Depois de causar uma expectativa só comparável ao decepcionante Os 50 tons de cinza, chega à Capital Love, o polêmico filme do franco-suíço Gaspar Noé. E que belíssima surpresa. Não pelo sexo explícito que é mesmo uma dimensão abusada de Love (e que explica por certo a gigantesca correria às salas de cinema), mas pelas qualidades estéticas que o sustentam num nível poucas vezes visto em títulos do gênero. A propósito, começo por fazer uma autocorreção: Love não é um filme do gênero pornô, embora, como disse, sejam recorrentes as cenas de sexo de padrão naturalista diante das quais Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, por exemplo, parecerá um 'sessão da tarde' ingênuo e bem comportado.
O que move o filme, no entanto, é o tema da paixão como um sentimento dotado de um poder contraditório. Sua força, que pode transformar o mundo de uma pessoa e causar emoções paradisíacas, aqui surge como um sentimento capaz de arruinar a alma e destruir a vida de um homem. A porta de entrada, como sempre, é o sexo, elemento importante na composição da personagem central do filme, Murphy (Karl Glusman), e na construção do eixo dramático em torno do qual vai se desenrolar o enredo assinado pelo próprio Gaspar Noé. Aliás, não é gratuito lembrar que esse é também o tema de filmes anteriores do diretor, com destaque para Irreversível (2002), em que se depara com uma das duas cenas de estupro mais fortes do cinema -- a outra está em Sob o domínio do medo (1971), de Sam Peckinpah.
Murphy é um estudante de cinema que se envolve com a artista plástica Electra (Aomi Muyock), com quem vive uma relação a princípio equilibrada. À força de colocar em prática suas fantasias, que vão de um ménage à trois a noitadas degradantes de sexo e drogas, o casal inicia uma trajetória tensionada de alegria e dor. Essa tensão de feitio neobarroco, por sinal, é o leitmotiv da história, o que torna o filme exemplarmente bonito do ponto de vista estético: mesmo as cenas de sexo explícito, como nunca antes se pode ver no circuito do grande cinema, menos chocam que proporcionam ao espectador mais refinado uma experiência sensorial a um tempo agradável e desinteressada, à maneira do belo segundo a matriz kantiana. Sem esquecer a trilha musical, bonita de doer.
À parte o gesto spoiler, é soberba a forma como Gaspar Noé lida com a matéria dramática do enredo, como procedeu à decupagem, como escolheu suas estratégias narrativas num filme que poderia resultar apenas apelativo. A câmera é sensível, move-se com delicadeza, os enquadramentos são precisos, poéticos, ainda quando intencionalmente assustam o espectador com o inesperado. O amor pela sétima arte extrapola recorrentemente, a exemplo de quando articula a ação com o que o se vê no quadro, não raro cartazes de clássicos do cinema: O vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), Uma Odisseia no espaço (Kubrick, 1968) e Saló ou 120 dias de Sodoma (Pasolini, 1975), para citar aqueles de que me recordo.
Love joga com diferentes temporalidades e aborda os tipos de memória de que nos falou Bergson em livro importante, Matéria e memória; visita Freud, palmilha Lacan, o que revela o suporte intelectual do seu diretor. A memória involuntária, que nos transporta para o passado de modo a ditar o rumo das nossas ações no presente, constitui o elemento mais profundo e mais marcante da história. É ele que conduz Murphy, perdido o objeto amado, Electra, às profundezas de um conflito que só cresce com o passar das horas. Ao dirigir o olhar para a mulher grávida, que o surpreende aos prantos debaixo do chuveiro, numa das sequências mais espessas do ponto de vista psiquiátrico do filme, quem Murphy "vê" é a outra, Electra. O bolinho madeleine a que se refere Proust -- Em busca do tempo perdido --, tem no sexo, aqui, o seu equivalente. São as imagens de suas relações sexuais com Electra que pontuam o desespero de Murphy, que o perseguem, mesmo quando tem nos braços a filhinha pequena, como na cena absolutamente desconcertante do final do filme.
