quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Realidade e ficção

Era fins dos anos 80. Armados de videocassete e tevê, saíamos, dois ou três amigos e eu, zona rural adentro a fim de exibir, seguido de debate com os agricultores, Cabra marcado para morrer (1984), o excepcional documentário de Eduardo Coutinho sobre o líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado na Paraíba em 1962.
 
Perdi a conta de quantas vezes fizemos isso, mas lembro com convicção os bons resultados que obtínhamos dessa militância a um tempo tão pacífica e tão engajada. Desde então, sempre que pude, voltei à obra do documentarista para beber na genialidade do seu talento, na beleza de sua arte e na coerência de seus trabalhos como realizador cinematográfico, dos maiores do Brasil e do mundo.
 
Coutinho iniciara o trabalho 17 anos antes, sob o incentivo do CPC da UNE, quando o golpe militar aconteceu e parte do material foi destruído e a equipe de filmagem presa. O filme, assim, tem duas metades bem definidas, em razão de que as personagens envolvidas tomaram rumos os mais diferentes durante esse longo intervalo. Parte do material, a propósito, foi rodado em Havana, onde um dos filhos de João Teixeira, formado em Cuba, exercia a medicina.
 
Só mesmo um cineasta extraordinário como Eduardo Coutinho seria capaz de dar ao documentário a qualidade estética que possui, a lógica de continuidade e a montagem irrepreensível que saltam aos olhos de qualquer espectador mais atento.
 
Há pouco, presente de um amigo, por coincidência, revi Edifício Master (2002), outra pérola realizada por Coutinho sobre moradores do prédio localizado na Rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Emocionou-me, tanto quanto Cabra marcado, a forma como o documentarista deu voz a 37 dos mais de 500 moradores do prédio, a sensibilidade com que sabia construir a sua narrativa, pontuada de tristeza, desilusão e esperança. No momento em que lembro disso, ocorrem-me as palavras de Cacá Diegues sobre Eduardo Coutinho: - "Ele sabia expressar seus sentimentos pela voz dos outros!" Perfeito.
 
Dia desses, também, lançara mão de um outro trabalho de Coutinho, Jogo de cena (2007), para explorar com os meus alunos da faculdade as linhas tênues que separam o falso e o verdadeiro, a ficção da realidade. Trata-se de uma experiência luminosa do artista (que Coutinho teve o mérito de alçar o documentário à condição de arte), sobre histórias de atrizes e mulheres reais, os desencontros, as perdas, os amores frustrados, os sonhos que povoam, em alguma medida, a alma de todos nós. 
 
Peões (2004), emociona pelo que registra das greves do ABC e das lutas que viriam a culminar com a eleição de Lula como presidente do Brasil. Os depoimentos desfazem as incompreensões em torno da figura do então líder sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, e servem para dar a exata dimensão do seu carisma e da sua capacidade de conduzir as massas.
 
Destacar potências do trabalho de Eduardo Coutinho não é tarefa fácil, posto que o cineasta é dono de um estilo que beira à perfeição. Se, ainda assim, tivéssemos de evidenciar uma marca que eleva seu trabalho ao status do melhor cinema, não titubearia em sustentar que a sua força está na forma com que conta suas histórias. Mais justo, sob este aspecto, é lembrar palavras do próprio cineasta: - "Cinema é isto: se você conta mal, não adianta ter uma boa história. Saber contar é essencial", afirmou numa entrevista em 2013.
 
Em meados do ano passado, com o também cineasta José Padilha, Eduardo Coutinho foi convidado a fazer parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que responde pela premiação do Oscar. Era o reconhecimento mundial dos seus méritos excepcionais.
 
Mas a vida, que parece mesmo querer imitar a Arte, como que o teria 'marcado para morrer' em circunstâncias trágicas. Falando sobre seus documentários, dissera há pouco tempo, durante um debate: - "São seres de ficção a partir de pessoas reais".
 
 No seu caso, infelizmente, a realidade é que imitou a ficção.
 
 
 
            
           

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