Assisto ao discurso do recém-empossado presidente americano, Donald Trump, e, ato contínuo, dirijo-me à estante para tomar em mãos exemplar de "Fama e anonimato" (Companhia Das Letras, 2021), o livro clássico de Gay Talese. Publicado nos anos 60, chegou ao Brasil por volta de 1973, mas só alguns anos depois, já na faculdade, o li pela primeira vez. Lembro que o fiz numa cópia amarfanhada, em xerox --- o original, de capa alaranjada, com o título de "Aos olhos da multidão", disputado a tapas por colegas universitários, notadamente os estudantes de jornalismo, mas não somente esses.
"Fama e anonimato" é obra-prima do chamado 'novo jornalismo', 'nova não-ficção' ou, como acho mais adequado dizer, 'jornalismo literário', cujas marcas estilísticas apontam para o texto jornalístico produzido com cuidados formais e perspectiva de abordagem informativa pelo viés da linguagem poética, tomando-se o termo segundo teoria do russo Roman Jackobson: o foco dela [da linguagem] está centrado na mensagem e em sua construção formal, gerando expressividade. Em suma, jornalismo feito com arte.
Na primeira das reportagens, produzida numa escrita que absorve o leitor de modo implacável, tanta é sua beleza, profundidade e "sabor", Talese explora a dimensão desconhecida da cidade de Nova York, o que define como invisível aos olhos dos americanos que vivem na mais importante cidade americana. São os trabalhadores anônimos, porteiros, guardas-noturnos, motoristas de ônibus, vendedores de rua, bilheteiros, ascensoristas e, para não me alongar, faxineiros de ambos os sexos, enfim, essa gente que faz Nova York existir, funcionar, manter-se aos olhos do mundo como uma das mais sedutoras das grandes cidades.
É aí que entra o discurso de Donald Trump como gatilho de minha motivação de voltar a um dos mais fascinantes livros de caráter jornalístico a que tive acesso em toda a minha vida. "Fama e anonimato" é, antes de tudo, um belíssimo livro.
Confundidos com criminosos pelo presidente recém-empossado, os imigrantes ou filhos de imigrantes (e não estou me referindo aos descendentes de colonizadores ingleses), compõem a matéria de que nos fala Gay Talese no seu livro extraordinário, gente que, exceções à parte, serve aos americanos com uma dedicação quase santificada, protegendo a sociedade, limpando ruas e hospitais, preparando comida, transportando mercadorias, dirigindo ônibus ou salvando vidas, mesmo as de potenciais suicidas, que ameaçam se atirar do alto da ponte Vezarrano-Narows sobre as águas do Hudson, também ela construída por imigrantes, em sua maioria índios mexicanos.
É notável, por exemplo, o que diz sobre os motoristas: "Os passageiros o ignoram, e continuarão a ignorá-lo até o momento em que perturbe a paz deles --- ao dar uma freada brusca, ao deixar de responder a uma pergunta ou de parar num ponto quando eles tocam o sinal. Dia após dia os motoristas padecem dessa rotina interminável, sabendo o que esperar --- e quando".
Ou sobre as faxineiras: "As faxineiras, muitas delas ucranianas, tchecoslovacas ou polonesas, trabalham 35 horas por semana e ganham um salário semanal inicial de 54,95 dólares. Elas trabalham para ajudar a sustentar famílias numerosas, para completar sua pensão ou para ficar longe de casa à noite".
Imigrantes nos EUA equivalem à população de uma Argentina, algo em torno de 46 milhões de pessoas. A mulher de Donald Trump nasceu na Eslovênia, Elon Musk (cuja saudação nazista dá a medida de suas intenções ao compor o governo Trump), nasceu na África do Sul.18 milhões de crianças têm pai ou mãe estrangeiros, e 5 milhões são filhas de pais e mães nascidas fora dos Estados Unidos. Dos cinco filhos de Trump, quatro nasceram de mães estrangeiras, pois a primeira mulher do presidente, já falecida, nasceu na República Tcheca. Para não falar da mulher do vice-presidente, Vence, também estrangeira, do secretário de Estado, Marco Rubio, filho de pais nascidos em Cuba e casado com filha de colombianos.
Tradicionalmente reconhecido como um país acolhedor, para onde se destinaram perseguidos do nazismo, os Estados Unidos de Donald Trump 2 constituem uma ameaça à paz mundial, e sinalizam (o gesto de Elon Musk o evidencia) que novo ovo da serpente está para eclodir. Voltaremos ao assunto depois, não sem antes recomendar a obra-prima de Gay Talese, cuja capacidade de ressignificar-se me salta aos olhos desde o discurso de posse de Donald Trump.
Excelente!
ResponderExcluirAo ouvir, atentasmenre, o discurso desse que, suponho esteja atualizando a visao de O Grande Ditador, pois agora quer ser o dono de Marte, vaticinei esse Ovo da Serpente 2 nas minhas deduções. O perigo ronda e a ameaça que paira sobre a democracia no mundo é preocupante. A ordem dada à bispa Mariann deixou claras as intenções ditadoras do Trump. Felizmente, ela se manteve firme e o mundo terá que se armar dessa firmeza para evitar um mal maior.
ResponderExcluirAinda creio na projeção de luz sobre as sombras.Vindas, exatamente de onde, impossível saber,por enquanto.
ResponderExcluir