sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Joel Silveira e o jornalismo literário

Quando escrevi aqui sobre livro de Gay Talese, a propósito de ter sido ele um dos grandes nomes do "novo jornalismo" ou "jornalismo literário", um leitor fez por WhatsApp um comentário a um só tempo lisonjeiro e bastante pertinente. Teceu considerações elogiosas ao texto da coluna, revelou-se entusiasta do gênero e lamentou não tivesse eu feito qualquer alusão a brasileiros que fizeram história produzindo reportagens rigorosamente representativas do que preferiu chamar de "new jornalism", numa contradição que nos rendeu boas gargalhadas. Volto ao tema hoje, minha maneira de corrigir a falha.
Bairrismo à parte, não se pode negar o que é consensual sobre a matéria: o chamado "jornalismo literário", como dizia preferir às outras denominações, teve como berço os Estados Unidos, por volta dos anos 60, alcançando maior prestígio ao longo da década de 1970 (o termo ganhou status oficial em 1973), quando um novo estilo de escrever reportagens ganhou as redações de jornais de todo o mundo, constituindo-se num tipo de movimento que ainda hoje é cultuado por grandes nomes do jornalismo mundial.
Tendo por objetivo romper com os padrões tradicionais da produção textual no âmbito da imprensa, nomeadamente nas redações do jornal impresso, quase sempre impostos pelos editores (imparcialidade/objetividade), o "new jornalism" surgiu como uma grande novidade, permitindo ao jornalista discorrer sobre o fato com maior criatividade, maior poder de sedução sobre o leitor. Em suma: tornando o texto noticioso ou a reportagem mais interessante, mais envolvente e mais elegante estilisticamente falando.
 Notabilizaram-se no gênero, à época, escritores admiráveis, a exemplo de Truman Capote ("A sangue frio"), Norman Mailer ("A canção do carrasco"), Lillian Ross ("Sempre repórter"), Hunter S. Thompson ("Hell's Angels"), Tom Wolfe ("Radical, chique e o novo jornalismo"), Janet Malcom ("O jornalista e o assassino") e o já referido Gay Talese ("O Reino e o poder"), objeto da coluna anterior.
Cheguemos ao Brasil, antes que o querido leitor me tome por faltoso reincidente. Pois bem, o chamado "jornalismo literário" foi amplamente cultivado no país por jornalistas extraordinários, gente da estatura de Samuel Wainer, Antonio Callado, Alberto Dines, Carlos Lacerda, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Armando Nogueira e, soberbo, no bom sentido da adjetivação, Joel Silveira, de quem li não faz muito tempo o delicioso "Na fogueira" (Editora Mauad, 1996), livro de memórias garimpado em sebo do Rio de Janeiro.
Nordestino de Sergipe, ou mais precisamente de Lagarto, onde nasceu em 23 de setembro de 1918, Joel Silveira é nome incontornável do jornalismo literário brasileiro, e algumas de suas memoráveis reportagens resultaram em livros mais que recomendados, com destaque para o inclassificável "A milésima segunda noite da Avenida Paulista" (Companhia das Letras, 2003), "A feijoada que derrubou o governo" (Companhia das Letras, 2004) e "Viagem com o presidente eleito" (Mauad, 2009).
Homem de esquerda (dizia-se socialista antes de tudo), além de craque do jornalismo literário propriamente dito, Joel Silveira foi também ficcionista, nunca, porém, tendo alcançado como contista o mesmo nível de excelência. Com o título de "Os melhores contos de Joel Silveira" (Global, 1999), pode-se encontrar nas livrarias virtuais exemplares em boas condições de uso. Recomendo.
Morto em agosto de 2007, Joel Silveira destacou-se ainda como um "frasista" de escol, trilhando na mesma linha estilística e com a mesma sagacidade ferina, por exemplo, os caminhos do insuperável Nelson Rodrigues.
Irreverente, incisivo, sarcástico, pertinaz, desconcertante, e tantos outros adjetivos de conotação dúbia que lhe soariam adequados*, Joel Silveira foi antes de tudo um genial repórter brasileiro, desses que fazem uma falta imensurável ao jornalismo tortuoso, inconfessável e medroso dos dias atuais.
