"O filme de Walter Salles é uma obra-prima"
Professor universitário de estética do filme e integrante da Academia Cearense de Cinema, Alder Teixeira fala sobre o filme de Walter Salles, "Ainda estou aqui", deslinda aspectos estéticos da obra e avança considerações em torno do que considera uma verdadeira obra-prima da cinematografia nacional.
ACC – Tem sido gigantesca a repercussão em torno do filme "Ainda estou aqui", do cineasta Walter Salles. Com rigor de análise, por quê?
Alder – Antes de tudo, por se tratar de um grande filme, entendendo-se esta avaliação a partir daquilo que o filme é artisticamente falando, ou seja, pelos atributos de conteúdo (o filme, plasmado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, narra a luta de uma grande mulher contra os assassinos do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva) e por suas qualidades estéticas propriamente ditas: o tratamento de linguagem que o diretor Walter Salles dispensou ao assunto, já tão bem explorado pelo escritor.
ACC – Sendo mais objetivo, o que é, no filme, esse "tratamento" a que se refere?
Alder – O uso dos recursos da linguagem cinematográfica: montagem, enquadramentos, movimentos de câmera, ângulos de filmagem, utilização da luz e do som, e a própria concepção do que, talvez contrariando os adeptos do cinema dito moderno, pode-se definir como 'mise en scène' no cinema: a forma como essa arte nos transporta para os acontecimentos que a tela nos oferece a partir da utilização dos recursos da linguagem cinematográfica. Isto porque Walter Salles recusa-se a ser modernoso, embora seja um cineasta da modernidade. Sua obra, desde sempre, revela as qualidades formais de um realizador de formação clássica, o que não quer dizer que se trate de um artista tradicional, que se submete aos preceitos da cinematografia americana dos anos 40, 50 ou 60, o chamado cinema clássico da Era de Ouro.
ACC – Sob este aspecto, o que pode destacar no filme?
Alder – O rigor com que dirige seus atores, explorando com fina sensibilidade seus atributos como intérpretes e suas características físicas. A essa altura é preciso destacar, por exemplo, como soube usar planos fechados da atriz Fernanda Torres, que, ao lado de ser uma grande atriz, tem uma beleza já por si muito expressiva, traços e linhas muito definidos plasticamente falando. O mesmo ocorre nos planos abertos, quando a personagem se desloca pelos espaços da casa. Nesse sentido, foi irretocável como a atriz dosou a emoção de Eunice Paiva, realçando sua dignidade e firmeza de caráter mesmo nas cenas mais dramáticas do filme. O mérito, claro, é da Fernanda Torres, mas não se pode ignorar o que o diretor soube extrair de sua atuação irrepreensível pela escolha dos planos, pela luz, pela densidade das falas etc. O roteiro é brilhante, não nos esqueçamos. Enfim, é um filme tecnicamente correto, quer na perspectiva do plano do conteúdo, quer na perspectiva do plano expressivo. Obra de arte irretocável.
ACC – A propósito, fale um pouco do roteiro a partir do livro "Ainda estou aqui".
Alder – É preciso partir do princípio de que literatura e cinema são artes distintas. Um roteiro não pode ser a mera transcrição de um conteúdo literário. Trata-se de uma planificação do conteúdo da imagem a partir dos elementos cinematográficos. O roteiro é a base do que será o filme, orientando o diretor, de início precariamente, a conceber a cena, a composição da imagem, o ritmo da narrativa, os tipos de planos, sem perder de vista o que é essencial no cinema: a montagem. O roteiro traz em si a história a ser contada, indo do diálogo à entrada e saída de cena dos atores, a estrutura narrativa, que pode, claro, ser alterada pelo diretor. Sem um bom roteiro não se fará um bom filme. Sendo assim, é natural que o filme subtraia ou acrescente, explore minúcias quase imperceptíveis do que está no texto original, realce partes do que está, no livro, dito com palavras. Em se tratando do filme em questão, é oportuno dizer que o roteiro não se limitou ao que está no livro de mesmo título. Para escrevê-lo Walter Salles aproveitou outro livro importante de Marcelo Rubens Paiva, o "Feliz Ano Velho", de 1982, bem como documentos da época e entrevistas feitas sobre o que de fato ocorreu à família de Eunice Paiva. É, portanto, uma obra plasmada no livro "Ainda estou aqui", que deu origem ao filme, não uma...
ACC – Adaptação...
