sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

2020. Agora mais três

Eis que termina 2019. O saldo da conta, sabe-se, não é animador. O Brasil, mesmo a custo de conduzir a assustadora maioria de sua população para uma condição de pobreza quase irremediável, com os números de sua desigualdade social atingindo proporções desumanas, cresce um "tiquinho", e a redução dos níveis de desemprego se prende às demandas das festas de fim de ano, razão por que, certamente, voltarão a elevar-se já nos dois primeiros meses de 2020.
A corrupção, cujo combate foi a principal bandeira do atual presidente, não só continua a afligir o país: agora se alastra por diversos ministérios e acerta em cheio o clã de Jair Bolsonaro, com evidências de práticas de crimes do filho Flávio que se estendem da apropriação do dinheiro de seus funcionários na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, lavagem de dinheiro em imóveis e em lojas de chocolate, à manutenção de um a organização criminosa para qual, ainda em fase de investigação, apontam fortes indícios de envolvimento com o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.
Ao lado disso, 2019 foi marcado do ponto de vista político por ações de perseguição às minorias, desmanche das instituições educacionais de níveis fundamental, médio e universitário; ataque à cultura em suas diferentes frentes --- cinema, teatro, artes visuais e música ---, com cortes irresponsáveis de recursos à produção de eventos e obras nas diversas linguagens estéticas.
A Secretária da Cultura, sucedânea do que foi um dia o Ministério da Cultura, tem a sua frente o terceiro titular desde janeiro (Roberto Alvim, a quem se deve a inaceitável referência à atriz Fernanda Motenegro pouco antes de assumir o cargo). Na mesma avalanche de desmandos e insensatez, figuras despreparadas e reacionárias, sem nenhuma história de relevo em suas áreas de atuação, foram indicadas para a Funarte, a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares.
Como nada é tão ruim que não possa piorar (com permissão para o uso do batido chavão), reeditando hediondos atentados da ditadura militar, coquetéis molotov são criminosamente jogados contra a sede do programa humorístico Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, num desfecho revoltante de um ano marcado pela intolerância e obscurantismo que, resta claro, apenas deixam evidenciadas as regras do que deverão ser as práticas bolsonaristas, em 2020, sempre que seu fundamentalismo religioso e seu nacionalismo fascistóide se sentirem contrariados.
Pautando suas ações entre janeiro e dezembro do ano que finda por uma cartilha esclerosada, incapaz de observar as mais elementares normas de conduta ética, de liturgia do importante cargo que ocupa, Jair Bolsonaro termina 2019 como o mais inoperante, autoritário, covarde e desumano dos governantes brasileiros desde a redemocratização do país.
Por último, na ausência de quaisquer sugestões que me façam encarar com entusiasmo o Ano Novo, reproduzo aqui a feliz ironia de Mariliz Pereira Jorge na edição de quinta-feira do jornal Folha de S. Paulo: "Mais três anos. Trinta e seis meses, 1.095 dias. Mais de 26 mil horas, aguentando com o fígado esse gente desqualificada que decide por um país inteiro. Meu palpite sobre 2020: será oh, uma bosta. Como nessa época sempre fico mais otimista, quero acreditar que serão só mais três anos. Longos e duros anos. Mas apenas mais três".
  
  

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Adeus ao bom pastor

Tinha eu cinco, seis anos, quando de sua chegada a Iguatu. Não sei se ainda vejo tudo aquilo com os olhos deslumbrados (e sem medida!) do menino que fui, mas o fato é que guardo a festa de acolhida ao bispo de Iguatu como algo tão grandioso, tão cheio de luz e graça, que nada se lhe pode comparar. Talvez a noite de Natal, a cada dezembro...
Recordo as pessoas nas ruas, a multidão que se formava rapidamente ao lado da catedral, as faixas, os cartazes e as bandeirolas multicoloridas a tremular em profusão, ininterruptamente  ---  e a contagem regressiva que acompanhávamos, com um misto de emoção e saudável nervosismo, através dos alto-falantes espalhados por toda a extensão da Praça da Matriz. 
Bem ao fim da tarde, pelas 17 horas, talvez, eis que o locutor anuncia a chegada da comitiva que acompanhava o "Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago" ---  a chave simbólica da cidade já nas mãos!
E fomos, num piscar de olhos, cobertos por uma nuvem de fumaça que se seguiu ao ensurdecedor pipocar das bombas, ao voar sem direção de pombas e andorinhas, também elas contagiadas pelo espírito da grande festa de acolhida ao primeiro pastor da Diocese de Iguatu. Era início dos anos 1960.
Esta semana, aos 94 anos, pouco mais, pouco menos, eis que chegou a hora de sua partida.
Recebi com uma tristeza imensa a notícia, muito embora convencido de que, infelizmente, era acontecimento esperado, posto que lenta a sua agonia nesses últimos dias.
Como tantos e tantos, por certo em quantidade impensável, tive a alegria de conviver com Dom Mauro. Não cruzar com ele pelas ruas em mangas de camisa, andarilho que era o belo pastor; não quedar magnetizado, como ocorria a qualquer um, diante de seus sermões cheios de bondade, de sabedoria, de amor! Não apenas isso. Digo "conviver" no sentido que traz a etimologia da palavra: Viver com!
Sei que, para muita gente, esta revelação constituirá surpresa. Não importa!
É que Dom Mauro, entre as suas incontáveis qualidades pessoais, foi sempre um erudito atento, um investigador dos conflitos do homem, um observador da vida em sua dimensão mais grandiosa e profunda! Decorre dessa sua curiosidade intelectual, quero crer, o fato de que muitas e muitas vezes, aonde quer que cruzássemos, e não raro em sua Casa Paroquial, sentados em suas confortáveis cadeiras de balanço, ficarmos a trocar ideias, a procurar juntos, num exercício descontraído senão da pura Filosofia, mas do puro filosofar, o entendimento possível da condição humana, e do eterno viravoltear das coisas num mundo tão confuso e tão perdido, tão despossuído de Fé.
Certa vez, livro aberto nas mãos, apresentou-me a Agostinho, o "Santo da Inteligência"... Falava com uma tranquilidade contagiante sobre temas diversos  ---  conhecimento, sabedoria, conversão, Deus, Amor... Eu, pequeno, diminuto; ele, enorme, do alto de sua imensurável grandeza!
Houve um tempo, dobrado ao peso de golpes profundos na alma, desses que a vida nos dá aqui e além, que tive de recorrer a Dom Mauro não mais como a um amigo, a um interlocutor comum, pois me sentia como que necessitado das graças de um Santo... E encontrei esse Santo na pessoa do velho pastor que agora partiu! Mas o que é a morte, para quem soube viver a vida? A morte, disse o poeta, é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto.
Não desçamos a detalhes, que o momento é outro e a vida seguiu e tudo passa sobre a face da terra, mesmo as dores que parecem não ter fim!
Impossível não recordar, porém, o que vinha daquela voz grave e aveludada, colocando-se, pausadamente, entre as extensões vocais do baixo e do tenor, em bom latim: "Feras, non culpes, quod mutari (ou vitari) non potes!" Suporta, sem te queixares, aquilo que não puderes mudar!
Tem o tamanho das montanhas a minha gratidão, meu bom José!
Num mundo tão carente dos grandes espíritos; numa hora tão delicada de nossas vidas; em meio à desesperança de um tempo marcado por tantas desigualdades e mais de mil outras contradições, e tanta injustiça, eis que perdemos esta referência moral, este homem bom e iluminado, esta figura sábia e generosa de quem jamais Iguatu haverá de esquecer!
Não resta dúvidas, para nos confortar, que descansará em paz, em companhia dos bons e dos justos!




quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A Questão Bishop

A escolha de Elizabeth Bishop como a principal homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no próximo ano, transformou-se na maior e mais tola polêmica intelectual dos últimos dias. O cerne da discussão, até onde sei, prende-se ao fato de que a poeta norte-americana teria se manifestado favoravelmente ao golpe militar de 1964 no Brasil. A questão, desimportante pelo tratamento que lhe tem sido dispensado nos meios de comunicação, envolve, inequivocamente, aspectos políticos, nada, contudo, que passe sequer superficialmente pela figura de Jair Bolsonaro, uma vez que qualquer pessoa medianamente informada sabe que o presidente jamais leu Bishop  ---  quando menos, porque jamais terá lido alguma coisa para além das memórias do torturador Carlos Brilhante Ustra. Ah, mas se trata de uma escritora dos Estados Unidos, Tá Okay?! Bem, sob este aspecto...
O fato é que, embora se trate de uma poeta de inegáveis qualidades, não sem razão considerada um dos grandes nomes da poesia dos Estados Unidos no século 20, a opinião de Elizabeth Bishop sobre a política brasileira é algo tão irrelevante quanto seus comentários sobre o próprio país, que considerava atrasado, povoado por uma gente irritante e mal-educada, condenada a viver na periferia das grandes realizações humanas modernas.
Ao lado disso, o que mais reflete um absoluto preconceito em face da literatura produzida no Brasil, que mal conhecia porque mal conhecia a própria língua portuguesa, merecem destaque suas afirmações sobre a pobreza de nossa poesia. Sob este aspecto, aliás, se de alguma forma podem constituir um gesto de franqueza para com os nossos homens de letras, essas afirmações constituem um exemplo de grosseria desnecessária: nos quase 20 anos morando no Brasil, Bishop conviveu com muitos dos nossos maiores escritores, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz, por exemplo.
Quanto a elogiar "a tranquilidade e beleza" com que o golpe militar se materializou, não se deve desprezar o fato de que Bishop foi amante da arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, por sua vez amiga íntima de gente pouco afeita aos valores da democracia. Entre esses, destaque-se a figura de Carlos Lacerda, de quem Bishop recebeu as maiores lições sobre o Brasil dos anos 60 e 70 do século 20. Esperar o quê?
No que diz respeito à história de Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop, recomendo o belo livro Flores Raras e Banalíssimas (Editora Rocco, 1995), de Carmen L. Oliveira, escrito com prodígios de elegância e estilo. O livro, diga-se ainda, veio a ocupar, com méritos, um lugar de destaque na biografia de Elizabeth Bishop, tendo sido adaptado para o cinema no belíssimo Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, sobre o qual publiquei à época, neste espaço, um breve artigo em que destaco sua notável beleza plástica e as interpretações irretocáveis de Glória Pires e Miranda Otto nos papeis de Lota e Bishop, respectivamente.
O certo é que, como escritora, a homenageada na Flip 2020 é nome importante da literatura norte-americana, embora pouco lida no Brasil. Assinando uma poesia que, entre nós, corresponderia mais ou menos à da segunda geração modernista, em que sobressaem poetas como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, Elizabeth Bishop merece todo o respeito de quem for capaz de separar vida e obra, pois que esta é detentora de qualidades estéticas inegáveis. Não seria muito, por sinal, aproximá-la, ainda, de João Cabral de Mello Neto, cuja carpintaria poemática, a exemplo de Elizabeth Bishop, é assumidamente assentada numa fina percepção da "coisa circundante", com raríssimos momentos de extração subjetivista. Algo no mínimo curioso para uma artista que viveu dramas pessoais profundos, não raro decorrentes do alcoolismo que a consumiu por inteiro aos 68 anos.
Por último, sem quaisquer pruridos xenofóbicos, fica a indagação: não haveria um nome brasileiro a ser homenageado na Flip 2020?
 

 


 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Matadores de si mesmos

Nas últimas horas, algo em torno de 800 mil pessoas foram às ruas na França contra o projeto de reforma da Previdência. Praças e logradouros ficaram repletos de manifestantes. Intelectuais, artistas, escritores, ocuparam horários nobres de programas de rádio, jornais e tevês, no que se configura como a mais importante manifestação política em muitos anos na capital do país.
Monumentos, árvores, postes, semáforos, em pouco tempo se transformaram em espaços de protesto, estampando faixas, cartazes etc.
"La retraite avant la mort", aposentadoria antes da morte, vocifera a multidão.
Estudantes, filhos de operários, donas de casa enfrentam a repressão policial a custo de colocar em risco a própria vida.
A democracia expressa a mais convincente defesa do estado de Direito e das conquistas dos servidores públicos.
Mais admirada atração turística de Paris, a Torre Eiffel fechou.
Enquanto acompanho isso, através dos jornais franceses, é-me inevitável relembrar a covardia dos brasileiros em face da criminosa reforma levada a efeito há poucos dias no Brasil. Matadora de si mesma, a classe média brasileira quedou em silêncio contra as investidas monstruosas da equipe econômica do governo Bolsonaro. Equivocadamente identificada com a elite que a trucida, não teve olhos para ver o que faziam contra os seus interesses mais legítimos. Movida a ódio, lambeu as botas do patrão, afiou com o suor do rosto a lâmina perversa de sua própria degola, aplaudiu nas praças os seus algozes. Uma vergonha.
Números dos Indicadores Sociais do IBGE, divulgados há pouco, apontam para uma verdadeira tragédia: mais de 13 milhões de brasileiros sobrevivem com menos de R$ 145 por mês.
A dar fisionomia ainda mais revoltante, a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), em números referentes a outubro, destaca que 1% mais aquinhoado dos brasileiros cresceu 8,4% no ano passado, enquanto os 5% mais pobres veem despencar 3,2% de sua capacidade de compra.
É inequívoca a transferência de renda de pobres para ricos, no perfil mais perverso do capitalismo selvagem que toma conta do país desde janeiro de 2019.
O desmonte dos direitos e das conquistas dos trabalhadores se dá a olhos vistos, numa velocidade sem precedentes em toda a História do Brasil.
Alastra-se a informalidade no mercado de trabalho, achata-se a pirâmide social  ---  remediados empobrecem, despossuídos  caem abaixo da linha de pobreza, miseráveis veem-se condenados a uma realidade insuportável.
O que é pior e mais indigna: com a conivência de pelo menos 30% dos eleitores do país, e o silêncio obsequioso de segmentos que se dizem esclarecidos, que leem e escrevem, que não se acanham de aplaudir o fascismo que ressurge, indiferentes à desigualdade e à pobreza que põem por terra a dignidade de um país.

  
 
 

 

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Essa Gente, por Chico Buarque

Há muito não lia de uma sentada um livro inteiro. O fiz, entre 20 horas de ontem e pelas duas, duas e pouco da madrugada desta sexta-feira 29, tendo nas mãos Essa Gente, o recém-lançado romance de Chico Buarque de Hollanda. Como um Fellini de 8 1/2, no cinema, Chico narra a história de um escritor decadente, financeira e afetivamente, diante de uma crise que o leva a tentar negociar prazos com seu editor, tudo em meio aos tumultos que tomam conta do país entre o ano de 2016 e setembro de 2019. 
Mas é a forma como o escritor constrói a sua narrativa que faz do romance uma verdadeira obra-prima do gênero. Misturando fragmentos de diários, mensagens, anotações diversas, Chico joga com temporalidades, pontos de vista e discursos os mais diferentes e nem sempre nitidamente concatenados, o que pode se constituir no primeiro desafio para o leitor menos atento. 
Aos poucos, todavia, a narrativa vai se clarificando e se pode perceber nítidas interlocuções entre o registro memorialístico do autor e a ficção de feitio mais refinado, prova inconteste de que o artista genial da poesia encontra definitivamente seu equivalente na prosa. 
Com Essa Gente, numa trajetória ascendente que se estende de Estorvo (1991) a O Irmão Alemão (2014), Chico Buarque de Hollanda só evoluiu. Não que já não fosse de alta qualidade a sua arte na narrativa de ficção, mas é que o muito bom se tornou irrepreensível. Deparamos, agora, com um romancista absolutamente consciente da carpintaria romanesca. A estrutura é sólida, em que pese, como disse, estar calcada num autêntico quebra-cabeça de situações dramáticas que se desenvolvem em torno de um núcleo central dominante, bem como se pode identificar aquilo que diferencia esta forma narrativa das de suas congêneres, o conto e a novela. Aquele é curto, o número de personagens pequeno e o desfecho quase definitivo. Esta, por sua vez, se, como o romance, apresenta uma multiplicidades de situações dramáticas, sua ocorrência se dá sucessivamente, e não simultaneamente, como no romance. 
Mas as qualidades estéticas do Chico Buarque prosador vão muito além disso: na linha dos gênios da narrativa de ficção, a exemplo de um Machado de Assis, para ficar no nosso maior representante do gênero, em Chico Buarque sobressai o não dito, o não revelado, o dissimulado, o que de certo modo pode frustrar quem esperava do escritor um libelo contra o Brasil de hoje, tragado pela garganta profunda do neofascismo bolsonariano. Não, tanto quanto o poeta extraordinário, o Chico romancista transita com sutileza por sobre o chão escorregadio de um país politicamente desmoralizado. Nada aqui constitui um registro de cunho naturalista, embora sejam quase visíveis os acontecimentos de nossa realidade palpável: o golpe contra a presidente Dilma Rousseff e a prisão com motivações políticas do ex-presidente Lula, por exemplo.
Por último, dadas as limitações de espaço e os fins a que se destina esta resenha, vale ressaltar o que sobrevoa o livro de autorreferencial: há muito mais do Chico Buarque de Hollanda em Manuel Duarte que a mera sugestão sonora do sobrenome. Nada que justifique, porém, tachar o livro de autobiográfico. Apenas o olhar atento, a sensibilidade política, a percepção ideológica jamais escondida, remetem o leitor à figura incontornável do artista, testemunha de seu tempo, de fatos e cenas que não devem mesmo ser esquecidos. 
No mais, o que existe de relevante por trás da história de Manuel Duarte é um romancista maduro, que demonstra, como um mestre, o quanto é descabido e desprovido de conhecimento técnico julgá-lo um escritor menor que o letrista. Se o poeta dispensa comentário, pela genialidade que sua vasta produção atesta, o romancista acaba de nos presentear com um livro digno de figurar entre os maiores do gênero publicados no Brasil nesses muitos anos. 
Para não falar do componente reflexivo de uma literatura que se pensa e à própria linguagem como se fora um "romance de pensamento", permeado de fluxos de consciência, solilóquios e monólogos, marca recorrente em boa parte da produção do Chico Buarque escritor  ---  e da qual, sabemos, se origina o colorido plurilinguístico de qualquer grande obra de arte. 
Um livro notável.
 