*Ganhou o apelido de "Víbora" por Assis Chateaubriand, e, contratado pelo dono dos Diários Associados, cobriu a Segunda Guerra Mundial, de cujas reportagens nasceu o livro "O inverno da Guerra, 2005.
 
 
 
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O ovo da serpente 2

 Assisto ao discurso do recém-empossado presidente americano, Donald Trump, e, ato contínuo, dirijo-me à estante para tomar em mãos exemplar de "Fama e anonimato" (Companhia Das Letras, 2021), o livro clássico de Gay Talese. Publicado nos anos 60, chegou ao Brasil por volta de 1973, mas só alguns anos depois, já na faculdade, o li pela primeira vez. Lembro que o fiz numa cópia amarfanhada, em xerox --- o original, de capa alaranjada, com o título de "Aos olhos da multidão", disputado a tapas por colegas universitários, notadamente os estudantes de jornalismo, mas não somente esses.
"Fama e anonimato" é obra-prima do chamado 'novo jornalismo', 'nova não-ficção' ou, como acho mais adequado dizer, 'jornalismo literário', cujas marcas estilísticas apontam para o texto jornalístico produzido com cuidados formais e perspectiva de abordagem informativa pelo viés da linguagem poética, tomando-se o termo segundo teoria do russo Roman Jackobson: o foco dela [da linguagem] está centrado na mensagem e em sua construção formal, gerando expressividade. Em suma, jornalismo feito com arte.
Na primeira das reportagens, produzida numa escrita que absorve o leitor de modo implacável, tanta é sua beleza, profundidade e "sabor", Talese explora a dimensão desconhecida da cidade de Nova York, o que define como invisível aos olhos dos americanos que vivem na mais importante cidade americana. São os trabalhadores anônimos, porteiros, guardas-noturnos, motoristas de ônibus, vendedores de rua, bilheteiros, ascensoristas e, para não me alongar, faxineiros de ambos os sexos, enfim, essa gente que faz Nova York existir, funcionar, manter-se aos olhos do mundo como uma das mais sedutoras das grandes cidades. 
É aí que entra o discurso de Donald Trump como gatilho de minha motivação de voltar a um dos mais fascinantes livros de caráter jornalístico a que tive acesso em toda a minha vida. "Fama e anonimato" é, antes de tudo, um belíssimo livro.
Confundidos com criminosos pelo presidente recém-empossado, os imigrantes ou filhos de imigrantes (e não estou me referindo aos descendentes de colonizadores ingleses), compõem a matéria de que nos fala Gay Talese no seu livro extraordinário, gente que, exceções à parte, serve aos americanos com uma dedicação quase santificada, protegendo a sociedade, limpando ruas e hospitais, preparando comida, transportando mercadorias, dirigindo ônibus ou salvando vidas, mesmo as de potenciais suicidas, que ameaçam se atirar do alto da ponte Vezarrano-Narows sobre as águas do Hudson, também ela construída por imigrantes, em sua maioria índios mexicanos.
É notável, por exemplo, o que diz sobre os motoristas: "Os passageiros o ignoram, e continuarão a ignorá-lo até o momento em que perturbe a paz deles --- ao dar uma freada brusca, ao deixar de responder a uma pergunta ou de parar num ponto quando eles tocam o sinal. Dia após dia os motoristas padecem dessa rotina interminável, sabendo o que esperar --- e quando".
Ou sobre as faxineiras: "As faxineiras, muitas delas ucranianas, tchecoslovacas ou polonesas, trabalham 35 horas por semana e ganham um salário semanal inicial de 54,95 dólares. Elas trabalham para ajudar a sustentar famílias numerosas, para completar sua pensão ou para ficar longe de casa à noite".