Alder – Não, não me parece adequado o termo "adaptação" para se falar de "Ainda estou aqui", o filme. São obras distintas, muito embora embasadas no mesmo conteúdo, cada uma com suas especificidades narrativas, com suas estratégias formais, com potências estilísticas particulares. Quando pesquisei a obra de Ingmar Bergman, "Estratégias narrativas da cinematografia de Ingmar Bergman", cuja tese de doutorado saiu em livro, o fiz depois de constatar que a filmografia do cineasta sueco fora amplamente analisada do ponto de vista do conteúdo, quase como se se tratasse de um escritor, um filósofo, um psicanalista... e não um cineasta, um realizador de filmes. Poucos o tinham feito até então, pelo menos não na perspectiva com que a examinei, dando ênfase a sua concepção cinematográfica, a forma fílmica, o uso dos elementos e recursos tecnológicos do cinema, as estratégias narrativas propriamente ditas.
ACC – E o livro do Marcelo Rubens Paiva?
Alder – Um grande livro, ainda que escrito com simplicidade, com um estilo despojado, aqui, forjado com linguagem referencial, objetiva, quase jornalística; ali, mais suave, fluido, com nuances poéticas, sem jamais deslizar para o piegas, o lamuriento, ainda que profundamente sincero e verdadeiro em sua dor, sua indignação contra aqueles que torturaram e mataram friamente seu pai. Mas, tanto quanto o filme, o livro tem como figura central Eunice Paiva. É ela o esteio, o eixo dramático de um e outro. E nisso, ressalto, é que reside a fidedignidade do filme em relação ao livro, em que pesem as licenças a que me referi antes. É oportuno dizer que o livro tem uma estrutura narrativa que dialoga com a narrativa cinematográfica, jogando com temporalidades, entrecruzando cenas e situações sem observar linearidades do discurso do narrador.
ACC – O filme recebeu críticas por "pegar leve" na questão política, por apresentar o lado generoso de alguns policiais...
Alder – Discordo frontalmente. O que não há no filme é a apresentação material da tortura, os horrores de uma prática que a um só tempo nos revolta e indigna, causa nojo, desperta sentimentos ruins para com essa gente. É que Walter Salles terá sido antes de tudo um artista, um grande artista, deixando que o espectador "veja" as cenas de violência física com o coração, intelectualizando sua indignação diante dessas atrocidades cometidas pelos militares durante a ditadura --- e não com os olhos, como já se fez abusivamente em filmes que tratam do mesmo período. Sem ser apelativo, sem partidarizar sua denúncia, sem sujar de sangue o écran, Walter Salles terá feito o mais denso e mais revelador dos filmes brasileiros que mostram os horrores do regime militar. E não estou, com isso, dizendo que não se trata de grandes filmes, mas tão-somente evidenciando o olhar do diretor de "Ainda estou aqui", sua delicadeza estética ao lidar com um tema tão repugnante.
ACC – Quanto a mostrar certa ternura de alguns agentes policiais...
Alder – Isso está no livro, com todas as letras. Permita-me que reproduza textualmente o que diz Marcelo Rubens Paiva, e o que se pode ver no filme: "Olha, queria que a senhora soubesse que não concordo. Só estou cumprindo ordens. Eu não concordo com isso. Isso vai acabar. Um dia isso vai acabar. O que estão fazendo aqui não está certo". Trata-se, no caso, do mesmo soldado que, às escondidas, dera a Eunice Paiva uma barra de chocolate. São as contradições humanas muitas vezes impostas pelas circunstâncias. Não tornar o filme uma obra panfletária é uma das grandes qualidades do que se vê na tela.
ACC - O que ficará disso em termos práticos?
Alder – O fato de que, para além de ser uma obra de arte de valor imenso, um objeto artístico de rara beleza, o filme se presta a levar aos jovens (e não só a eles!), os horrores cometidos contra as pessoas durante o regime militar, a ditadura. Num momento em que se tenta minimizar o que aconteceu no país, incorrendo-se na insanidade de pedir uma intervenção militar no Brasil, a prática da tortura contra pessoas tachadas de comunistas, o que já por si dá a ver a brutalidade de tal pensamento, o filme, assim como o livro, mas numa proporção significativamente maior, contribuirá para o surgimento de uma nova consciência política. Esta, a mensagem do filme, se mensagem há. Esta, a força da arte como instrumento de denúncia do lado torto da realidade no país, o que é de uma importância inavaliável num tempo em que se pronunciam ideias de extrema direita, em que se faz a apologia do movimento fascista redivivo, a maior de todas as ameaças a que estamos expostos. Para isso existe a arte, para a um só tempo embelezar a vida e transformar o que precisa ser transformado.
