sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Para jamais esquecer

Na desafiadora tarefa de escolher filmes imperdíveis para apresentar a alunos, em curso de história do cinema que ministro desde esta semana no IFCE, deparo com o belíssimo Rainha Cristina, de Rouben Mamoulian. O filme, de 1933, tem Greta Garbo no papel principal, e há quem considere esse o momento paroxístico de sua carreira. Está brilhante, é verdade, protagonizando uma das cenas mais belas da sétima arte em todos os tempos: acontece no final da película, quando Cristina (1626-1689), a revolucionária rainha da Suécia, perde o amante Don Antônio em duelo.
 
Sozinha, na proa de um navio que transporta o cadáver do homem amado, Cristina alonga o olhar para o horizonte, numa expressão de amargura e saudade que beira a perfeição em termos estéticos. O espetáculo do plano, como se denomina em cinema a imagem contínua entre dois cortes, cresce na medida em que a câmera se desloca com suavidade até enquadrar o rosto de Garbo num close "belo de doer". É algo inesquecível.
 
Não à toa, este plano tem sido objeto de teses em cursos de cinema através dos tempos. É impossível, com palavras, descrever o  que é esse olhar com exatidão. É que nem um sorriso de Mona Lisa, quase indecifrável, hipnótico, projetado para o nada, como que para dentro do coração ferido de Garbo. A propósito, certa vez a atriz revelou como Rouben Mamoulian a dirigiu durante a filmagem: - "Não pense em nada, disse ele. Fique vazia, vislumbre o vazio dentro de você."
 
É isto. A perda da pessoa amada, sabemos,  nega para aqueles que amam todos os significados. Talvez seja mesmo esse vazio absoluto o que parece queimar, o que arde por dentro como um ácido, esse quase morrer para cuja sensação não se tem palavras. Nada capaz de dizer o que se passa nas profundezas da alma.
 
A arte, só a arte, para definir o que não tem definição. Por isso, do olhar de Greta Garbo no final do filme de Mamoulian, explode, não o que se pode dizer com palavras sobre a dor de quem perde a coisa amada, mas o "contágio" dessa dor para a qual não existem palavras. O espectador, ali, diante da beleza em estado puro, pode dimensionar, ainda que por instantes, o tamanho do vazio em que se afoga a personagem ao saber da morte do homem amado.
 
A força da cena é tamanha, que quase ninguém se lembra de outra do mesmo filme, não menos sublime. Ocorre lá pela metade da história, e atrevo-me a dizê-la de memória. Cristina dormira com Don Antônio numa estalagem longínqua, naquela que seria a primeira e última vez. De manhã, pouco antes de partirem por caminhos opostos, ele depara com Cristina afagando a parede do quarto. "O que há?", quer saber , ao que ela responde: "Estou querendo gravar no fundo dos olhos a imagem do lugar em que nos amamos pela primeira vez!" Coisas do amor. E do cinema, para jamais esquecer.
 
 
 
 
            
            
           

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