Imigrantes nos EUA equivalem à população de uma Argentina, algo em torno de 46 milhões de pessoas. A mulher de Donald Trump nasceu na Eslovênia, Elon Musk (cuja saudação nazista dá a medida de suas intenções ao compor o governo Trump), nasceu na África do Sul.18 milhões de crianças têm pai ou mãe estrangeiros, e 5 milhões são filhas de pais e mães nascidas fora dos Estados Unidos. Dos cinco filhos de Trump, quatro nasceram de mães estrangeiras, pois a primeira mulher do presidente, já falecida, nasceu na República Tcheca. Para não falar da mulher do vice-presidente, Vence, também estrangeira, do secretário de Estado, Marco Rubio, filho de pais nascidos em Cuba e casado com filha de colombianos.
Tradicionalmente reconhecido como um país acolhedor, para onde se destinaram perseguidos do nazismo, os Estados Unidos de Donald Trump 2 constituem uma ameaça à paz mundial, e sinalizam (o gesto de Elon Musk o evidencia) que novo ovo da serpente está para eclodir. Voltaremos ao assunto depois, não sem antes recomendar a obra-prima de Gay Talese, cuja capacidade de ressignificar-se me salta aos olhos desde o discurso de posse de Donald Trump.
 
 
 
 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

ENTREVISTA - ACADEMIA CEARENSE DE CINEMA

 "O filme de Walter Salles é uma obra-prima"
Professor universitário de estética do filme e integrante da Academia Cearense de Cinema, Alder Teixeira fala sobre o filme de Walter Salles, "Ainda estou aqui", deslinda aspectos estéticos da obra e avança considerações em torno do que considera uma verdadeira obra-prima da cinematografia nacional.
 ACC – Tem sido gigantesca a repercussão em torno do filme "Ainda estou aqui", do cineasta Walter Salles. Com rigor de análise, por quê?
Alder – Antes de tudo, por se tratar de um grande filme, entendendo-se esta avaliação a partir daquilo que o filme é artisticamente falando, ou seja, pelos atributos de conteúdo (o filme, plasmado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, narra a luta de uma grande mulher contra os assassinos do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva) e por suas qualidades estéticas propriamente ditas: o tratamento de linguagem que o diretor Walter Salles dispensou ao assunto, já tão bem explorado pelo escritor.
ACC – Sendo mais objetivo, o que é, no filme, esse "tratamento" a que se refere?
Alder – O uso dos recursos da linguagem cinematográfica: montagem, enquadramentos, movimentos de câmera, ângulos de filmagem, utilização da luz e do som, e a própria concepção do que, talvez contrariando os adeptos do cinema dito moderno, pode-se definir como 'mise en scène' no cinema: a forma como essa arte nos transporta para os acontecimentos que a tela nos oferece a partir da utilização dos recursos da linguagem cinematográfica. Isto porque Walter Salles recusa-se a ser modernoso, embora seja um cineasta da modernidade. Sua obra, desde sempre, revela as qualidades formais de um realizador de formação clássica, o que não quer dizer que se trate de um artista tradicional, que se submete aos preceitos da cinematografia americana dos anos 40, 50 ou 60, o chamado cinema clássico da Era de Ouro.
ACC – Sob este aspecto, o que pode destacar no filme?
Alder – O rigor com que dirige seus atores, explorando com fina sensibilidade seus atributos como intérpretes e suas características físicas. A essa altura é preciso destacar, por exemplo, como soube usar planos fechados da atriz Fernanda Torres, que, ao lado de ser uma grande atriz, tem uma beleza já por si muito expressiva, traços e linhas muito definidos plasticamente falando. O mesmo ocorre nos planos abertos, quando a personagem se desloca pelos espaços da casa. Nesse sentido, foi irretocável como a atriz dosou a emoção de Eunice Paiva, realçando sua dignidade e firmeza de caráter mesmo nas cenas mais dramáticas do filme. O mérito, claro, é da Fernanda Torres, mas não se pode ignorar o que o diretor soube extrair de sua atuação irrepreensível pela escolha dos planos, pela luz, pela densidade das falas etc. O roteiro é brilhante, não nos esqueçamos. Enfim, é um filme tecnicamente correto, quer na perspectiva do plano do conteúdo, quer na perspectiva do plano expressivo. Obra de arte irretocável.