ACC – Que posição no cinema brasileiro está reservada para Walter Salles, hoje?
Alder – No mínimo uma posição de reconhecido destaque, ombreando-se a cineastas do peso de Karin Aïnouz, Kléber Mendonça Filho, Anna Muylaert, Fernando Meireles, nomes que me ocorrem dizer aqui. Mas não me parece precipitado dizer que Salles é o cineasta brasileiro mais completo em atividade hoje. E não de agora, mas desde os anos noventa, quando lançou o belíssimo "Terra Estrangeira" (1995), e "Central do Brasil" (1998), obra que lhe deu prestígio internacional.
ACC – Em termos ligeiros, o que se deve entender como um "cineasta completo"?
Alder – Pergunta complexa, mas vamos lá. Por cineasta completo compreendo o realizador que demonstra absoluto domínio do instrumental cinematográfico, que seja capaz de se fazer presente em todas as etapas da realização de um filme, da produção do roteiro à decupagem, do uso do equipamento, da direção de elenco, da composição do quadro e da montagem. E, claro, que sua presença seja fundamental para o resultado do trabalho de tanta gente que participa de uma filmagem: técnicos, operadores de câmera, figurinista, diretor ou diretora de arte, continuísta, fotógrafo, enfim, da equipe como um todo. Walter Moreira Salles é este exemplo de um grande cineasta. Considero-o o nosso Bergman, pela assinatura inconfundível de sua obra já extensa e de altíssima qualidade. Faz cinema autoral, na linha do que fizeram Godard e Truffaut à época da Nouvelle Vague francesa.
ACC – Destaque uma ou duas sequências do filme que considera mais bem feitas.
Alder – São muitas as cenas ou sequências do filme que me impressionaram. Destacarei duas: a sequência da prisão de Rubens Paiva é de uma densidade dramática, de um rigor estético, de uma beleza formal que me emocionaram profundamente. O ritmo da narrativa é preciso, a escolha dos planos e o uso da luz irretocáveis, a que se soma uma direção de atores notável. O aceno de Selton Melo antes de entrar no carro, e o olhar de Fernanda Torres à porta de casa, no gesto de despedida, é algo inesquecível. E faço questão de citar os atores e não as personagens para ressaltar a dimensão artística do trabalho. Primoroso. A outra sequência que gostaria de citar é aquela em que a família, postada nos degraus da porta de casa, posa para o fotógrafo da revista Manchete. A composição do quadro é minuciosa, com equilíbrio de massa, tom de cor e granulação da imagem adequados, o que só é possível, certamente, pelo uso da película em lugar da fotografia digital, coisa complicada de fazer nos dias de hoje. Sem esquecer a fala de Eunice Paiva recusando-se a demonstrar tristeza ao se deixar fotografar. Sublime.
ACC – Para finalizar, virá o nosso primeiro Oscar?
Alder – Qualidades para isso existem de sobra no filme de Walter Salles. A premiação, sabemos, nem sempre se dá pelo juízo artístico unicamente. Há fatores que são mesmo estranhos ao que faz de um filme um grande filme. Mas são amplas as possibilidades, de melhor filme internacional, por exemplo, além do prêmio da melhor atriz para Fernanda Torres, que fez um trabalho absolutamente perfeito na pele de Eunice Paiva, a protagonista. Se vier, será definitivo para o prestígio de nossa cinematografia em nível do grande cinema mundial. Se não, relevemos isso. O filme de Walter Moreira Salles é uma obra-prima. Insisto: "Ainda estou aqui", o filme, é uma obra-prima. Bravo.
Alder Teixeira é mestre em Letras e doutor em Artes pela UFMG, com linha de pesquisa em cinema. Publicou livros sobre literatura, artes visuais e cinema. É autor, entre outros, de "Ingmar Bergman, estratégias narrativas", "Drummond, componentes dramáticos" e "Quase romance".
Assisti ao filme e muitas dessas observações analíticas pude perceber, mesmo não dominando a linguagem de Cinema propriamente dita.
ResponderExcluir👍 BELÍSSIMA COMO SEMPRE TUAS ANÁLISES ... COMO NOS HONRA MEU IRMÃO 👏 🤝
ResponderExcluirPerfeição define essa sua análise!
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