quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Que horas ela volta?

Há no Górgias, um dos mais importantes diálogos de Platão, uma discussão entre Sócrates e Cálicles acerca do que é ser feliz. Para este, a felicidade é ter força, poder, sobressair ante a vontade dos outros. Para Sócrates, longe disso: Ser feliz é ser justo. Ao afirmar isso, interessa a Platão dizer que a justiça é para todos. E nisso reside a condição de ser feliz.
 
Lembrei do filósofo ao assistir ao filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, em cartaz nos cinemas. O roteiro está construído em torno de um eixo dramático muito simples: Val (sublimemente interpretada por Regina Casé), uma empregada doméstica nordestina, recebe na casa dos patrões, num bairro grã-fino de São Paulo, a filha que não viu crescer por ter dedicado parte de sua vida a criar Fabinho, o filho riquinho do casal. Mas há no desenrolar dessa história acontecimentos magistrais, e inequivocamente ligados ao Brasil dos últimos doze anos. Vou tentar explicar.
 
O filme traz à tona, com algum atraso em face do momento atual, o que significou para a sociedade brasileira o projeto de inclusão social do governo Lula, quando foi possível para os menos favorecidos  --  representados na personagem de Jéssica, que se recusa a submeter-se às normas humilhantes dos patrões de sua mãe e ingressa numa universidade particular antes mesmo de Fabinho, o filho rico da casa  --  fazer valer sua autoestima e tornar sua dignidade pessoal um instrumento de luta contra o preconceito e a exploração. Do outro lado, a elite paulista, desde sempre identificada com o que existe de mais reacionário em termos políticos no Brasil de hoje, numa palavra, o PSDB de Aécio Neves e companhia.
 
A forma como Muylaert soube articular essa correlação de forças, o delicado fio em que se tentam equilibrar esses dois brasis, é para além de apenas bem sucedido do ponto de vista estético, mas atravessa o coração do espectador minimamente atento aos ganhos reais dos mais pobres nesses últimos anos: a classe média intermediária representa hoje um terço da população brasileira, segmento a que pertence metade dos jovens do país. Sem esquecer que o número de pessoas com escolaridade em nível superior mais que dobrou entre 2005 e hoje.
 
Jéssica, a filha de Val, impressiona os patrões, notadamente Bárbara, dona da casa, não à toa uma "estilista" profissional, o tipo que vive das boas impressões. Ao ouvir de Jéssica os sonhos que tem por realizar, Bárbara não contém o muxoxo: "Hum, este país está mesmo mudando".
 
Jéssica infringe as normas da casa: recusa-se a ficar no quartinho dos fundos, come sentada à mesa, aprecia sorvetes finos, conversa de igual para igual com os patrões e, mais feliz simbolismo dramático do filme, ousa tomar banho na piscina da casa, pelo que é severamente repreendida por Val. É de tirar o folego, por isso mesmo, a sequência do filme em que vemos Val adentrar a piscina, agora esvaziada para conter os excessos de Jéssica, tão-logo decide pedir demissão do emprego para ir morar com a filha universitária e comunica-lhe pelo celular sua decisão.
 
No final do filme, sabendo que Jéssica é mãe solteira, Val dirige à filha as palavras mais carregadas de simbolismo em face das muitas conquistas dos pobres no Brasil de antes da crise: "Vai buscar teu filho, Jéssica, vai! Eu compro a passagem. De avião!" Não é muito lembrar a indignação da elite diante dos aeroportos apinhados de pessoas humildes.
 
Como observou um crítico sobre o filme, "A essência da revolta das recentes manifestações contra o governo federal tem presença forte no longa, mas de maneira velada, com as panelas passando ainda pelas mãos de Val".
 
Que horas ela volta?, que concorrerá ao Oscar de melhor filme estrangeiro 2016, ao expor a intolerância e o inconformismo da elite brasileira diante dos avanços sociais do governo Lula, mostra do cinema aquilo que ele tem de universal. E reedita a afirmação de Platão: "Ser feliz é ser justo!"
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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