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Leonardo da Vinci, 500 anos

Neste ano de 2019, contam-se 500 anos desde a morte de Leonardo da Vinci. Autor de algumas das obras de arte mais reverenciadas de todos os tempos, o artista genial tem perdido espaço para o cientista, rótulo com que, estranhamente, o próprio Da Vinci considerava-se melhor identificado como criador. Para o historiador da arte mais atento, todavia, o fato diz menos da qualidade extraordinária de sua produção como pintor e mais dos interesses políticos que, infelizmente, estão por trás da manipulação do seu nome com interesses muitas vezes inconfessáveis. Desprestigiar artistas, atacá-los como nocivos à sociedade, a exemplo do que ocorre hoje no Brasil, urge ressaltar, é próprio do fascismo. Com Da Vinci, deu-se exatamente assim. Também ele foi execrado por sua opção sexual, acusado de sodomia, colocado à margem pela sociedade do seu tempo como figura nefasta.  
Quanto a valorizar o inventor em detrimento do artista, o ditador italiano Benito Mussolini é, supostamente, o primeiro responsável por essa realidade e os objetivos com que promoveu essa inversão não deixam dúvidas. O líder fascista, que se considerava "O maior italiano vivo", lá por fim dos anos 30 (1939, para ser mais preciso), de olho na sua promoção como figura central do nacionalismo desenfreado por que se orientam os típicos fascistas mundo afora, levou a efeito uma grande exposição das realizações de Da Vinci no campo da tecnologia, não sem antes reverenciar o pintor da Mona Lisa como "O maior italiano do passado".
O fato é que, mesmo após a derrocada do fascismo na Itália, a figura de Leonardo Da Vinci esteve sempre grudada à do cientista, ao homem de visão prática que anteviu algumas das grandes conquistas do mundo tecnológico em detrimento da figura do militante transgressor, homossexual assumido e "artista das mulheres", a quem, na contramão do que se fazia mesmo em se tratando da arte, deu visibilidade num mundo dominando por reis, papas e príncipes. Diante do artista, diga-se com todas as letras, o inventor era pequeno e suas realizações mero jogo de curiosidades comuns às grandes inteligências irrequietas.
Esta a tese por demais oportuna da mais que recomendável biografia do gênio do Renascimento assinada pela jornalista e historiadora da arte Kia Vahland, recém-chegada às livrarias da cidade. Para Vahland, as contribuições de Da Vinci para a engenharia moderna, por exemplo, são insignificantes se comparadas ao que foi capaz de fazer como artista, e, mais que isso, como um estudioso da técnica pictórica, alguém empenhado em descobrir novas possibilidades no campo da pintura e da escultura, razão por que é inegável a influência exercida por ele sobre outros grandes nomes de Renascimento, como Rafael, Giorgione, Ticiano e Michelangelo. Sobre isso, afirma: "Se estes avanços da engenharia tivessem sido os elementos mais importantes da sua vida, teria sido um homem de propósitos fracassados".
É nessa perspectiva, pois, que Leonardo da Vinci e o Feminismo (Novo Século Editora, 2019), vai além, por exemplo, de outras biografias publicadas no espectro dos 500 anos de morte de Leonardo da Vinci, com destaque para o também excelente Leonardo da Vinci, o elogiadíssimo livro de Walter Isaacson, publicado em 2017. Se Isaacson explorou um Da Vinci mais real, traçando-lhe um retrato pujante e vívido, com destaque para o inventor, o homem dotado de uma capacidade inesgotável de criar, Vahland sustenta a sua biografia incontornável na perspectiva de um gênio indômito, que se debruçou sobre a prancha a fim de "compreender o mundo e, compreendendo o mundo", expressá-lo artisticamente. É aqui, portanto, que se faz uma revisão da vida e da obra de um dos maiores prodígios de que se tem notícia. Resgata-se a genialidade do artista, criador de uma das mais significativas obras de toda a história da arte, não apenas do ponto de vista formal, para quem "a pintura é a mais elevada de todas as ciências e o principal meio de comunicação de seu tempo", mas, quiçá com o mesmo nível de importância, o explorador de temas até então proibidos. As mulheres, que retratou na expressiva maioria do que nos legou como pintor, em Da Vinci, surgem dotadas de espiritualidade, alma e vontade própria. Até então enquadradas de perfil, como a esconder os olhos com que comunicam a sua força interior, o seus fascínio e a sua energia vital mais irresistível, as mulheres de Da Vinci colocam-se de frente, encaram com altivez e sortilégio aqueles que lhe negavam o direito à vida em sua dimensão mais absoluta. Como afirma não menos desafiadoramente Kia Vahland, "Ao aliar-se às mulheres, Leonardo também emancipa a arte. Esta deixa de ser a máquina de sonhos que os clientes lhe pedem e ganha uma vida própria". Mona Lisa, A Virgem e o Menino com Santa Ana, Ginevra de Benci, entre outras mulheres por ele pintadas, que o digam.

 




  

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Um lampejo de correção

Só mesmo num país intelectualmente atrasado (e moralmente corrompido) causa espécie a decisão dessa quinta-feira do STF contra a prisão em segunda instância. O inciso LVII do artigo quinto da Constituição não permite que se faça confusão quanto a isso, na mesma linha do que materializa o artigo 283 do Código de Processo Penal, objeto de julgamento sob o ponto de vista de sua constitucionalidade.
Não tenho formação na área jurídica, mas é bastante que se saiba ler e interpretar com segurança o que o texto diz em linguagem referencial, aquela que não deixa margem para interpretações desencontradas. Ir na contramão disso, reafirmo, é revelar incompetência intelectual ou desfaçatez moral. Além de um exercício de ódio doentio e explícito ao ex-presidente Lula, claro. Se o resultado do julgamento deixa-o "indignado", pois, é só escolher em que categoria você se coloca. É uma questão de consciência, não mais que isso.
Em tempo, o que vai aqui afirmado se aplica com a mesma objetividade aos cinco ministros que votaram pela manutenção da prisão em segunda instância, numa indisfarçável demonstração de que se curvam a subjetivações inconfessáveis. Que o façam, pelos desvios morais de que estão acometidos, parece-me mesmo algo inevitável, posto que a densidade de suas formações acadêmicas não me permite concluir em contrário. 
O mal pior, todavia, é que brincam com as palavras a fim de defender o indefensável, corcoveiam num "juridiquês" irritante a fim de tentar encobrir suas motivações, bem na linha do que fez com notável destaque (e afetada teatralidade) o  ministro Roberto Barroso, mal conseguindo esconder seus desvios éticos e comportamentais. Vejamos: --- "A presunção de inocência é muito importante, mas o interesse da sociedade num sistema penal eficiente também é muito importante". Nunca antes pude ver um ministro de nossa mais alta corte agir de forma tão cabotina, como a querer descarregar seus conflitos de personalidade de modo a ficar de bem com o público, esse segmento neofascista que se diz envergonhado com o resultado do julgamento.
Qualquer homem de bem, no gozo de suas faculdades mentais plenas e dotado de uma mínima capacidade de julgar com isenção, sabe que, a tomar por esteio o que diz a Constituição, não poderia ser outro o resultado: liberdade para aqueles que, ao arrepio da Lei, tiveram seus direitos civis suprimidos e ignorada a incontornável presunção de inocência até o trânsito em julgado, isto é, quando não couber mais recurso.
Mas é cedo para comemorar o que simplesmente parece justo, um reparo ao que se fez à Carta Magna do país com a intenção de influenciar os destinos políticos da Nação, leia-se prender o ex-presidente Lula e abrir caminho para a eleição de um fascista como Jair Bolsonaro. A entrevista do ministro Edson Fachin à Globo, mal encerrada a sessão dessa quinta-feira 7, dizem-no com todas as letras. 
Essa gente não resiste a muita pressão.







quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Coringa, alegoria da revolução