ACC – A propósito, fale um pouco do roteiro a partir do livro "Ainda estou aqui".
Alder – É preciso partir do princípio de que literatura e cinema são artes distintas. Um roteiro não pode ser a mera transcrição de um conteúdo literário. Trata-se de uma planificação do conteúdo da imagem a partir dos elementos cinematográficos. O roteiro é a base do que será o filme, orientando o diretor, de início precariamente, a conceber a cena, a composição da imagem, o ritmo da narrativa, os tipos de planos, sem perder de vista o que é essencial no cinema: a montagem. O roteiro traz em si a história a ser contada, indo do diálogo à entrada e saída de cena dos atores, a estrutura narrativa, que pode, claro, ser alterada pelo diretor. Sem um bom roteiro não se fará um bom filme. Sendo assim, é natural que o filme subtraia ou acrescente, explore minúcias quase imperceptíveis do que está no texto original, realce partes do que está, no livro, dito com palavras. Em se tratando do filme em questão, é oportuno dizer que o roteiro não se limitou ao que está no livro de mesmo título. Para escrevê-lo Walter Salles aproveitou outro livro importante de Marcelo Rubens Paiva, o "Feliz Ano Velho", de 1982, bem como documentos da época e entrevistas feitas sobre o que de fato ocorreu à família de Eunice Paiva. É, portanto, uma obra plasmada no livro "Ainda estou aqui", que deu origem ao filme, não uma...
ACC – Adaptação...
Alder – Não, não me parece adequado o termo "adaptação" para se falar de "Ainda estou aqui", o filme. São obras distintas, muito embora embasadas no mesmo conteúdo, cada uma com suas especificidades narrativas, com suas estratégias formais, com potências estilísticas particulares. Quando pesquisei a obra de Ingmar Bergman, "Estratégias narrativas da cinematografia de Ingmar Bergman", cuja tese de doutorado saiu em livro, o fiz depois de constatar que a filmografia do cineasta sueco fora amplamente analisada do ponto de vista do conteúdo, quase como se se tratasse de um escritor, um filósofo, um psicanalista... e não um cineasta, um realizador de filmes. Poucos o tinham feito até então, pelo menos não na perspectiva com que a examinei, dando ênfase a sua concepção cinematográfica, a forma fílmica, o uso dos elementos e recursos tecnológicos do cinema, as estratégias narrativas propriamente ditas.
ACC – E o livro do Marcelo Rubens Paiva?
Alder – Um grande livro, ainda que escrito com simplicidade, com um estilo despojado, aqui, forjado com linguagem referencial, objetiva, quase jornalística; ali, mais suave, fluido, com nuances poéticas, sem jamais deslizar para o piegas, o lamuriento, ainda que profundamente sincero e verdadeiro em sua dor, sua indignação contra aqueles que torturaram e mataram friamente seu pai. Mas, tanto quanto o filme, o livro tem como figura central Eunice Paiva. É ela o esteio, o eixo dramático de um e outro. E nisso, ressalto, é que reside a fidedignidade do filme em relação ao livro, em que pesem as licenças a que me referi antes. É oportuno dizer que o livro tem uma estrutura narrativa que dialoga com a narrativa cinematográfica, jogando com temporalidades, entrecruzando cenas e situações sem observar linearidades do discurso do narrador.
ACC – O filme recebeu críticas por "pegar leve" na questão política, por apresentar o lado generoso de alguns policiais...
Alder – Discordo frontalmente. O que não há no filme é a apresentação material da tortura, os horrores de uma prática que a um só tempo nos revolta e indigna, causa nojo, desperta sentimentos ruins para com essa gente. É que Walter Salles terá sido antes de tudo um artista, um grande artista, deixando que o espectador "veja" as cenas de violência física com o coração, intelectualizando sua indignação diante dessas atrocidades cometidas pelos militares durante a ditadura --- e não com os olhos, como já se fez abusivamente em filmes que tratam do mesmo período. Sem ser apelativo, sem partidarizar sua denúncia, sem sujar de sangue o écran, Walter Salles terá feito o mais denso e mais revelador dos filmes brasileiros que mostram os horrores do regime militar. E não estou, com isso, dizendo que não se trata de grandes filmes, mas tão-somente evidenciando o olhar do diretor de "Ainda estou aqui", sua delicadeza estética ao lidar com um tema tão repugnante.
