Semana que passou escrevi neste espaço sobre "intertextualidade", citação, influência etc., e a prática ilícita da apropriação, cópia, furto, e outros procedimentos ilícitos vulgarmente chamados de plágio. Ao final do texto, pelas limitações de espaço, tão-somente fiz referência ao interessantíssimo livro "Você diz que meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Mendes, que acabara de ler. Terminava a coluna, por oportuno, com a observação de que voltaria ao tema. Faço-o hoje, reafirmando tratar-se de uma publicação incontornável sobre a matéria polêmica.
Intencionalmente, como os autores deixam evidenciado na Introdução ao livro, o título é feito de um trecho da música "Você não ouviu" (1966), de Chico Buarque de Holanda. De cara, pois, o livro expõe a sua vocação desinteressada, tomando-se o termo no sentido de descontraído, leve, gostoso, ainda que sem jamais abrir mão do rigor informativo. Coisa preciosa no gênero, portanto.
Imagine o que existe de inquietante em se saber que clássicos do cancioneiro popular brasileiro, músicas que nos acompanharam em diferentes fases de nossas vidas, "de repente, não mais que de repente", como está em Vinicius de Moraes, tenham a sua autoria questionada. Mais que isso, que essas músicas sejam apontadas como exemplos de "plágios descarados", bem na linha do que ocorre em casos de artistas da nossa mais assumida admiração, a exemplo de um certo Raimundo Fagner que, com justiça, por seu talento e inquestionável competência artística, figura entre as maiores expressões da Música Popular Brasileira. No mínimo, inquietante, para não dizer estarrecedor.
Entre os mais de 80 pequenos artigos, talhados todos eles em estilo que transita da notícia jornalística para a crônica especializada, com vasta e criteriosa referência às fontes, os autores, também eles compositores e músicos, além de advogados especializados em Direito Autoral, percorrem a história da música brasileira expondo os casos mais notórios de plágios e/ou acusações levianas que macularam ou destruíram reputações artísticas, desde épocas remotas aos dias de hoje.
Nesse sentido, é quase impossível destacar um ou outro desses fatos sem incorrer num tipo de subjetivação, tão numerosos e absolutamente interessantes são todos eles, como o da marchinha "Cidade Maravilhosa", de autoria de André Filho (1906-1974), muitas vezes acusada de plágio de um trecho de "La Bohème, de Puccini.
A polêmica, minuciosamente examinada pelos autores desse belíssimo livro, foi tanta e tão séria, que o vexame a que foi exposto o autor torna-se mais curioso que qualquer conclusão acerca do suposto plágio. Como a pouparem-se de entrar no mérito, o que roubaria do livro o componente prazeroso da leitura, Juca Novaes e Rodrigo Moraes proporcionam ao leitor, antes, uma experiência lúdica, um jogo que ao mesmo tempo deleita e ensina, à maneira de Horácio, poeta da Roma Antiga.
São igualmente sedutores, e delimitados pelo mesmo fio delicado que separa a constatação da injúria, os casos em que estiveram envolvidos nomes lendários da música brasileira, como Mário Lago (1911-2012), autor de "Nada Além" (com Custódio Mesquita), de 1938. Lago foi acusado de cometer o mesmo ilícito em pelo menos duas ou três composições por ele assinadas, sendo "Aurora" (com Roberto Roberti), de 1940, o caso mais relevante: "Se você fosse sincera ô ô ô ô, Aurora/Veja só que bom que era, ô ô ô ô, Aurora".
Que dizer das acusações assacadas contra Chico Buarque ("Januária"), Caetano Veloso ("Marinheiro só"), Roberto Carlos ("Eu disse adeus"), Tom Jobim ("Insensatez"), Vinicius de Moraes ("Samba em prelúdio") ou mesmo o maestro Villa-Lobos? Sobre esses, é preciso frisar, Juca Novaes e Rodrigo Moraes saem em defesa explícita, isentando-os de plágio ou considerando aceitáveis as influências reconhecidas em algumas músicas de enorme sucesso. Tudo isso, a preservar a seriedade do estudo, com a adoção de critérios que sobressaem a eventuais fumaças da mera fofoca ou inconsequentes rumores.
Caso particular, por tratar-se de omissão imperdoável ou apropriação indébita, volto a referir, envolve o compositor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes, em pelo menos dois gravosos exemplos, ambos no disco de estreia, "Manera Fru Fru Manera", de 1973. Nele, a letra da música "Canteiros", escancaradamente copiada do poema "Marcha", de Cecília Meireles, aparece no disco sem qualquer referência à poeta carioca, bem como a belíssima "Penas do Tiê", indiscutível reescritura de composição do folclorista, compositor e maestro alagoano Hekel Tavares.
No primeiro caso, o artista cearense alega responsabilidade da gravadora, Polygram, por não lançar o encarte ao disco em que apareceria o nome de Cecília Meireles. No segundo, infelizmente, o próprio Fagner retratou-se em carta, abrindo mão dos direitos autorais da música em favor dos filhos de Hekel Tavares. Ainda assim, insinua ignorar a existência prévia da composição supostamente plagiada.
Conclusivamente, retomo o eixo de argumentação da coluna anterior: não fica afastada a hipótese de que Fagner tenha feito uma descuidada citação intertextual. Conta a seu favor o fato de que, no caso de "Canteiros", há uma outra referência poética a autor muito conhecido, o também cearense Belchior, cujos versos de "Hora do Almoço" são reproduzidos, explícita e assumidamente, por Raimundo Fagner.
*O título da coluna constitui subtítulo do livro.
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