 
Mal saio do cinema e massifico entre os amigos, pelo WhatsApp, o meu entusiasmo com Coringa, o aguardado filme de Todd Philips a que assisti no domingo 6. Ambientado em Nova York (Gotham City), durante o governo Ronald Reagan, inícios da década de 80, Coringa, mais que Bacurau, o aclamado filme de Kléber Mendonça Filho, é uma porrada no fígado dos entusiastas de extrema-direita que assolam o Brasil desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República.
Arthur Fleck, o protagonista, é um palhaço malsucedido que vive com a mãe e é portador de um distúrbio psiquiátrico que o leva a ser alvo de maus-tratos, bem na linha do que ocorre numa das sequências mais dolorosas do filme quando Fleck é brutalmente espancado por um grupo de rapazes durante uma viagem de metrô. 
Cansado de ser vítima de uma sociedade desumana, perversa e insensível, num tipo de reação que bem sinaliza para o fato de que as contradições sociais geram elas mesmas seus monstros, Fleck mata-os violentamente. O recado, a partir daí, está dado: a verdadeira violência é a do sistema em que pobres, negros, índios e homossexuais são historicamente pisoteados por uma elite econômica inescrupulosa e egocêntrica, essa mesma elite que, no Brasil dos dias atuais, festeja a política econômica que suprime direitos sociais e trabalhistas e condena à quase absoluta miséria a maioria da população.
Dispensável dizer que Todd Philips não terá pensado no Brasil, mas nos Estados Unidos, onde, desde os anos 80, os problemas sociais se agravam em proporções alarmantes: a desigualdade cresce; a violência é recorrente mesmo em escolas, cinemas e parques de diversão; as minorias voltam a ser objeto das mais impensáveis formas de violência; o subemprego atinge níveis assustadores e os serviços essenciais, saúde, educação, moradia etc., caem a níveis de qualidade preocupantes nos dois últimos anos. Para se ter uma ideia, pessoas morrem por não terem acesso a remédios básicos, como a insulina, por exemplo. 
Mas o filme, pelas mesmas razões, cabe como uma luva na realidade do Brasil contemporâneo. Essa a razão por que, pode-se notar à saída do cinema, há entre grande parte do público um certo ar de decepção com o filme: é que muitos se veem na história do clown Fleck, não como ele, vítima de uma sociedade sexista, autoritária e moralista, mas como os donos do dinheiro que medem os menos favorecidos com o metro do seu caráter criminoso. Gente que pisa nos menos favorecidos, que considera que índio é bicho, preto bandido, homossexual merecedor de peia, e para quem é preciso manter a "casa em ordem" ainda que sob os diferentes mecanismos de repressão.
Por tudo isso, Coringa é, insisto, um cruzado no fígado. Não bastasse a sua densidade do ponto de vista conteudístico, no entanto, é um filme tecnicamente perfeito. Com um roteiro extremamente bem construído, uma direção de atores irrepreensível e uma interpretação sublime de Joaquim Phoenix (candidatíssimo ao Oscar de Melhor Ator) no papel de Fleck,* tudo indica, é o filme do ano. A sequência da "revolução" dos marginalizados, no final do filme, sob a liderança simbólica de um clown, haverá de entrar para a história do cinema por sua beleza a um só tempo bestial e poética. Imperdível.

* Robert de Niro, como o apresentador de tevê vaidoso e oportunista a serviço do capital, está também soberbo.

     
 
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Mulheres Fantásticas

                                                                                                                         
Pouco em qualidade estética se tem produzido desde Carpentier, Borges, García Márquez, Cortázar, Asturias e Onetti, para citar aqueles que me ocorrem neste instante, em termos de narrativa fantástica. 
O próprio conceito, em que pese o que nos legaram nomes gigantescos da crítica literária, a exemplo dos mais antigos, como Nodier, Chklóvski, Tynianov e Eichenbaum, ou mais recentes, como Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Genette e Julia Kristeva (sem esquecer Foucault, Derrida, Deleuze e tantos outros), passou por transformações nunca desprezíveis. Afinal, o que existe de importante a diferenciar o fantástico do mágico ou maravilhoso, na linha do que se gastou tanto papel em busca de uma definição jamais encontrada?
Teorias de novo? Por favor, não! Chega de academia, queremos literatura! 
Pois bem, é isso que faço quando recomento aquele que me parece o melhor livro do gênero no ano de 2019. Sem meias-palavras, refiro-me ao livro de contos Mulheres Fantásticas, do poeta, romancista e contista Clauder Arcanjo, cuja obra vai aos poucos constituindo um conjunto literário de peso, mesmo quando, por inevitável, temos pela frente  --- no caso do realismo fantástico que o título do livro sugere  ---, autores imortalizados pela força de sua arte extraordinária, nomes destacados acima e aos quais se somam, permitam-me, Kafka de A Metamorfose e Jan Potocki de Manuscritos de Saragoça; Borges de História Universal da Infâmia e O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, para mencionar obras-primas da grande literatura. Estes são monumentais, é fato, mas temos os nossos craques também.
Ancorando suas narrativas na "mentira" a que se refere Charles Nodier, no clássico Du Fantastique en Littérature (1830), tipificando o terceiro momento da trajetória do homem como ser capaz de imaginar (os outros dois são o da poesia, fase ingênua das sensações diante da realidade, a que se segue a do deslocamento do conhecido para o desconhecido), Arcanjo tece, com o engenho de ficcionista raro, suas histórias maravilhosas sobre o mundo feminino, todas elas tendo como cenário a mítica e fascinante Licânia, "perdida no sopé do Serrote da Rola, à beira das águas do Acaraú". 
Assim, deparamos com os mais diferentes e impensáveis tipos de mulher: a mulher galinha (sem a conotação vulgar atribuída à metáfora), a mulher sapo, a mulher abelha, entre outros, e vamos, como que encantados, penetrando este universo eternamente desconhecido e sedutor da feminilidade.
É notável, todavia, a forma como o narrador mistura real e sobrenatural, passando de um a outro, aqui e além, com a habilidade de um bruxo a nos conduzir pela mão ao território do estranho, do inesperado, do maravilhoso, sobre cuja ambiguidade assenta a sua prosa a um tempo referencial e poética, como a desvendar o imponderável da existência humana por que, cedo ou tarde, aqui ou além, somos todos sob algum aspecto dominados. Impossível ao leitor com um repertório acadêmico mais avançado, portanto, não lembrar de um certo Freud, ou mesmo Jung e Lacan, cada um a seu tempo e por determinado viés.
Ler "Mulheres Fantásticas", qualquer que seja a perspectiva de leitura, contudo, pressupõe firmar com o narrador um pacto de ruptura com o inteligível platônico, pois que  a realidade é mesmo produto de nossa imaginação, e dela é que nasce a beleza da vida e das coisas  ---  e com que se constrói "o império do pensamento humano" no dizer deste que foi o primeiro grande estudioso da narrativa fantástica.
De resto, Mulheres Fantásticas fez-me lembrar Vergílio Ferreira, o grande escritor português: "O fantástico não está fora do real, mas no sítio do real que de tão visível não se vê".       
Por último, faço questão de ressaltar que o requinte da edição, diga-se em tempo, é de encher os olhos. Um livro notável.

  

 

  