ACC – Quanto a mostrar certa ternura de alguns agentes policiais...
Alder – Isso está no livro, com todas as letras. Permita-me que reproduza textualmente o que diz Marcelo Rubens Paiva, e o que se pode ver no filme: "Olha, queria que a senhora soubesse que não concordo. Só estou cumprindo ordens. Eu não concordo com isso. Isso vai acabar. Um dia isso vai acabar. O que estão fazendo aqui não está certo". Trata-se, no caso, do mesmo soldado que, às escondidas, dera a Eunice Paiva uma barra de chocolate. São as contradições humanas muitas vezes impostas pelas circunstâncias. Não tornar o filme uma obra panfletária é uma das grandes qualidades do que se vê na tela. 
ACC - O que ficará disso em termos práticos?
Alder – O fato de que, para além de ser uma obra de arte de valor imenso, um objeto artístico de rara beleza, o filme se presta a levar aos jovens (e não só a eles!), os horrores cometidos contra as pessoas durante o regime militar, a ditadura. Num momento em que se tenta minimizar o que aconteceu no país, incorrendo-se na insanidade de pedir uma intervenção militar no Brasil, a prática da tortura contra pessoas tachadas de comunistas, o que já por si dá a ver a brutalidade de tal pensamento, o filme, assim como o livro, mas numa proporção significativamente maior, contribuirá para o surgimento de uma nova consciência política. Esta, a mensagem do filme, se mensagem há. Esta, a força da arte como instrumento de denúncia do lado torto da realidade no país, o que é de uma importância inavaliável num tempo em que se pronunciam ideias de extrema direita, em que se faz a apologia do movimento fascista redivivo, a maior de todas as ameaças a que estamos expostos. Para isso existe a arte, para a um só tempo embelezar a vida e transformar o que precisa ser transformado.
ACC – Que posição no cinema brasileiro está reservada para Walter Salles, hoje?
Alder – No mínimo uma posição de reconhecido destaque, ombreando-se a cineastas do peso de Karin Aïnouz, Kléber Mendonça Filho, Anna Muylaert, Fernando Meireles, nomes que me ocorrem dizer aqui. Mas não me parece precipitado dizer que Salles é o cineasta brasileiro mais completo em atividade hoje. E não de agora, mas desde os anos noventa, quando lançou o belíssimo "Terra Estrangeira" (1995), e "Central do Brasil" (1998), obra que lhe deu prestígio internacional.
ACC – Em termos ligeiros, o que se deve entender como um "cineasta completo"?
Alder – Pergunta complexa, mas vamos lá. Por cineasta completo compreendo o realizador que demonstra absoluto domínio do instrumental cinematográfico, que seja capaz de se fazer presente em todas as etapas da realização de um filme, da produção do roteiro à decupagem, do uso do equipamento, da direção de elenco, da composição do quadro e da montagem. E, claro, que sua presença seja fundamental para o resultado do trabalho de tanta gente que participa de uma filmagem: técnicos, operadores de câmera, figurinista, diretor ou diretora de arte, continuísta, fotógrafo, enfim, da equipe como um todo. Walter Moreira Salles é este exemplo de um grande cineasta. Considero-o o nosso Bergman, pela assinatura inconfundível de sua obra já extensa e de altíssima qualidade. Faz cinema autoral, na linha do que fizeram Godard e Truffaut à época da Nouvelle Vague francesa.
ACC – Destaque uma ou duas sequências do filme que considera mais bem feitas.
