terça-feira, 19 de julho de 2011

Perdas e danos

O último plano de Perdas e danos, o belo filme de Louis Malle, mostra a atriz Juliette Binoche desfocada, intencionalmente desfocada. É que o diretor lançou mão do que, em linguagem cinematográfica, chama-se de "câmera subjetiva". O recurso é utilizado para mostrar o ponto de vista de uma personagem. No caso, a personagem é Stephen Fleming, um integrante do parlamento inglês, com reputação intocável, que vive uma experiência amorosa que o leva à ruína. E onde entra a questão da câmera subjetiva? Vejamos.

Anos depois de terminada a relação, que o levara a viver um drama pessoal de proporções monstruosas, Fleming (Jeremy Irons) encontra Anna, a ex-amante, num aeroporto. Diz ele, "ela não era nada diferente de outra qualquer". É aí, pois, que entra a genialidade de Malle, o diretor do filme. Na cena final, fixando o olhar numa foto dela na parede, Fleming não a vê mais com nitidez, a imagem aparece esgarçando-se. É que as lembranças da mulher por quem fora capaz de mergulhar de cabeça, numa história de amor e sexo que jamais pensara terminar um dia, foram perdendo o foco, tornando-se vagas como a imagem dela que visualiza no presente.

Na vida dos amantes, é assim. A imagem fora de foco, que na arte serviu para interesses da subjetividade narrativa, vai surgir um dia. E aos poucos, tentamos fixar em pensamento a imagem do objeto amado. Mas a imagem da pessoa, por quem juramos dar os dedos das mãos, por quem seríamos capazes de dar as mãos... vai se apagando, lentamente, como a imagem de Anna na sequência final de Perdas e danos. E você demora um tempo para entender isso, para compreender que a pessoa "não era nada diferente de outra qualquer". É que os olhos dos amantes veem aquilo que não se pode ver, o que nunca existiu na proporção exata da nossa imaginação.

Esse 'apagamento' da imagem, que os pintores da Renascença chamavam de sfumato, vai eliminando as linhas do contorno, e o que vemos, agora, é apenas uma mancha, como se estivéssemos perdendo a perfeita visão das coisas. E, no entanto, é o contrário disso. Estamos retornando à realidade. De olhos vazados, é que Édipo pôde ver com clareza o que lhe reservara o destino. E, assim, reconstruir aquilo que a paixão destroçara. Como Fleming, na solidão e no abandono do seu quarto, depois de tantas "perdas e danos". A vida, para ele, vai recomeçar ali.

3 comentários:

  1. "...Foi benigno, desta vez muito mais com o amor do que com a coisa amada...". O sfumato pode se dar ao ser amado, já ao amor...

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  2. Ao amor... Isto me faz lembrar um poema de Tarkovski, poeta e pai do cineasta famoso: "Ontem fiquei esperando desde manhã,/eles sabiam que não virias, eles adivinhavam./Lembras como o dia estava lindo?/Um feriado! Eu não precisava de casaco./Você veio hoje, e aconteceu/que o dia foi cinzento, sombrio,/e chovia, e era meio tarde,/e ramos frios com gotas escorrendo./Palavras não podem consolar, nem lenços enxugar.

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  3. Esse comentário é sobre uma crônica belíssima do “A MORTE DE MEU PAI”
    Assim, entre aspas, começo a meditar sobre o texto de um amigo, dileto amigo e escritor: Álder. É como lhe chamo e como a ele me dirijo, em palestras boas ou quando jogamos conversa fora. Assim, como lhes escrevo e como vejo o universo desse meu caro amigo (como disse um dia Chico Buarque), mas não naquela realidade política tão bem retratada por ele. Não. O assunto é bem outro. E como é.
    Escreve-nos, o articulador, sobre uma passagem triste em sua vida: a morte de seu pai.
    Em seu trajeto, entre Fortaleza e Iguatu, toda a sua infância lhe veio como um filme, em preto e branco, do que fora a experiência de ter um pai. Cabiam-lhe, na bagagem de filho, alforjes tantos de saber e de ternura que aqueles minutos, em um avião, não lhe diriam jamais. Uma viagem, remetida a outra viagem mais profunda, mais verdadeira. Uma viagem num trem de um interior.
    Lendo essa crônica, lembrei-me de outra do Manoel Bandeira, onde ele descrevia o medo de morrer longe do seu pai, posto que faria uma viagem à Suíça para submeter-se a um tratamento contra sua tuberculose, e não querendo que fosse longe do seu pai e tendo o Oceano Atlântico como obstáculo a distanciá-los. Quem morreu foi o seu pai, segurando sua mão, não tendo, sequer, um parede a separá-los.
    A angustia do Álder, por não entender o porquê de uma partida tão prematura, aliada a um não sei quê de que porque eu não estava lá, faz-nos repensar o que é ser um pai. O que é ser pai dentro de um contexto onde temos que ser provedores machos e leoas de nossos filhos. Independe o sexo da criação quando o assunto é amar e ser amado. Ensinar aos nossos filhos o que é amor e o que é amar, sem distinção. Ser pai é ser leão e leoa. É ser fera e ser manso.
    Pais, quem os teve, ou quem os tem, não são a última pá de terra que se joga em sua vida quando ela não existe mais; pais, quem os teve, ou quem os tem, não são o último grito de aflição quando está se afogando e nem o primeiro espinho que se tira do pé infante.
    Álder, entre aspas iniciei meu sublime comentário, não pela dor acolchoada que suas palavras cobriram nosso manto de ternura e de admiração por todos os pais, ao contrário, porque não pude derramar uma palavra pelo pai, que acho que não tive, e tampouco uma lágrima para deitar-lhe sobre o ombro naquela viagem Álder, Permitam-me.

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