sábado, 28 de setembro de 2019

A vida invisível de Eurídice Gusmão

Por curioso, não assisti, ainda, ao filme, plasmado no livro homônimo de Martha Batalha. Mas li este que é o romance de estreia da autora pernambucana, 47, nascida no Recife. Li, que fique claro, meio que por influência do Karim Aïnouz, cujo filme ganhou o prêmio "Um certo olhar", seção dos profissionais de cinema, no Festival de Cannes 2019. 
Arrebatou-me.
Com um perfume machadiano que lembra a fase romântica do bruxo de Cosme Velho, e a leveza rara de Lygia Fagundes Telles de Ciranda de Pedra (1954), por exemplo, A vida invisível de Eurídice Gusmão, ambientado no Rio de Janeiro dos anos 40, narra a comovente história das irmãs Gusmão desde o desaparecimento, sem dar notícias, de Guida, o drama de Eurídice, e a repercussão dessa perda na vida da pacata dona de casa na primeira metade do século 20.
Nada, assim, na ligeireza do primeiro olhar, que exceda, insisto, ao que fez Machado de Assis na fase preconceituosamente classificada "imatura". Há, natural, o toque prazeroso da leitura, a tessitura clara e envolvente, sem que lhe falte, como não falta a Ressureição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), para ser mais didático, a impostura sutil da fase realista de Machado (que começa a partir de 1881), nem a poesia doce de Lygia no livro de estreia. 
É romance na acepção rigorosa do termo, cuja estrutura, mesmo lembrando os clássicos citados, mostra-se original, criativa e, acima de tudo, reveladora do absoluto domínio da narrativa que surpreende em se tratando de um livro de estreia.
Se em Machado de Assis o contexto nos remete à sociedade carioca de fins do século 19, com ênfase para a figura aparentemente submissa da mulher doméstica, educada para ser boa esposa (aos olhos dos leitores menos atentos, sobretudo), e em Lygia deparamos com o desmembramento da família e sua repercussão na vida de Virgínia, personagem central do romance, Batalha explora o universo feminino em nova chave, mais simbólica, mais empenhada em espelhar a mulher comum, avós e bisavós que povoam este país tão marcado por contradições, tabus e machismos de variados carizes.
A novidade? Bem, a novidade está em que Martha Batalha constrói um romance sólido, calcado num cruzamento de histórias individuais que seduzem o leitor da primeira à última de suas 185 páginas, cujos núcleos dramáticos trazem à tona a vida íntima de personagens fascinantes: Zélia, a vizinha fofoqueira; seu pai, Álvaro, o jornalista conquistador e beberrão que leva a família a desconstruir-se impiedosamente; a cuidadora de crianças Filomena, ex-prostituta convertida; o solteirão Antônio, perdido de amores por Eurídice e Luiz, o ricaço republicano. Todos eles, para além do que é comum em romances do gênero, elaborados com requinte, pois que Batalha os retrata com elementos epistemológicos que, a um só tempo, deixam ver da crueza naturalista ao psicologismo freudiano.
A forma como tece, analisa, disseca a amargura existencial de Zélia, uma das personagens mais bem imaginadas do romance contemporâneo, é digna de um mestre: "Até que Zélia resistiu bastante. Resistiu às roupas remendadas e às calcinhas de segunda mão. [...] Resistiu às risadas dos primos e à falta de carinho da mãe. [...] Resistiu à sopa rala e ao choro dos irmãos mais novos".
Com a sensibilidade da grande artista e a sutileza dos narradores "perversos", que sabem desvendar o segredo da miséria alheia e nos contagiar como se seus cúmplices, Batalha vai desfazendo os nós do enigma, expondo as vísceras do infortúnio de Zélia: "Mas Zélia não resistiu à adolescência. Quando percebeu dois caroços de feijão por trás do peito, quando sentiu as dores no ventre baixo acompanhadas de sangue, quando descobriu desejos e temores que não sabia de onde vinham, nem para que serviam, seu inflexível otimismo se flexionou".
"Zélia tem boca de gaveta, Zélia tem boca de gaveta!", os primos agora diziam.
É lapidar, emblematicamente cruel, como só nos grandes escritores é possível encontrar com tamanha força, o parágrafo com que a narradora desfecha o drama da ultrajante Zélia, como a expor a origem de sua maledicência e sua maldade sem freios. 
Sob este aspecto, desculpando-me pela extensão do fragmento, considero relevante citá-lo, porque notável como narrativa, primoroso pelo ritmo e pelo estilo: "Numa tarde com poucas pessoas na casa ela foi até o banheiro. Trancou a porta e conferiu seu rosto no espelho. Aquela não era mais a imagem da criança levemente estrábica. [...] Aquela era a imagem de uma moça com cabelos desajeitados, olhos e nariz desajeitados, espinhas salpicando a testa desajeitada e uma imensa boca, que esbanjava lábios e dentes. Era uma boca abundante, desnecessária, excessiva. Duas linhas grossas que cortavam o rosto sem piedade. Zélia permaneceu olhando a própria imagem enquanto formava a opinião que teria de si para o resto da vida. Era uma mulher feia".
Se me vali de uma personagem "secundária", é que não me permiti ser spoiler desta vez. 
Quanto ao romance, é coisa soberba. Vale conferir, se não o fez ainda.
   



  
     

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Prólogo, ato, epílogo

Na mesma semana em que foi tratada como "aquela mulher sórdida" pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, num dos episódios mais abomináveis de que se tem notícia em toda a história da pasta, a deusa do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, lança Prólogo, ato, epílogo (Companhia das Letras, 392 págs.), autobiografia produzida com a colaboração de Marta Góes.
O livro assinala as comemorações pelos 70 anos de carreira da mais notável atriz brasileira desde que morreu Cacilda Becker, nome de maior prestígio até o final dos anos 60.
Fernanda Montenegro, da altura dos seus irretocáveis 90 anos, contados com exatidão no próximo dia 16, conta no livro a sua trajetória desde a infância, no Rio de Janeiro, onde nasceu no bairro de Campinho, entre Jacarepaguá, Cascadura e Madureira, até tornar-se a nossa mais "respeitada" atriz do rádio, do teatro e do cinema. Comenta seus trabalhos de maior repercussão nos palcos, peças que marcaram a história do teatro nacional, com destaque para as memoráveis montagens de A Moratória (1955), O Beijo no Asfalto (1961), Fedra (1986); no cinema, A Falecida (1965), Eles não Usam Black-tie (1981), Central do Brasil (1998) e na televisão, A Morta sem Espelho (1963), Guerra dos Sexos (1983) e O Outro Lado do Paraíso (2017).
Mas ler as memórias de Fernanda Montenegro (li-as em ebook), é muito mais que revisitar a grande agenda do teatro e do cinema brasileiros, mesmo quando a atriz verticaliza seus comentários cobertos de lucidez sobre a arte no país e seu entorno, na linha do que faz referindo-se às desastrosas ações do governo de Fernando Collor, como fechar o Ministério da Cultura, ou quando se refere à campanha das Diretas Já, de que participou desde o primeiro evento no dia 12 de janeiro de 1984 , em Curitiba. É também se deleitar com a leveza de seu depoimento e a forma não menos delicada de recordar passagens emocionantes de sua vida, na perspectiva do que faz sobre a primeira viagem à Europa, em 1974, com o marido, Fernando Torres, e os filhos: "Voamos até Cagliari e lá tomamos um ônibus para Oristano, a cidade mais próxima da aldeia dos meus sardos. [...] A metade da casa de pedra em que meus avós viveram ainda estava lá". A essa altura de suas recordações, reporta-se a outras viagens, como a de 2010, para receber homenagens de autoridades em Bonarcado, Roma e Milão.
Sobre o ofício de atriz, dá um depoimento um tanto amargo: "Troquei de pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura". E arremata, citando Cecília Meirelles: "Em que espelho ficou perdida minha face?". Vai além, relembra os amigos, os atores e atrizes que lhe serviram de modelo, gente como Grande Otelo, Bibi Ferreira e a francesa Henriette Morineau, de quem ressalta a " disciplina absoluta". Para terminar com a declaração que nós, seus admiradores confessos, jamais queríamos ouvir: "Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Mas acordo e canto".
Em sua visita recente a Fortaleza, homenageada durante a solenidade de abertura do CineCeará 2019, Fernanda Montenegro repreendeu com elegância as atrizes de A Vida invisível, filme de Karin Aïnouz, que, desatentas, deixavam o palco do José de Alencar sem o rito do agradecimento à plateia: "Psiu, voltem!" tonitruou Fernanda, "Um elenco não deixa um palco assim!"
E dando-lhes as mãos, curvou-se no proscênio com a dignidade de sempre, enquanto duas lágrimas, confesso, rolaram-me pela face serenamente.
 

   

 

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Fellini --- Vida, Poesia e Sonho

Em 2020 o mundo do cinema festejará os 100 anos de Federico Fellini. A Faculdade Ari de Sá, a Academia Cearense de Cinema e o Grupo de Estudos Só Freud, reeditando o pioneirismo com que ressaltaram a obra de Ingmar Bergman por ocasião do seu centenário, em 2018, realizando um dos mais importantes acontecimentos sobre o cineasta sueco em nível nacional, antecipam-se mais uma vez como instâncias de discussão da produção cinematográfica mundial e abrem o debate, nesta quinta-feira 12, para a reapreciação da obra de Federico Fellini.
Como um dos seus coordenadores, e debatedor oficial do evento, ao lado de Regina Alcântara, Régis Frota e outros cinéfilos da cidade,* não poderia deixar de ressaltar esta iniciativa como uma das mais significativas no âmbito de valorização e discussão da obra de um dos gênios da sétima arte.
Filho de Rimini, cidade litorânea da Itália, Federico Fellini, no entanto, é mais que um dos gênios do cinema. É, sob muitos aspectos, na mesma proporção de Ingmar Bergman, um dos realizadores mais originais, mais inventivos e mais "autorais" de todos os tempos. Sua obra, perpassada de elementos estéticos em igual medida transgressores e poeticamente prodigiosos, sustenta-se, entre outras características, num tipo de memorialismo apurado como expressão artística, e faz de Fellini um criador ainda não examinado em toda a sua complexidade. Esta, mais ainda, uma das razões por que se deve aplaudir o seminário Fellini, Vida, Poesia e Sonho.
Mas Fellini, dizíamos, é muito mais que isso. Embora historicamente exaltado pelo esteticismo de sua obra, e pela inegável vocação para a expressão de suas inquietações autobiográficas, que constituem mesmo uma das pedras de toque de sua cinematografia, falar de Federico Fellini é falar de um artista conscientemente dedicado a questionar qualquer tipo de aura ou mistificação da arte. Nesse sentido, ainda que se valendo de uma imaginação vertiginosa na construção do filme, na perspectiva do que fez em películas emblemáticas do seu estilo, como Os Boas Vidas e Amarcord (ambos inseridos na programação do evento), a filmografia de Fellini é um grito de resistência contra os mecanismos de dominação da sociedade capitalista e da cegueira resultante da Industria Cultural.
Oriundo da geração dos anos 50, o Neorrealismo à frente, Fellini é legítimo representante do que se convencionou chamar de "política dos autores", na expressão feliz de François Truffaut. Mas isso, se se presta a evidenciar o eixo estético por que se norteavam os cineastas do Neorrealismo e da Nouvelle Vague, sobretudo, que em linhas gerais tinha por objetivo evidenciar a importância do diretor no processo cinematográfico, mais ainda deve destacar o caráter político do cinema. Desse modo, se a filmografia do autor de Oito e Meio dá a ver o seu apuro estético, o absoluto domínio da carpintaria cinematográfica e a beleza plástica de uma arte superior, não se deve fechar os olhos para o substrato filosófico que a norteia. Sua arte se contrapõe aos valores culturais dominantes, protesta contra os fatores da indústria e do comércio, o poder dos grandes estúdios e do culto às celebridades. Esta a razão por que seus filmes, quase sem exceção, giram em torno dos marginalizados, dos transgressores, dos clowns, na linha de outros gênios, como Charlie Chaplin e, em dimensões menores, William Shakespeare. 
É contra todo e qualquer obscurantismo, todavia, que se volta sua arte, sobretudo quando repensa criticamente certa ingenuidade do Neorrealismo em face dos valores da era fascista. Ou seja, seu cinema propõe, sob este aspecto, a desconstrução dos métodos tradicionais, torna-se impessoal diante dos conflitos do seu tempo, encara os valores da tríade Deus, Pátria e Família, e aponta caminhos subversivos nos campos social, político e sexual, erguendo-se como discurso simbólico contra as práticas autoritárias, a censura e o nacionalismo desenfreado e cego.
  • Domingos Leitão, Hildemberg Carnaúba, Evandro Menezes, Marcos Fernandes e César Rossas.  
  