Alder – São muitas as cenas ou sequências do filme que me impressionaram. Destacarei duas: a sequência da prisão de Rubens Paiva é de uma densidade dramática, de um rigor estético, de uma beleza formal que me emocionaram profundamente. O ritmo da narrativa é preciso, a escolha dos planos e o uso da luz irretocáveis, a que se soma uma direção de atores notável. O aceno de Selton Melo antes de entrar no carro, e o olhar de Fernanda Torres à porta de casa, no gesto de despedida, é algo inesquecível. E faço questão de citar os atores e não as personagens para ressaltar a dimensão artística do trabalho. Primoroso. A outra sequência que gostaria de citar é aquela em que a família, postada nos degraus da porta de casa, posa para o fotógrafo da revista Manchete. A composição do quadro é minuciosa, com equilíbrio de massa, tom de cor e granulação da imagem adequados, o que só é possível, certamente, pelo uso da película em lugar da fotografia digital, coisa complicada de fazer nos dias de hoje. Sem esquecer a fala de Eunice Paiva recusando-se a demonstrar tristeza ao se deixar fotografar. Sublime.
ACC – Para finalizar, virá o nosso primeiro Oscar?
Alder – Qualidades para isso existem de sobra no filme de Walter Salles. A premiação, sabemos, nem sempre se dá pelo juízo artístico unicamente. Há fatores que são mesmo estranhos ao que faz de um filme um grande filme. Mas são amplas as possibilidades, de melhor filme internacional, por exemplo, além do prêmio da melhor atriz para Fernanda Torres, que fez um trabalho absolutamente perfeito na pele de Eunice Paiva, a protagonista. Se vier, será definitivo para o prestígio de nossa cinematografia em nível do grande cinema mundial. Se não, relevemos isso. O filme de Walter Moreira Salles é uma obra-prima. Insisto: "Ainda estou aqui", o filme, é uma obra-prima. Bravo.
Alder Teixeira é mestre em Letras e doutor em Artes pela UFMG, com linha de pesquisa em cinema. Publicou livros sobre literatura, artes visuais e cinema. É autor, entre outros, de "Ingmar Bergman, estratégias narrativas", "Drummond, componentes dramáticos" e "Quase romance".
 


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O que o filme não mostra

O estrondoso sucesso do filme "Ainda estou aqui", de Walter Moreira Salles, jogou luz sobre o drama familiar de Maria Eunice Facciola Paiva, elevando-a, com justa razão, à condição de uma verdadeira heroína. É de fato impactante acompanhar a trajetória da viúva do ex-deputado Rubens Paiva e de como essa mulher extraordinária lutou para criar os cinco filhos do casal --- Vera Silvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo ---, como se mostrou incansável na determinada busca pelo paradeiro de seu marido e posterior reconhecimento, pelo Estado, de ter sido ele, depois de cruelmente torturado, assassinado pelos militares em janeiro de 1971.
Ao optar por realizar um filme sobre Eunice Paiva, emblematicamente representada por Fernanda Torres, papel que lhe valeu o Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama, ainda que evidenciando os horrores ocorridos durante a ditadura militar no Brasil, com a sutileza e fina sensibilidade estética de que é possuidor, o cineasta compreensivelmente evitou mostrar cenas de tortura e, mesmo, as circunstâncias em que se deu a morte do ex-deputado, eleito pelo Partido Socialista em 1962 e cassado dois anos depois.
O que poderia ser irrelevante do ponto de vista cinematográfico, enseja, no entanto, um detalhe que ainda mais empresta ao filme qualidades dignas dos melhores elogios: não se trata de uma adaptação como tradicionalmente a conhecemos, isto é, o processo de transformar uma história narrada em livro para uma mídia audiovisual, especificamente, como é o caso, para o cinema --- mas de uma "leitura" pessoal, uma visada subjetiva do conteúdo de um livro.
Ao fazê-lo, o cineasta redimensionou o livro, criando a partir dele uma outra obra, nascida de sua interpretação e realizada de conformidade com elementos advindos do seu trabalho como artista, da sua inventividade, do seu tirocínio estético, extraindo dele o que lhe parece real, essencial, útil, sem perder de vista a ideia em que está plasmado o filme. Por isso, fez com o substrato da narrativa de Marcelo Rubens Paiva, autor do livro, uma verdadeira obra-prima cinematográfica, cuidando com maestria de cada plano, cada enquadramento, cada movimento de câmera, cada detalhe no uso da luz e do som. Perfeccionista, realizou uma obra de arte irretocável, revelando as atrocidades de um regime arbitrário sem que fosse preciso, panfletariamente, derramar sangue no écran. Coisa de refinado artista.
