sexta-feira, 28 de julho de 2017

Triste Visionário

 

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou! (Lima Barreto)

A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a "verba secreta", os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com competência [...] Ninguém quer agitar ideias; ninguém quer dar a emoção [...]. Todos querem "comer". "Comem" os juristas, "comem" os filósofos, "comem" os médicos [...] "comem" os romancistas, "comem" os engenheiros, "comem" os jornalistas: o Brasil é uma vasta "comilança".

O texto acima, pasmem, não se refere aos dias de hoje. É de Lima Barreto, e foi escrito por volta de 1917, em crônica intitulada A política republicana. Pela atualidade da denúncia, como se vê, vira e mexe instala-se no Brasil a política da sacanagem, bem na linha do que vem ocorrendo desde o golpe de 2016. Mas, permitam-me, não é da podridão que impera em Brasília (com reflexos danosos sobre a vida de todos nós, claro), sob a orientação satânica de Michel Temer, que quero falar na coluna desta semana. Mas sobre o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, homenageado na FLIP 2017 (Festa Literária Internacional de Paraty), mais importante evento literário do país.

Nessa perspectiva, pois, é que tomo como objeto de exame o que me parece ser o maior acontecimento editorial do ano, a publicação de dois livros absolutamente incontornáveis sobre vida e obra de Afonso Henriques de Lima Barreto. O primeiro, a rigor, reeditado, pois seu lançamento remonta a inícios dos anos cinquenta, A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa. O segundo, recém-lançado, Lima Barreto, Triste Visionário, da prolífica historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Ambos, com realce para o clássico trabalho de Francisco de Assis Barbosa, 1952, sobre o qual assumidamente apoia-se o livro de Schwarcz, chegam às livrarias em edições bem cuidadas da Autêntica e da Companhia das Letras, respectivamente.

A Vida de Lima Barreto, como o título sugere, debruça-se sobre a biografia propriamente dita do homenageado, constituindo um rigoroso trabalho de pesquisa sobre a trajetória existencial de um dos escritores brasileiros mais importantes de todos os tempos, cuja visibilidade, num país em que é visível o preconceito contra pobres e negros, deve-se em grande parte a Francisco de Assis Barbosa. É que o pesquisador, numa época de imensas limitações tecnológicas, dedicou-se com uma determinação impressionante a coletar fatos e dados que resgatassem do esquecimento a presença marcante de Lima Barreto nos meios intelectuais do Rio de Janeiro de inícios do século XX.

Mas não é apenas o criterioso trabalho de pesquisa, irrepreensível, que torna o livro de Barbosa obrigatório para a estante de qualquer amante das letras nacionais. A escrita do autor desse maravilhoso A Vida de Lima Barreto é notável. Com um estilo que transita do alto jornalismo para a crônica literária, que se materializa num texto escorreito, claro e elegante, Barbosa vai tecendo as teias narrativas em que o leitor inevitavelmente enreda-se desde as primeiras páginas. Leitura agradável e sedutora, confiram.

Não menos bem estruturado do ponto de vista discursivo, Lima Barreto, Triste Visionário, de Lilia Moritz Schwarcz, sob muitos aspectos vai além do clássico de Barbosa. Ao tornar sua escrita uma representação viva do biografado, como se referiu à obra o escritor mineiro Silviano Santiago, Moritz realiza uma experiência absolutamente singular no gênero, explorando com talento, e de forma particularmente convincente, as aparentemente inconciliáveis funções referencial e poética da linguagem, para lançar mão, aqui, da conhecida teoria linguística de Roman Jackbson. O texto, portanto, é enxuto e claro quando o registro de passagens dramáticas da vida de Lima Barreto requer, mas livre e solto, por vezes poético, quando a força lírica de sua prosa (dele, Lima Barreto) parece contagiar a biógrafa. Sob este aspecto, o texto pulsa, ganha vida, persuade com astúcia, redimensiona-se numa experiência de leitura que agrada e satisfaz.

Ler esses belíssimos livros, recém-chegados ao mercado, é, pois, mais que recomendável. Indico.   

 


 

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