 

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

O Brasil veste-se de preto

A data emblemática traz-me à memória as palavras de Edmund Burke (1729-1797) em livro clássico sobre a Revolução Francesa: "A pátria para fazer-se amar, deve ser amável." 
De tanto vê-la (a pátria) objeto de hipocrisia e desrespeito aos valores fundamentais do homem, movido pelo ideário iluminista, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) propagou em bom francês: "Ces deux mots patrie et citoyen doivent être effacés des langues modernes" (sic), ou seja, "Estas duas palavras pátria e cidadão devem ser apagadas das línguas modernas". 
Houve, entre os escritores clássicos, aqueles que apregoaram ser "doce e honroso morrer pela pátria", a exemplo do que fez, em Odes, Horácio (65-8 a. C.), e mesmo quem o tenha feito com um nível de abstração ligeiramente confuso, como Stendhal (1783-1842), para quem "a pátria é o lugar em que encontramos o maior número de pessoas que se parecem conosco".
Sou de uma geração que precisou de esforços para readquirir o sentimento telúrico que os festejos pátrios ensejam. É que por trás dos nossos maiores símbolos escondiam-se censores, policiais violentos e, em grande escala, torturadores. 
No colégio, em que éramos obrigados a cantar o Hino à Bandeira, hasteada sob o olhar cúmplice do diretor-geral e ante a nossa intranquila compenetração, não podíamos sequer conversar em grupos de alunos: "Circulando, circulando, circulando", a voz autoritária a nos dispersar.
Os nossos corações, contudo, como no poema de Drummond, estavam no México, "batendo pelos músculos do Gérson, a unha de Tostão, a ronha de Pelé, a cuca de Zagalo, a calma de Leão e tudo mais que liga o meu país a uma bola no campo e uma taça de ouro", enquanto jovens brasileiros eram trucidados nos porões da ditadura ou atirados ao mar do alto de helicópteros.
"Prá frente Brasil, Brasil..." bradava o povo a plenos pulmões.
"C'est la cendre des morts qui créa la patrie", está em A Queda de um Anjo, de Lamartine (1790-1869), pois que "É a cinza dos mortos que criou a pátria".
Pátria são todos os lugares em que somos respeitados e temos os nossos direitos assegurados. Pátria é o sentimento que nos une na alegria e na dor, e que nos enche o peito de esperança e de fé no porvir. Pátria é muito mais que limites e fronteiras, muito mais que uma bandeira no alto de um poste, que um hino a exaltar riquezas e valentias. Pátria é liberdade de ser o que se quer, de fazer escolhas... pátria são índios e negros, brancos e mulatos... pátria são mulheres, trabalhadores, artesãos, artistas, professores... Pátria é justiça, pátria é escola de qualidade, saúde, moradia, trabalho, lazer... Florestas... 
"A pátria é a necessária iniciação na pátria universal", para citar, ainda uma vez, Lamartine, a nos chamar a atenção para o espírito de cordialidade para com os nossos vizinhos, passo indispensável no rumo da fraternidade, da harmonia e da paz universais.
Pisoteado em sua dignidade, o Brasil dos brasileiros veste-se de preto desde a antemanhã.
 

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O morto que não morreu

Entre gôndolas e estantes, na Bienal 2019, deparo com o escritor Oswald Barroso. Sabendo da minha pretensão de escrever com Régis Frota livro sobre a cinefilía no Ceará, indica-me a leitura do recém-lançado Aproximações, do pai, Antônio Girão Barroso, que li praticamente de uma sentada, gostoso que é.
Trata-se de uma coletânea de crônicas que sucede ao já muito aplaudido Poesias Incompletas, com que Oswald Barroso praticamente abraçou em livro a obra desse artista de múltiplas linguagens, e poeta na mais rigorosa expressão da palavra. 
Antônio Girão Barroso, sabemos, não foi um escritor prolífico, pelo menos com publicações em livro, embora tivesse seus "bolsos", como lembra o filho e organizador da seleta, sempre "carregados de poemas" que se perderam no tempo. Isso não desmerece, por certo, a qualidade de sua obra, do poeta de extração modernista e exímio construtor de imagens do cotidiano ao cronista de prosa enxuta, econômica, mas, não raro, intencionalmente desabrida.
O livro está dividido em oito partes: I Literatura, composta de resenhas, crítica e textos de teoria literária; II O Modernismo no Ceará, que transita entre o ensaio curto e a historiografia; III O Grupo Clã, em que procede a sucinto levantamento das diferentes tendências do movimento; IV Poesia Concreta, sobre o concretismo no Ceará; V Os Congressos de Poesia e de Escritores, registros de eventos marcantes da época; VI A S.C.A.P/O Salão de Abril, breve registro acerca dos eventos da Sociedade Cearense de Artes Plásticas; VII Cinema, com crônicas curtas sobre filmes e diretores; VIII Contos, Ensaios, Crônicas, com alguns contos e textos diversos.
Abrangendo em grande parte textos produzidos nos anos 30 e 40, é natural, o livro exige do leitor um certo reenquadramento histórico, nomeadamente quando trata, por exemplo, de cinema, pois que o olhar de Barroso limita-se ao que havia de disponível no jargão da crítica cinematográfica, mesmo a grande crítica, a quem o autor cearense nada deixa a desejar. Antes pelo contrário: Antônio Girão Barroso, bem no estilo personalíssimo que é uma de suas marcas como intelectual e artista, antecipa-se muitas vezes ao que os mais prestigiados críticos de cinema brasileiros só muito mais tarde viriam a fazer. Na sua opinião, e na perspectiva do seu olhar atento às particularidades de uma arte extremamente complexa, deve-se atribuir ao realizador a "personalidade" estética do filme, algo muito próximo daquilo que viria a nortear a política do cinema autoral.
É nessa ótica, por sinal, ecoando o conhecido aforisma de André Gide, para quem "O assunto (em Arte) é quase nada, o modo de tratá-lo é tudo", que Barroso escreve texto lapidar sobre a forma no cinema, advertindo-nos de que muitas vezes, de uma história simples e aparentemente desinteressante pode-se extrair um grande filme (sic).
Num texto brevíssimo sobre a morte de Jáder de Carvalho, publicado originariamente na coluna "Revista", página Letras e Artes, do jornal Tribuna do Ceará, 10/08/1985, Barroso joga com a antítese "o morto que não morreu" para exaltar a amizade pessoal e o respeito sem medida pelo autor de Terra de Ninguém (1931), a quem, quase menino (Jáder, homem feito) conhece em inusitado encontro "no velho Iguatu", como demonstra, com a sutileza do poeta, o seu carinho pela terra de Humberto Teixeira.
Na incontida necessidade de evidenciar o talento poético do amigo morto, Antônio Girão Barroso cita-o, como de cor, no irretocável poema Ironia, feito por Jáder em obra levada a efeito com parceria de Sydney Netto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza, de 1927: "O sertão  --- fará um mês? --- era de entristecer. // Ante o esplendor da floresta ressuscitada, ante a fartura da água, / Ouvindo graúnas, corrupiões e galos de campina, / Vendo a enxada cavar, ansiosamente, a terra, / Eu me pergunto, agora: "Foi milagre?" / Eis me responde um sapo, lá dos juncos da lagoa: / --- Foi! / Mas, outro sapo, irônico, numa troça finíssima, / logo explica: / Não foi!"
Legenda viva da poesia e da intelectualidade do Ceará, Antônio Girão Barroso dá a ver, com o livro amorosamente organizado pelo filho Oswald, aquilo que dissera, coberto de razão, sobre Jáder de Carvalho, e que a ele, não menos, aplica-se à perfeição: "Antônio Girão Barroso, o morto que não morreu".  