Mas o leitor haverá de perguntar: o que há no livro sobre o assassinato de Rubens Paiva que não se vê no filme? A título de exemplo, pois, vou ao texto de Marcelo Rubens Paiva, precisamente à parte dois do texto, no capítulo intitulado "É a peste, Augustin --- Perdão, tenho que morrer", em que o escritor descreve, à força de um estilo literário enxuto, preciso, referencial, a morte de seu pai: "Dizem que foi torturado ao som de 'Jesus Cristo', de Roberto Carlos, música que a minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava [presa] lá".
E segue, desfechando o capítulo com um parágrafo desconcertante: "Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte... É a peste, é a peste, Augustin (alusão à música alemã que Rubens Paiva costumava cantar). Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva, Rubens Paiva, Ru-bens Pai-va, Ru... Pai. Até morrer".
A demonstrar sua habilidade como escritor, talento já conhecido desde a publicação de "Feliz Ano Velho", em 1982, livro de estreia, pela metade do referido capítulo, lançando mão de um artifício narrativo a um só tempo bastante expressivo e literariamente feliz, Marcelo Rubens Paiva muda o foco narrativo sem qualquer sinalização (travessão, aspas etc.), num exemplo clássico de discurso indireto livre* que empresta ao conteúdo narrado um peso dramático adequado e extremamente comovente: "Quem tem um filho faz de tudo para se preservar, para dar suporte e acompanhar o crescimento daquele que mais ama. O que eu fiz? Por quê? (...) Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que pôs tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu... Perdão. Não vou ver vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas...".
Com simplicidade, sem perder de vista o efeito dramático perseguido, Marcelo levanta a reflexão dolorida: um gesto de covardia, ir embora do país, como lhe aconselhavam fazer, teria preservado sua vida, como a de tantos outros? A que "falha de caráter" se refere no texto? Como abrir mão de um ideal, do sonho de viver num país mais justo, mais humano e mais livre? Sob esse aspecto, por sinal, é que narra como Rubens Paiva, durante uma escala de voo no Brasil, a pretexto de comprar cigarros, foge do aeroporto para reencontrar a família.
A propósito, não à toa é que Walter Salles ocupa o primeiro terço do filme a mostrar o convívio familiar, a descontração de um pai bonachão, o chefe de família exemplarmente dedicado à mulher e aos filhos, num ambiente de profunda felicidade da família classe-média alta de Rubens Paiva.
Essas cenas, ressalte-se, foram gravadas com Super-8**, conferindo ao quadro uma textura ao mesmo tempo poética e nostálgica, numa minúcia formal que revela fidedignidade ao livro e notável capacidade criativa, artista pleno que é o cineasta Walter Moreira Salles.
*Modalidade narrativa que mistura o discurso direto e o indireto, ensejando ao narrador expressar os sentimentos e pensamentos da personagem.
**Filmadora portátil lançada pela Kodak em 1965 e muito usada nos anos 1970.
 
 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Obra Total

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Assim, de forma desconcertante, começa o romance "Cem anos de solidão", tragando o leitor para as águas profundas de uma obra construída com originalidade rara e inigualável poder de sedução. Por isso, consciente do que fora capaz de realizar em matéria artística, Gabriel García Márquez, o autor dessa verdadeira obra-prima, jamais admitiu ver o livro transformado em filme.
Decorridos dez anos desde a morte do escritor, sua família concordou em vender os direitos de adaptação para a Netflix, não sem estabelecer no contrato algumas exigências: o filme teria de ser rodado na Colômbia, e o elenco constituído de atores e atrizes colombianos. Foi além: o romance seria preservado em sua integridade, sem acréscimos ou subtrações que tirassem dele a substância essencial da narrativa, e que "contasse" a trajetória dos Buendía com a mesma precisão, exatidão e poesia.
