Leitor elogia coluna de sábado sobre Eduardo Coutinho e "estranha que não tenha feito qualquer referência ao documentário Moscou", que considera "dos melhores trabalhos do diretor". Feito o registro, tomo a decisão de comentar o filme, agora, há duas semanas desde a morte do cineasta.
Pois bem, trata-se de um trabalho realmente importante, realizado em 2010, com o grupo teatral Galpão, de Belo Horizonte, em que Coutinho acompanha o que 'poderia' ser uma montagem da peça As três Irmãs, do russo Anton Tchekhov. A flexão do verbo, poderia, prende-se a um dado curioso: o processo de criação, que se estende das primeiras leituras do texto ao que se poderia chamar de ensaio geral, aquele que normalmente antecede à estreia, é todo desenvolvido sem qualquer pretensão de levar o espetáculo a público, se não através da câmera de Eduardo Coutinho, o que resulta numa experiência de tradução intersemiótica particularmente curiosa.
O enredo da peça é simplório, sobremaneira em se tratando de um autor da estatura de Tchekhov: Olga, Irina e Macha, as três irmãs que dão título ao texto, sonham em retornar a Moscou, onde deixaram raízes e uma infância feliz. Mas, presas do provincianismo e da falta de perspectivas de uma Rússia curvada ao peso das instabilidades que levariam à Revolução de 1005 (antessala das grandes transformações de 1917), veem seus sonhos frustrados debaixo da mesquinhez e do conflito de pensamento que as sufoca pouco a pouco. Nesse contexto, pois, a peça transcorre, refletindo os valores de uma aristocracia conservadora e decadente, diante da qual o dramaturgo parece recusar-se a emitir opinião. Tudo, claro, pelas mãos de um autor elegante e rigoroso no trato dos elementos dramáticos de que extrai as indiscutíveis qualidades estéticas daquele que, supostamente, é o seu trabalho mais popular.
O documentário de Coutinho, assim, é extremamente fiel à atmosfera teatral estabelecida por Tchekhov, para o que é fundamental a parceria do diretor do Galpão, Enrique Diaz, não menos rigoroso na condução do trabalho em tudo que esteja minimamente ligado à teatralidade propriamente dita. A direção de atores, por exemplo, é magistral, apesar de simples e despretensiosa em cada etapa do processo.
O que torna Moscou um documentário marcante, no entanto, é menos o seu caráter estritamente cinematográfico, mas o fato de ser uma experiência bem sucedida de cruzamento de linguagens, vocação incontornável do que existe de mais moderno em termos de realização artística. Nesse sentido, isso posto, é que sobressaem suas qualidades. Não é muito afirmar, portanto, que só profissionais bem formados teoricamente -- e possuidores de habilidades artísticas incomuns --, como Eduardo Coutinho e Enrique Diaz, poderiam fazer algo como Moscou, um trabalho digno de figurar entre as melhores coisas do gênero. E quando digo "do gênero", não me refiro ao cinema e ao teatro isoladamente, nem mesmo à literatura, que o filme é antes de tudo uma prova inconteste de que, cada vez mais, rompem-se as barreiras entre os diferentes sistemas semióticos.
Verdade - mentira, realidade - ficção, estas oposições deixam de fazer sentido na perspectiva do trabalho de Eduardo Coutinho (e Enrique Diaz). O que importa, mesmo, é a força prodigiosa da arte, o respirar (des)construtor do processo de criação das diferentes linguagens, sob cuja luz a alteridade adquire centralidade, uma experiência de interlocução entre individualidades, ao mesmo tempo, tão incompatíveis e tão "irmãs". As de Tchekhov, pelas mãos de Coutinho e Diaz, atuam como em espelho, e apontam, implacáveis, para o abismo de frustrações em que poderá despencar qualquer um de nós.
Pois bem, trata-se de um trabalho realmente importante, realizado em 2010, com o grupo teatral Galpão, de Belo Horizonte, em que Coutinho acompanha o que 'poderia' ser uma montagem da peça As três Irmãs, do russo Anton Tchekhov. A flexão do verbo, poderia, prende-se a um dado curioso: o processo de criação, que se estende das primeiras leituras do texto ao que se poderia chamar de ensaio geral, aquele que normalmente antecede à estreia, é todo desenvolvido sem qualquer pretensão de levar o espetáculo a público, se não através da câmera de Eduardo Coutinho, o que resulta numa experiência de tradução intersemiótica particularmente curiosa.
O enredo da peça é simplório, sobremaneira em se tratando de um autor da estatura de Tchekhov: Olga, Irina e Macha, as três irmãs que dão título ao texto, sonham em retornar a Moscou, onde deixaram raízes e uma infância feliz. Mas, presas do provincianismo e da falta de perspectivas de uma Rússia curvada ao peso das instabilidades que levariam à Revolução de 1005 (antessala das grandes transformações de 1917), veem seus sonhos frustrados debaixo da mesquinhez e do conflito de pensamento que as sufoca pouco a pouco. Nesse contexto, pois, a peça transcorre, refletindo os valores de uma aristocracia conservadora e decadente, diante da qual o dramaturgo parece recusar-se a emitir opinião. Tudo, claro, pelas mãos de um autor elegante e rigoroso no trato dos elementos dramáticos de que extrai as indiscutíveis qualidades estéticas daquele que, supostamente, é o seu trabalho mais popular.
O documentário de Coutinho, assim, é extremamente fiel à atmosfera teatral estabelecida por Tchekhov, para o que é fundamental a parceria do diretor do Galpão, Enrique Diaz, não menos rigoroso na condução do trabalho em tudo que esteja minimamente ligado à teatralidade propriamente dita. A direção de atores, por exemplo, é magistral, apesar de simples e despretensiosa em cada etapa do processo.
O que torna Moscou um documentário marcante, no entanto, é menos o seu caráter estritamente cinematográfico, mas o fato de ser uma experiência bem sucedida de cruzamento de linguagens, vocação incontornável do que existe de mais moderno em termos de realização artística. Nesse sentido, isso posto, é que sobressaem suas qualidades. Não é muito afirmar, portanto, que só profissionais bem formados teoricamente -- e possuidores de habilidades artísticas incomuns --, como Eduardo Coutinho e Enrique Diaz, poderiam fazer algo como Moscou, um trabalho digno de figurar entre as melhores coisas do gênero. E quando digo "do gênero", não me refiro ao cinema e ao teatro isoladamente, nem mesmo à literatura, que o filme é antes de tudo uma prova inconteste de que, cada vez mais, rompem-se as barreiras entre os diferentes sistemas semióticos.
Verdade - mentira, realidade - ficção, estas oposições deixam de fazer sentido na perspectiva do trabalho de Eduardo Coutinho (e Enrique Diaz). O que importa, mesmo, é a força prodigiosa da arte, o respirar (des)construtor do processo de criação das diferentes linguagens, sob cuja luz a alteridade adquire centralidade, uma experiência de interlocução entre individualidades, ao mesmo tempo, tão incompatíveis e tão "irmãs". As de Tchekhov, pelas mãos de Coutinho e Diaz, atuam como em espelho, e apontam, implacáveis, para o abismo de frustrações em que poderá despencar qualquer um de nós.
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