 
  
 
   

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Errata

"Deixam" e "neofascista", primeiro e último parágrafos, respectivamente.

O ódio como ato político

É indisfarçável o desconforto de parte significativa dos eleitores de Bolsonaro mal começa o seu oitavo mês de governo. Corrupção, nepotismo, medidas ditatoriais a cada novo dia e uma desfaçatez que enrubesce até malandro de botequim, deixa sem lugar para colocar as mãos antigos entusiastas do político inexpressivo e rude que hoje preside o país.
O mal-estar, contudo, não é bastante para levar esses eleitores a rever conceitos e juízos. Há sempre uma tentativa de encobrir fatos, a exemplo de apontar para o que consideram a má herança do PT. No fundo, exceções à parte, a coisa reflete uma identificação com as práticas autoritárias de que nos fala exemplarmente bem Lilia Moritz Schwarcz em livro obrigatório "sobre o autoritarismo brasileiro".
No mais das vezes, o discurso é mesmo, na raiz, elitista, preconceituoso contra tudo que aponte para uma reorganização do status quo. Para a maioria, direitos humanos, liberdade, respeito às minorias e redistribuição de renda, por exemplo, são coisas de comunista, o que, convenhamos, por outro lado reflete o nível de politização de um povo que ainda vê ideias de esquerda como ameaça ao bem-estar da família e à integridade das criancinhas. É uma tristeza o que ocorre ao país.
Em tempo, já que me reportei ao belo livro de Lilia Schwarcz, é contribuição incontornável sobre o caráter nacional brasileiro, na linha investigativa do que fizeram Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado, Florestan Fernandes, Paulo Prado e, mesmo, Darcy Ribeiro e Mário de Andrade, para aludir a grandes intérpretes do Brasil. Autores que se voltaram para os brasileiros, pelo viés da ensaística, da história descritiva ou mesmo da ficção, na tentativa de estabelecer a sua identidade enquanto nação.
Mas é importante frisar: Lilia Schwarcz, como nenhum dos nomes citados acima, mesmo aqueles de extração mais à esquerda, aborda a questão da identidade brasileira em uma nova chave, o que resulta numa incontornável tese a expor o abismo de diferença que separa o discurso da realidade.
O fato, como a confirmar o vazio e a inconsistência do que dizem os eleitores de Bolsonaro a que me referi antes, é que somos um povo perversamente excludente e autoritário, na contramão do que professa a mitologia nacional. O que se vê hoje (e o "voto" que lhe deu origem), mais traduz a verdade que dói: ao eleger um neofacista para presidente, esses eleitores apenas expressaram com essa escolha a herança perversa da escravidão. O ódio como ato político.
    

sábado, 27 de julho de 2019

O sonho fez-se realidade


Há quarenta anos a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iguatu, nossa querida FECLI, vem prestando relevantes serviços a pelo menos 20 cidades do interior do estado. É incalculável, pois, o que representa isso em termos de formação de profissionais especializados em diferentes áreas de atuação, direta ou indiretamente ligadas à educação institucional propriamente dita, e, sobretudo, em elevação dos parâmetros intelectuais, de comportamento social, político e, o que é ainda mais significativo, de participação efetiva nas mais diversas questões de interesse dos municípios servidos por essa respeitável Instituição Estadual de Ensino.
Fiz parte de uma geração a quem coube implantar, organizar e desenvolver a FECLI; participei de cada momento, enfrentei com os companheiros dessa geração dificuldades inimagináveis, das limitações de recursos materiais e humanos para tocar o dia a dia da Instituição aos enfrentamentos físicos para ter de volta a sede do bairro Areias, quando, por razões compreensíveis, a construtora responsável por obras de sua primeira reforma significativa impedia-nos de reocupar seus espaços físicos; estive envolvido com as campanhas de aquisição de títulos para a sua biblioteca; coordenei cursos e chefiei departamentos; fui vice-diretor geral; dei minha contribuição nas ações que tinham por objetivo assegurar o reconhecimento de seus cursos; assim como atuei como professor de pelo menos cinco ou seis disciplinas curriculares nos cursos de Educação e Letras.
As afirmações acima, quero evidenciar, não refletem qualquer intenção que não a de legitimar o fato que me deixa hoje realizado como ex-professor, como intelectual, como cidadão iguatuense  ---  e que faço questão de destacar com todas as letras: "Faço parte dessa história! Vi a FECLI nascer, crescer e se tornar a instituição respeitável que é ao longo desses muitos anos!"
Mas é hora de reconhecer a importância de todos que contribuíram para esta realidade, mesmo aqueles estranhos aos vínculos empregatícios juntos à Instituição, a exemplo dos que já nos deixaram e que faço questão de citar aqui: Carlos Roberto Costa, João Elmo Moreno, Aluísio Moreira, João Gualberto Filho, Raimundo Felipe, Elze Montenegro e, integrantes do seu quadro de professores, José Ériton Barros Costa e Edson Luiz Gouvêia.
No momento em que a universidade brasileira é escolhida como alvo de agressões inomináveis, numa prática escancarada do ideário neofascista que ataca perversamente a democracia no país, festejemos o quadragésimo aniversário da Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iguatu, e que esta festa corporifique simbolicamente a resistência dos iguatuenses às forças do atraso, do imaginário conservador nacional, das políticas economicistas, autoritárias, racistas, homofóbicas e misóginas que ameaçam o Brasil. O sonho fez-se realidade!





 

 






sexta-feira, 19 de julho de 2019

Quase perfeição

O desejo de conhecer é o início do conhecimento assim como o desejo de sobreviver é o começo da imortalidade.

Há 500 anos morria na França um dos maiores gênios da humanidade. Autor de duas das mais importantes obras da história da arte, A Última Ceia e Mona Lisa, Leonardo da Vinci (1452-1519), ou simplesmente Da Vinci, como costuma aparecer nas páginas mais cintilantes dos livros de arte, foi, no entanto, muito mais que um artista extraordinário, a quem se devem algumas das maiores conquistas da técnica pictural, a exemplo do sfumato, com que seu traço vaporoso cobria de mistério obras impagáveis da pintura.

Foi, no entanto, muito mais que um artista genial. Suas contribuições notabilizam-no como cientista, matemático, inventor, engenheiro, anatomista, escultor e arquiteto do Alto Renascimento. Mas é do artista que gostaria de falar um pouco na coluna de hoje.

Se não é numericamente expressiva a sua produção como pintor, parece não restar dúvidas de que a sua pintura atingiu uma força estética sob muitos aspectos inigualável, bem na perspectiva do que se pode ver em obras como Virgem dos Rochedos, A Adoração dos Magos, Dama com Arminho, O Batismo de Cristo e A Virgem com o Menino e Sant' Anna, entre outras, em que sobressaem os procedimentos inconfundíveis no tratamento da luz, do sombreamento e da perspectiva, mesmo quando o rigor da análise aponta para erros de perspectiva, como n'A Anunciação, 1478, uma de suas obras mais notáveis.

Sob este aspecto, por sinal, é que resulta curiosa a falha técnica na obra de um gênio, leve-se em consideração que ninguém mais que Da Vinci pesquisou com tanta dedicação os efeitos da perspectiva na obra bidimensional de modo a que parecesse tridimensional. Este efeito, aliás, é destacado por Leonardo da Vinci com certa frequência em seus cadernos, bem na linha do que se pode observar quando afirma: "[...] dispor um corpo numa superfície plana como se tivesse sido modelado e separado daquele plano é o primeiro propósito de um pintor".

A genialidade de Da Vinci, porém, quer como artista quer como cientista, está em que ele rompeu a dura barreira que parecia separar arte e ciência. Seus trabalhos, a Mona Lisa, por exemplo, para se fazer referência a uma obra de qualidade incontrastável, dá bem a medida do quanto o seu criador observou elementos matemáticos em sua composição. Foi além disso. Como afirma Walter Isaacson, em sua irretocável biografia do artista florentino, Da Vinci "arrancou a pele de cadáveres e delineou os músculos que movem os lábios para depois pintar o sorriso mais inesquecível do mundo".

Mas como era Leonardo da Vinci, o que se pode dizer dele para além do que dizem os seus autorretratos por demais conhecidos? O que havia de tão inquietante no seu perfil psicológico, matéria amplamente explorada em mais de uma cinebiografia? Simples: Da Vinci foi um homem muito maior que sua obra, como só ocorre, disse sobre ele Thomas Mann, aos verdadeiros fenômenos, certas figuras extraordinárias, somando-se ao criador da Mona Lisa, Goethe e Tolstói, nessa ordem.