Assim foi feito. Os diretores do seriado, Laura Mora e Alex García, conforme projeto multimídia divulgado pelo New York Times, há alguns meses, debruçaram-se sobre o realismo mágico do romance, algo sem definição precisa de uma obra de arte calcada na incontida busca de revelar o lado possível da irrealidade, que nasce da imaginação do artista.
E a vida cotidiana se redimensiona, cobrindo-se de cor e escuridão, de verdade e fantasia, de chão, terra, flores e personagens dotadas de múltiplas faces e perfis. Maravilha.
Esta, a razão por que se considerava talvez impossível (por certo desaconselhável) tecer com outros elementos de linguagem, outros códigos estéticos, uma "obra total", na linha do que definiu exemplarmente bem um dos maiores conhecedores da obra de Gabriel García Márquez, também ele extraordinário criador de histórias e, como o escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura, ninguém menos que Mario Vargas Llosa.
No seu incontornável "García Márquez: história de um deicídio" (Editora Record, 2022), no capítulo 7, intitulado Realidade Total, Romance Total, assim diz ele sobre o clássico agora disponível na Netflix: "Dificilmente uma ficção posterior poderia fazer com "Cem anos de solidão" o que o esse romance faz: reduzí-los à condição de prenúncios, de partes de uma totalidade".
O comentário de Llosa, cumpre-me esclarecer, é uma alusão ao que explora nos capítulos anteriores do livro, nos quais aborda um a um os textos que serviriam de caminho para a construção da obra máxima de Gabriel García Márquez: narrativas curtas em que os elementos do realismo mágico se vão erguendo, tomando forma, insinuando-se com sua atmosfera de fantasia e delírios que povoariam mais tarde o romance "Cem anos de solidão". Destacam-se, à altura, textos produzidos para jornais entre 1950 e 1954, "A revoada" (O enterro do diabo), de 1955, "Ninguém escreve ao coronel", de 1961, "Os funerais de mamãe grande", de 1962, e "O veneno da madrugada", de 1966, entre outros. Esse processo, a propósito, pode ser conhecido no recém-lançado "A caminho de Macondo", projeto original de Conrado Zuluaga e apresentação notável de Alma Guillermoprieto (Editora Record, 2024).
Mas volto à versão cinematográfica, evidenciando que a concepção formal do seriado, distanciando-se do que foi a televisão há alguns anos, em que os televisores de dimensões reduzidas exigiam a exploração de planos fechados, closes e movimentos de câmera tímidos, agora é naturalmente cinematográfica, a exemplo do que se pode ver nas novelas da Globo mais recentes.
Em "Cem anos de solidão", o seriado, o que se vê, portanto, é uma produção cinematográfica elevada à sua potência máxima em termos formais: a beleza da imagem, o esmerado trabalho de montagem, o requinte técnico, a direção de atores, o uso fascinante do som e da luz, tudo, tudo, rigorosamente falando, é quase perfeito, num trabalho que nada deixa a desejar em dimensão estética ao hipotexto em que está plasmado.
Quanto ao conteúdo, é preciso que se faça aqui uma advertência. A primeira parte do seriado, abordando pouco mais pouco menos da metade do livro de Gabriel García Márquez, é fidedigna, absoluta atenta, com sutis alterações na estrutura do romance, e, claro, a adoção de um ritmo narrativo apropriado a uma história contada em outra linguagem, mais completa do ponto de vista dos elementos que a constituem. Resulta disso, para o sucesso ainda maior da obra, o fato de que é impossível assistir ao seriado sem que, ato contínuo, volte-se ao livro propriamente dito. A coluna recomenda a última edição brasileira, da mesma editora, com tradução "irrepreensível" de Eric Nepomuceno, em brochura, disponível a preços promocionais nas livrarias da cidade.
Na sequência dos oito episódios já disponíveis na Netflix, virão outros oito.
Em tempo: Sou contra a que se façam comparações ingênuas do tipo: "É melhor o livro ou o seriado?", pois que são duas obras, com especificidades de código e linguagem distintos. Ambas maravilhosas.