sexta-feira, 10 de março de 2017

Angélica e lutadora

Ao poeta, mais que a todos os outros, foi dada a capacidade de expressar os afetos mais caros ao homem. E a poesia é o espaço sagrado pelo qual se manifesta o inconsciente de cada um, quer na perspectiva de quem a produz quer na perspectiva de quem a recebe, no que se convencionou chamar de experiência estética. Alguns, a exemplo do que fez em níveis incomparáveis o português Fernando Pessoa, têm o dom de "outrar-se", isto é, de ser a um só tempo, como quis Baudelaire, ele próprio e o Outro. Não à toa inventou mais de uma centena de heterônimos, entendendo-se por isso a criação de personalidades poéticas múltiplas e diferentes entre si.

No Brasil, para não descrever o arco que nos faria evitar o cais, como diz em uma de suas composições mais sublimes, ninguém faz páreo a Chico Buarque de Holanda, sobre quem tecerei, aqui, breves considerações.

Faço-o a propósito, ainda, do dia consagrado à mulher, pois Chico Buarque reúne, nesse sentido, uma propriedade, enquanto criador, que o torna um nome singular entre os poetas brasileiros. É certo que houve, lá pelos anos quarenta do século XIX, nascido no Maranhão, um certo Gonçalves Dias, que se antecipa ao autor de Atrás da Porta para cantar as desilusões femininas no amor, pelo menos num poema que o consagraria pelo que identificamos como a sábia função "outrativa" da arte. Refiro-me a Leito de Folhas Verdes, em que uma índia prepara com desvelo o leito do amor para o amado que nunca vem.

Alguns, por certo, lembrarão dos poetas trovadores, mas isso são outros quinhentos, que os valores da época condicionavam o homem a falar, também, da ótica feminina. Na literatura dita moderna, na linha do que ocorre a Gonçalves Dias (romântico de primeira fase), a coisa é outra. Com Chico Buarque vem a se dar o mesmo, ou seja, o eu-lírico assume a voz feminina com uma força espantosa, constituindo esse viés o que existe de mais incomparável em sua poesia.

Se não me engano, foi Freud, depois de tentar vasculhar a alma feminina sem compreender por completo os seus mistérios, quem afirmou com fina percepção: "... quem quiser saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas". Perfeito. Voltemos a Chico.

E já que falei no barco que descreve o arco e evita atracar no cais, o verso está em Pedaço de Mim, exemplar sublime do "outrar-se" buarquiano. Nela, o poeta explora o sentimento feminino diante da perda, registrando o momento do fracasso, da despedida de que resultará o sofrimento insuportável da dor que, literalmente, compara ao sofrimento de uma mãe ao perder um filho. É antológica a estrofe: "Que a saudade é o revés de um parto/a saudade é um arrumar o quarto/do filho que já morreu".

Perder a pessoa amada é, de fato, algo que vai além da dor emocional, tornando-se uma dor quase física, dor decorrente de um tipo de mutilação: "Oh, pedaço de mim/Oh metade arrancada de mim/Leva o que há de ti/Que a saudade dói latejada/É assim como uma fisgada/No membro que já perdi".

Há, que lembre, pelo menos dois grandes estudos sobre o poema em questão. Grandes, insisto. Num deles, de Adélia Bezerra de Menezes, sobre a estrofe em pauta, a estudiosa evidencia no texto a presença de dois elementos caros à análise psicanalítica. De um lado, diz ela, aflora o mito do ser andrógino (O Banquete, de Platão), dividido por Zeus em duas metades que se haverão de procurar pelo sem-fim dos tempos. O segundo, também mítico, da Criação do homem (Gênesis, no primeiro livro da Bíblia), a criação de Eva, por Javé, a partir de uma costela de Adão. Mitos à parte, o certo é que Chico Buarque canta como ninguém a alma feminina. De uma feita, a propósito disso, a ex-mulher de Chico Buarque, Marieta Severo, afirmaria: "Ele conhece o íntimo da mulher melhor que eu!".

Dia desses, entre amigos, no aconchego da casa da Taíba, falávamos da figura feminina na canção de Chico Buarque, e o tema nos levou pelo andar da madrugada. As opiniões, por saudável, divergem.

Se existe quem condene o ponto de vista cultivado pelo poeta de Angélica, numa perspectiva ingênua do politicamente correto, para a qual Chico Buarque revela "quase sempre" o lado frágil e dependente da mulher, não é menos verdade que em muitas de suas canções ocorre o contrário, cabendo ao homem o sentimento da perda e a angústia de não saber recomeçar. Em uma dessas, o machismo antes expõe, com sutileza, o homem inconformado com o desfecho da relação. Mas o faz, como disse, pelas entranhas do inconsciente, veladamente: "Aquela esperança de tudo se ajeitar/Pode esquecer/Aquela aliança você pode empenhar ou derreter/Mas devo dizer que não vou lhe dar/O enorme prazer de me ver chorar/Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago/Meu peito tão dilacerado/Aliás, aceite uma ajuda do seu futuro amor/Pro aluguel/Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu/Eu bato o portão sem fazer alarde/Eu levo a carteira de identidade/Uma saideira, muita saudade/E a leve impressão de que já vou tarde".

Em tempo, como me referi à canção Angélica, não é muito lembrar que constitui uma belíssima homenagem de Chico Buarque à estilista Zuzu Angel Jones, composta com Miltinho. Nela, o eu-lírico é, de fato, diferentemente do que está em Pedaço de Mim, que se refere ao amor erótico, a mãe destroçada pela perda do filho: "Quem é essa mulher/Que canta sempre esse estribilho?/Só queria embalar seu filho/Que mora na escuridão do mar".

A resposta a essa pergunta está no Brasil de que devemos lembrar apenas para nunca esquecer, ao contrário do que se ouve pelos quatro cantos de um país que namora com o retrocesso, bem como fazem os que aplaudem Bolsonaro hoje em dia. Essa mulher é  Zuzu Angel, que teve o filho, Stuart Edgar Angel Jones, brutalmente assassinado durante o governo militar, em 1971, e cujo corpo, arrebentado, jamais apareceu, supostamente atirado ao mar. Daí o porquê dos versos: "Só querida embalar seu filho/Que mora na escuridão do mar".

Aqui, se não ocorre o fenômeno da transposição do Eu no Outro, pois que o ponto de vista é a terceira pessoa, ressalta o olhar crítico de Chico em relação aos anos de chumbo, e a voz tocante do poeta que sabe entender a dor alheia e a imortaliza numa verdadeira obra-prima. Ocorre-me, mais uma vez, a incontornável leitura da ensaísta Adélia Bezerra de Menezes, a nos chamar a atenção para o fato de que Chico joga com dois parâmetros femininos essencialmente distintos: a estilista, a profissional do supérfluo, a mulher dedicada à fantasia, à beleza e a sensualidade arquetípicas da feminilidade etc., dá lugar à mulher combativa, que "se lança numa cruzada de denúncia, de enfrentamento do poder militar que lhe custará a vida".

Sabe-se que Zuleika Angel Jones, a Zuzu, também viria a morrer em circunstâncias nunca esclarecidas, em 1976, num acidente de carro, ao que tudo indica, ocasionado pelos assassinos do filho.  

    

Um comentário:

  1. Como dito, não há quem cante melhor a alma feminina quanto Chico Buarque.
    Um gênio poetico das letras nacionais.

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