quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Intertexto: um breve olhar

No auge do Cinema Novo, o cineasta François Truffaut afirmou: "Todos os grandes filmes já foram feitos". Em palavras miúdas, o realizador de "Os Incompreendidos" evidenciava que, à certa altura, nada seria absolutamente original em termos cinematográficos, ou seja, todo e qualquer filme, sob algum aspecto, daria a ver influências recebidas de outros filmes marcantes da história do cinema: a recorrência de um tema, uma perspectiva de análise, um enquadramento, um movimento de câmera, as estratégias narrativas do "texto" cinematográfico, portanto, ecoariam realizações já conhecidas, absorvidas como verdadeiros modelos a serem seguidos.
A história da sétima arte confirmaria as palavras do cineasta francês. Assim, tornou-se comum no cinema o que se convencionou chamar, a partir da semiótica, de intertextualidade*, e filmes se notabilizaram por citar outros filmes, não raro explorando fragmentos de realizações cinematográficas anteriores. Um tipo de reconhecimento autoral, muitas vezes constituindo homenagens memoráveis a autores notáveis, a exemplo de John Ford, Fellini, Kurosawa, Rossellini, Bergman e tantos outros gênios do cinema, cujas obras ficariam gravadas no imaginário do espectador.
Na falta de melhor expressão, passou-se a falar de "filme dentro do filme", como a explicitar a intencionalidade do realizador: exaltar seus mestres, dos quais terá herdado o jeito de fazer cinema, de lançar mão dos recursos de linguagem de uma arte nascida da soma de outras artes, quer na perspectiva da forma, do plano da expressão, quer na perspectiva do conteúdo. Isso, por dever de justiça, jamais seria considerado, pelo menos entre os especialistas ou mesmo do simples cinéfilo mais familiarizado com esta arte fascinante, como plágio, ou seja, imitação ilícita de uma obra pré-existente e protegida pela lei autoral.
A intertextualidade ocorre sempre que um "texto" (no caso, o texto cinematográfico) é citado por outro texto, num tipo de diálogo com textos já existentes. Importante destacar, por oportuno, que esse fenômeno ocorre em relação a diferentes tipos de texto: verbais, não verbais e mistos, a exemplo do cinema. Toma-se o texto aqui, claro, em sentido amplo: um poema, um romance, uma notícia de jornal, uma propaganda, uma tela, uma música etc., são textos, mesmo que estruturados em linguagens distintas.
Na música popular brasileira, por exemplo, o fenômeno se faz presente em grandes clássicos, verdadeiras obras-primas do cancioneiro musical. Caetano Veloso, para ficar num exemplo, reconhecido compositor, letrista e intérprete, nome de inquestionável correção profissional, usa e abusa do recurso: "Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir". Os versos, belíssimos, da música "Dom de Iludir" reeditam um clássico de Noel Rosa e Vadico: "Pra que mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir? Pra que mentir, se tu não tens ainda a malícia de toda mulher?".
Em "Sampa", outro clássico de sua autoria, Caetano Veloso faz referência explícita a "Ronda", de Paulo Vanzolini. Em "Terra", homenageando o conterrâneo Dorival Caymmi, reproduz versos de "Você já foi à Bahia?": "Na sacada dos sobrados, da velha São Salvador, há lembranças de Donzelas do tempo do Imperador. Tudo, tudo, na Bahia faz a gente querer bem. A Bahia tem um jeito...".
São inúmeras as composições em que Caetano Veloso cita versos conhecidos de autores consagrados. Nada mais convincente, nesse sentido, que o estribilho do clássico carnavalesco "Frevo Novo", em que os versos "A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião", notável adaptação de "A praça é do povo, como o céu é do condor", do poema "O povo no poder", do romântico Castro Alves. Aqui, a revelar a sensibilidade estética de Caetano Veloso, o próprio espírito do poema original é resgatado, numa exaltação festiva do libertário poeta da terceira fase do Romantismo brasileiro, cantado a plenos pulmões nas ruas de Salvador durante o Carnaval.
A propósito, acabo de ler um livro extraordinário sobre o tema: "Você diz que o meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Moraes, Salvador EDUFBA, 2025. Trata-se de um trabalho incontornável sobre plágio, tema delicadíssimo em tempos de Inteligência Artificial. Recomendo-o com entusiasmo.
E voltarei ao tema depois. 
*São conhecidos, mais vulgarmente, sete tipos de intertextualidade: alusão ou referência, citação, paráfrase, epígrafe, bricolagem, paródia e tradução.
 
 
 

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