quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A eterna impossibilidade do Amor

Ligo a tevê e deparo, por coincidência, com o início do surpreendentemente belo Romance, filme de Guel Arraes, plasmado no mito medieval de Tristão e Isolda. Intertextualidade no melhor estilo, uma vez que a narrativa se desenvolve em torno da paixão que, como no mito, arrebata os corações de dois jovens atores durante a montagem teatral da famosa lenda, o filme ainda 'discute' com notável sensibilidade as relações teatro/tevê em que estão diretamente envolvidas as personagens centrais do enredo, que conta, ainda, com a participação menos convincente de José Wilker.
 
Restrição à parte, Guel Arraes conseguiu na produção do roteiro e na direção extremamente sensível do elenco um elogiável feito (sem falar na sedutora movimentação de câmera, angulações, enquadramentos e trilha musical, impecáveis), considere-se que a história de amor em que se inspira é trabalho já muito mastigado, com destaque para as inúmeras montagens da ópera do alemão Richard Wagner, muitas das quais disponibilizadas em DVD para o grande público. Para não falar, ainda, da conhecida versão para o cinema de Kevin Reynolds, de 2006, com James Franco, Sophia Myles e David O'Hara nos papeis principais. Que há de novo, então?
 
Começo por lembrar que, como toda adaptação, escrever a partir de um texto já conhecido é uma experiência que em nada deve escravizar o artista, mesmo em se tratando, como é o caso, de uma obra muitíssimo consagrada, um dos clássicos mais respeitados acerca do amor romântico. É o que fez Arraes, debruçando-se sobre um mito cujas raízes remetem ao séc. XIII, supostamente à história narrada por Gottfried von Satrasburg, em que o compositor Wagner assentou as bases de sua incomparável ópera.
 
Em Romance, todavia, o roteirista e diretor pernambucano manteve-se atento ao núcleo dramático do clássico, cuja tessitura gira em torno do desejo, da sexualidade e do amor trágico, o que corresponde a afirmar que se conduziu com fidedignidade ao que é mesmo a essência do mito. O fato de recriar situações, como o faz ao explorar desdobramentos da história, trazendo-a até o Sertão da Paraíba, na segunda metade do filme, no que se pode identificar como um "movimento para o abismo" (como os franceses definem a narrativa que comporta dentro de si outra narrativa), é coisa que só acrescenta ao seu trabalho, emprestando-lhe um cheiro de Nordeste que em nada diminui a sua dimensão universalista. Bela intervenção.
 
Sob este aspecto, aliás, ocorre-me lembrar que outro nordestino de cepa, Ariano Suassuna, já o fizera com o mesmo Tristão e Isolda, recriando esse encantador romance naquela que seria a sua primeira experiência na prosa de ficção. Trata-se de A história do amor de Fernando e Isaura, escrita em 1956 e mantida inédita até 1994, quando saiu em primeira edição pela José Olympio. Ambientada não no Sertão, mas no litoral de Alagoas, numa suposta alusão aos mares da Irlanda que Tristão atravessa para encontrar Isolda, o livro narra os peripécias de dois amantes infelizes. O que há de extraordinário numa obra, assim, que justifique a sua imortalidade, é o que se haverá de perguntar.
 
Por certo o fato de que, como na lenda celta, ainda vivemos no amor as experiências mais contraditórias, este misto de contentamento e descontentamento de que nos falou Camões, e Dante, e Miguel de Cervantes, e Shakespeare, um sentimento que muitas vezes cresce a ponto de não caber no mundo físico. Quando isso acontece (e acontece sempre, cedo ou tarde, na vida de cada um), é hora de buscar a bela mentira da Arte. É que ela é a única capaz de nos revelar as mais fundas verdades. Que tal assistir ao filme?*
 
* Disponível em DVD.
 
 
           

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