe garantiam "beleza, fidelidade e submissão ao homem", ainda hoje o estupro é fato recorrente no país em proporções gritantes. 

É triste saber que a realidade do Brasil hoje, nos quatro cantos deste imenso país, não difere muito da realidade chinesa. E, por absurdo, parece vir se tornando pior.