Imagine uma mulher culta, capaz de se comunicar com total desenvoltura em pelo menos oito idiomas. Imagine mais: admita que ela seja versada em filosofia, alquimia, matemática etc. Que seja uma extraordinária articuladora política, que trace planos de enfrentamento capazes de deixar desnorteado o maior inimigo. Imaginou? Vá mais um pouco, pense-a dotada de um poder de argumentação desconcertante, comerciante fina, sedutora, irresistível à cama. E líder respeitável, política astuta... Pensou? Mulher dos sonhos? O tipo pós-moderno, com mil maneiras de agradar aos homens? Apenas uma amante exemplar? Não. Estou falando de uma mulher que viveu no Egito de 20 séculos atrás, Cleópatra, a rainha imortalizada por pintores, biografada por escritores de extrações as mais diversas e levada para o cinema com ninguém menos no papel que Elizabeth Taylor, o mito das telas falecido há poucos dias.
É que acaba de chegar às livrarias uma nova biografia da rainha, Cleópatra, da jornalista Arlete Salvador. Um livro leve, de estilo solto e linguagem sedutora, sem rompantes de erudição quase sempre desnecessários no gênero. Li e gostei, recomendo aos leitores, pelo que traz de inovador em relação a muitas das biografias até aqui conhecidas, quase sempre dedicadas a traçar um perfil de mulher vulgar e signo do erotismo mais condenável. Não. A mulher que nos apresenta Salvador é muito mais que uma fêmea com furor uterino e depravada, destruidora de lares e vidas. A Cleópatra que vem à tona nessa biografia fascinante é uma mulher possuidora de qualidades (imensas!) e defeitos, não raro mergulhada em dúvidas, inquietações e desejos, como qualquer mulher dos dias atuais. Um livro bem humorado, lúdico, no sentido de ser capaz de colocar o mundo em stand by até a última página. Um gozo.
Com relação a isso, e tocado pela repercussão da morte de Taylor, revi o filme de Joseph Mankiewicz, que é mesmo um clássico, em que pese ir na contramão do que defende com segurança Arlete Salvador, pelo menos em alguns aspectos da homenageada, a gratuidade do seu erotismo (tome-se o termo gratuidade no sentido negativo) e a beleza distante anos-luz da atriz que a imortalizou no cinema, por exemplo. Cleópatra, segundo a pesquisa levada a efeito por Salvador, é mais, muito mais para feia. Boca murcha, queixo demasiado longo e um nariz acentuadamente adunco. O que a tornava, então, uma mulher poderosa, capaz de levar homens à ruína? Talvez o fato de, numa época em que a submissão feminina era supostamente o atributo indispensável para que uma mulher fosse considerada desejável, ter sido diferente, altiva, rica em conteúdo intelectual, dona do seu nariz. Numa palavra, independente.
Quanto ao filme, é mesmo esteticamente maravilhoso. Um exemplar perfeito, claro, do cinema monumentalista, em que tudo é grandioso, produção, cenários, locações e elenco. Não é muito lembrar, para os esquecidos, que nos papeis principais, além de Taylor, estão Richard Burton e Rex Harrison, impagáveis. Se a película beira o exagero, o barroquismo aparentemente cafona e de mau-gosto, tudo prende-se ao gênero, mais um espetáculo de ação que um filme de ideias. Detalhe curioso: Cleópatra é um divisor de águas na história do cinema. O fracasso de bilheteria deu um basta a essa concepção fílmica, só recentemente retomada com Gladiador, Troia e Robin Hood. Fico com Cleópatra, o filme e a rainha.
O texto, em sua versão anterior, apresentava, por desatenção do autor, um erro de concordância grosseiro, pelo que me desculpo.
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