Acho que todo homem, cedo ou tarde, vive uma experiência semelhante, quase sempre quando a memória de sua vida vai se esgarçando com o passar do tempo, e suas lembranças perdendo-se entre a névoa do envelhecimento que se anuncia. É quando percebe que a vida de todos nós é feita de passado, que o que chamamos de futuro é algo improvável, que sequer sabemos se um dia vai acontecer, tornando-se uma realidade.
"Quem vive de passado é museu!" Quem nunca terá escutado o tolo chavão? E, no entanto, nem se percebe que, concluída a afirmação, isso já é passado, única possibilidade de ordem factual. Está na Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel: - "O agora já deixou de sê-lo quando é nomeado, já é passado."
Desde cedo, por curioso, seduziram-me as obras que tratam da vida pretérita, biografias, autobiografias, memórias. Fascina-me o desabrochar das lembranças, o trazer à mente aquilo que se viveu, os amores, os lugares em que se esteve, os perfumes e as sonoridades, as emoções que um dia tomaram conta de nós.
Tenho o hábito de ler esses escritos. Lembro-me como foi uma experiência impactante ler o livro de Proust, ora referido. Ou Minha formação, de Joaquim Nabuco; Navegação de cabotagem, de Jorge Amado; Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; Tempo morto e outros tempos, de Gilberto Freyre; Meu último suspiro, de Luis Buñuel; A soma dos dias, de Isabel Allende; Minha vida na arte, de Constantin Stanislávski; Confesso que vivi, de Pablo Neruda; Minha vida, de Hermann Hesse e, um livro diferente no gênero, Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Gustav Jung, para falar dos que me ocorrem enquanto escrevo estas linhas.
Sou um saudosista assumido. Toca-me a etimologia do verbo recordar, do latim recordari, re = novamente + cord = coração, ou seja, trazer de volta ao coração. Sou um proustiano convicto. Provocam-me sensações incomunicáveis o cheiro inesperado de um perfume, a audição de uma música antiga, o sabor de uma comida há muito tempo experimentada.
A chuva, o céu plúmbeo de um entardecer, o cheiro da terra molhada, os traços de um rosto, um simples gesto de alguém que passa, um movimento de mãos, e eis o passado de volta, fazendo-se presente, este "isto" impossível de que nos falou Jacques Derrida.
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