Não estranha que Gaspar Noé leve muita gente a se ver no drama de Murphy. É que o sofrimento da desilusão amorosa e a dor da perda, com que só muito poucos são capazes de saber lidar de forma equilibrada, pontuam por certo o que existe de mais atual nesse Love carregado de sentidos e força poética. Esse passado, como escreveu Marcel Proust, "está escondido, fora do domínio e do alcance da nossa inteligência, em algum objeto material [...] de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objeto antes de morrermos, ou não o encontrarmos". A personagem do filme encontrou, e, por isso, vive o seu inferno.
O que move o filme, no entanto, é o tema da paixão como um sentimento dotado de um poder contraditório. Sua força, que pode transformar o mundo de uma pessoa e causar emoções paradisíacas, aqui surge como um sentimento capaz de arruinar a alma e destruir a vida de um homem. A porta de entrada, como sempre, é o sexo, elemento importante na composição da personagem central do filme, Murphy (Karl Glusman), e na construção do eixo dramático em torno do qual vai se desenrolar o enredo assinado pelo próprio Gaspar Noé. Aliás, não é gratuito lembrar que esse é também o tema de filmes anteriores do diretor, com destaque para Irreversível (2002), em que se depara com uma das duas cenas de estupro mais fortes do cinema -- a outra está em Sob o domínio do medo (1971), de Sam Peckinpah.
Murphy é um estudante de cinema que se envolve com a artista plástica Electra (Aomi Muyock), com quem vive uma relação a princípio equilibrada. À força de colocar em prática suas fantasias, que vão de um ménage à trois a noitadas degradantes de sexo e drogas, o casal inicia uma trajetória tensionada de alegria e dor. Essa tensão de feitio neobarroco, por sinal, é o leitmotiv da história, o que torna o filme exemplarmente bonito do ponto de vista estético: mesmo as cenas de sexo explícito, como nunca antes se pode ver no circuito do grande cinema, menos chocam que proporcionam ao espectador mais refinado uma experiência sensorial a um tempo agradável e desinteressada, à maneira do belo segundo a matriz kantiana. Sem esquecer a trilha musical, bonita de doer.
À parte o gesto spoiler, é soberba a forma como Gaspar Noé lida com a matéria dramática do enredo, como procedeu à decupagem, como escolheu suas estratégias narrativas num filme que poderia resultar apenas apelativo. A câmera é sensível, move-se com delicadeza, os enquadramentos são precisos, poéticos, ainda quando intencionalmente assustam o espectador com o inesperado. O amor pela sétima arte extrapola recorrentemente, a exemplo de quando articula a ação com o que o se vê no quadro, não raro cartazes de clássicos do cinema: O vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), Uma Odisseia no espaço (Kubrick, 1968) e Saló ou 120 dias de Sodoma (Pasolini, 1975), para citar aqueles de que me recordo.
Love joga com diferentes temporalidades e aborda os tipos de memória de que nos falou Bergson em livro importante, Matéria e memória; visita Freud, palmilha Lacan, o que revela o suporte intelectual do seu diretor. A memória involuntária, que nos transporta para o passado de modo a ditar o rumo das nossas ações no presente, constitui o elemento mais profundo e mais marcante da história. É ele que conduz Murphy, perdido o objeto amado, Electra, às profundezas de um conflito que só cresce com o passar das horas. Ao dirigir o olhar para a mulher grávida, que o surpreende aos prantos debaixo do chuveiro, numa das sequências mais espessas do ponto de vista psiquiátrico do filme, quem Murphy "vê" é a outra, Electra. O bolinho madeleine a que se refere Proust -- Em busca do tempo perdido --, tem no sexo, aqui, o seu equivalente. São as imagens de suas relações sexuais com Electra que pontuam o desespero de Murphy, que o perseguem, mesmo quando tem nos braços a filhinha pequena, como na cena absolutamente desconcertante do final do filme.
Não estranha que Gaspar Noé leve muita gente a se ver no drama de Murphy. É que o sofrimento da desilusão amorosa e a dor da perda, com que só muito poucos são capazes de saber lidar de forma equilibrada, pontuam por certo o que existe de mais atual nesse Love carregado de sentidos e força poética. Esse passado, como escreveu Marcel Proust, "está escondido, fora do domínio e do alcance da nossa inteligência, em algum objeto material [...] de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objeto antes de morrermos, ou não o encontrarmos". A personagem do filme encontrou, e, por isso, vive o seu inferno.
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