Além disso, para o bem e para o mal, citemos Giorgio Vasari: "Às vezes, de forma sobrenatural, uma única pessoa é milagrosamente brindada pelos céus com a beleza, graça e talento em tamanha abundância que o mais banal dos seus atos se converte em algo divino e tudo que ela faz claramente emana de Deus, não da arte dos homens".

Atraente e gracioso, era dotado de certas características muito especiais entre os homens do seu tempo: forte, alto, elegante, bom conversador, decidido em suas escolhas, amável com os outros homens e com os animais. Em outras palavras: um ser humano muito próximo do que se pode considerar a perfeição  --- mesmo quando se sabe que, entre humanos, a perfeição não existe.

 

 

 

 

 

Da Vinci 500 anos depois

Há 500 anos morria na França um dos maiores gênios da humanidade. Autor de duas das mais importantes obras da história da arte, A Última Ceia e Mona Lisa, Leonardo da Vinci (1452-1519), ou simplesmente Da Vinci, como costuma aparecer nas páginas mais cintilantes dos livros de arte, foi, no entanto, muito mais que um artista extraordinário, a quem se devem algumas das maiores conquistas da técnica pictural, a exemplo do sfumato, com que seu traço vaporoso cobria de mistério obras impagáveis da pintura.

Foi, no entanto, muito mais que um artista genial. Suas contribuições notabilizam-no como cientista, matemático, inventor, engenheiro, anatomista, escultor e arquiteto do Alto Renascimento. Mas é do artista que gostaria de falar um pouco na coluna de hoje.

Se não é numericamente expressiva a sua produção como pintor, parece não restar dúvidas de que a sua pintura atingiu uma força estética sob muitos aspectos inigualável, bem na perspectiva do que se pode ver em obras como Virgem dos Rochedos, A Adoração dos Magos, Dama com Arminho, A Adoração dos Magos, O Batismo de Cristo e A Virgem com o Menino e Sant' Anna, entre outras, em que sobressaem os procedimentos inconfundíveis no tratamento da luz, do sombreamento e da perspectiva, mesmo quando o rigor da análise aponta para erros de perspectiva, como n'A Anunciação, 1478, uma de suas obras mais notáveis.

Sob este aspecto, por sinal, é que resulta curiosa a falha técnica na obra de um gênio, leve-se em consideração que ninguém mais que Da Vinci pesquisou com tanta dedicação os efeitos da perspectiva na obra bidimensional de modo a que parecesse tridimensional. Este efeito, aliás, é destacado por Leonardo da Vinci com certa frequência em seus cadernos, bem na linha do que se pode observar quando afirma: "[...] dispor um corpo numa superfície plana como se tivesse sido modelado e separado daquele plano é o primeiro propósito de um pintor".

A genialidade de Da Vinci, porém, quer como artista quer como cientista, é que ele rompeu a dura barreira que parecia separar arte e ciência. Seus trabalhos, a Mona Lisa, por exemplo, para se fazer referência a uma obra de qualidade incontrastável, dá bem a medida do quanto o seu criador observou elementos matemáticos em sua composição. Foi além disso. Como afirma Walter Isaacson, em sua irretocável biografia do artista florentino, Da Vinci "arrancou a pele de cadáveres e delineou os músculos que movem os lábios para depois pintar o sorriso mais inesquecível do mundo".

Mas como era Leonardo da Vinci, o que se pode dizer dele para além do que dizem os seus autorretratos por demais conhecidos? O que havia de tão inquietante no seu perfil psicológico, matéria amplamente explorada em mais de uma cinebiografia? Simples: Da Vinci foi um homem muito maior que sua obra, como só ocorre, disse sobre ele Thomas Mann, aos verdadeiros fenômenos, certas figuras extraordinárias, somando-se ao criador da Mona Lisa, Goethe e Tolstói, nessa ordem.

Além disso, para o bem e para o mal, citemos Giorgio Vasari: "Às vezes, de forma sobrenatural, uma única pessoa é milagrosamente brindada pelos céus com a beleza, graça e talento em tamanha abundância que o mais banal dos seus atos se converte em algo divino e tudo que ela faz claramente emana de Deus, não da arte dos homens".

Atraente e gracioso, era dotado de certas características muito especiais entre os homens do seu tempo: forte, alto, elegante, bom conversador, gentil com os outros homens e carinhoso com os animais. Em outras palavras: um ser humano muito próximo do que se pode considerar a perfeição  --- se a perfeição existe.

 

 

 

 

sábado, 13 de julho de 2019

Psicologia do entardecer*

Só ontem pude ver Dor e Glória, o último Almodóvar. Soco no estômago para quem, como eu, vive os primeiros desconfortos com os sinais do envelhecimento, tema que perpassa o filme com intensidade só comparável aos clássicos do cinema, na linha de um Morango Silvestres, de Ingmar Bergman, Viver, de Akira Kurosawa e Umberto D., de Vittorio De Sica.

Por um outro viés, claro, o filme do cineasta espanhol é isto antes de qualquer coisa: uma obra que narra a angústia existencial decorrente do envelhecimento. Diferentemente do que ocorre aos três clássicos citados, no entanto, Dor e Glória sustenta-se dramaticamente num assumido esteio autobiográfico, uma verdadeira reflexão sobre a trajetória de um homem que viveu, como o título da obra sugere, realidades completamente antagônicas, da infância difícil e pobre à consagração do artista extraordinário que é.

Salvador Mallo (Antonio Banderas em interpretação soberba), adentra a terceira idade com os problemas recorrentes na vida de qualquer homem de sua faixa etária, descontados, por óbvio, os exageros intencionais de um puro Almodóvar: com a coluna arrebentada após uma cirurgia, ao que se somam inúmeros outras complicações de saúde, o protagonista é incapaz de calçar confortavelmente os sapatos. Não falta ao filme, mesmo, o expediente já recorrente na filmografia do diretor, bem como se pode ver com a inserção de imagens computadorizadas que, se embelezam o écran, poderiam ser suprimidas sem que isso empobrecesse minimamente o filme. Vá lá, é de Pedro Almodóvar que estamos falando.

Até aí, todavia, nada que possa dizer da grandiosidade do filme. Em que reside, pois, a qualidade estética da obra que possa justificar o que afirmo aqui com todas as letras: Dor e Glória veio coroar a carreira de um dos gênios do cinema moderno?

Para quem esperava o recorrente estilo maneirista do diretor, com uma paleta carregada (embora invariavelmente bela), a exploração estilizada da estética kitsch, a presença desconcertante da bizarrice humana assentada nos paradoxos do amor e da sexualidade e um ritmo narrativo inquietante, a exemplo do que fez em quase a totalidade de sua significativa obra (este é o seu 21º filme), depara-se agora com um Almodóvar mais apolíneo e racional, sem que isso desfigure o que existe de mais coerente em sua arte: a coragem de expor o lado inconfessável de cada um de nós com uma beleza que beira a perfeição.

Para tanto, Almodóvar lança mão do que, em si, não é um expediente inovador, a projeção autobiográfica na figura de um protagonista que é de, modo indisfarçável, o seu alter ego. Mas pela forma como constrói esse desvelamento de suas verdades mais anímicas, jogando com a figura do narrador com a habilidade de um mestre.

Há no discurso narrativo, o que envolve o espectador ardilosamente até o fim do filme, diga-se em tempo, dois planos de construção: o primeiro deles constituído pela figura da personagem central, Salvador Mallo, um cineasta em crise improdutiva que lembra o Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) do cultuado Fellini de Oito ½, com as mesmas alucinações, os mesmos dramas das perdas, o mesmo embate com a memória que dilacera e os mesmos conflitos existenciais etc., e o segundo, representado na narrativa pelo cineasta menino na cidadezinha em que vive com a mãe (Penélope Cruz) no interior da Espanha.

Mas o ardil é elucidado ao final do filme: todo esse segundo plano faz parte da realização de um filme dentro do filme. A cena final, exemplarmente bem conduzida pela câmera, mostra mãe e filho num set de filmagem em que, superada a transitória incapacidade de criar, aparece Salvador Mallo retomando a carreira com aparente serenidade.

O resultado, intrigante do ponto de vista artístico, enfatiza a genialidade do Almodóvar roteirista, ao lado de nos presentear com o mais bem realizado filme de um diretor em sua plenitude poética, com inatacável domínio de linguagem e apurado rigor estético: o quadro, por exemplo, é criteriosamente pensado e a composição obedece o equilíbrio de um Botticelli da sétima arte, sem esquecer o colorido de encher os olhos do cinéfilo mais exigente. Obra-prima, enfim.

*A expressão é tomada de empréstimo de Gustav Jung, para quem "Não se pode viver a tarde da vida segundo o programa da manhã".