quinta-feira, 7 de abril de 2016

A vaidade de Ivan Ilitch

Morávamos nas proximidades da casa do Juiz da Comarca, de cujo nome não me lembro mais. Nunca esqueci, todavia, o que representou para o garoto que fui a sua presença ameaçadora. Se a bola, durante o futebol de rua, achava de cair em sua calçada, qual de nós era suficientemente corajoso para resgatá-la? Nenhum, até que algum transeunte adulto o fizesse, desatento, chutando-a para o campo de peleja. Só então a pelada reiniciava, não raro um quarto de hora depois.
 
Certo dia, a golpes de cinto, surrou um senhor que morava nas imediações de sua casa. Foi mais longe: na mesma semana surrou, supostamente com o mesmo cinto, a mulher do referido homem, figura conhecida, que, um dia, viria a ser vereador na cidade. Todos, que não me ocorrem as exceções, tremiam diante de sua presença, como disse, invariavelmente ameaçadora. Era o homem que prendia, que mandava soltar, que dava sovas, que fazia e acontecia, que pintava o sete, para usar de uma expressão recorrente à época.
 
Muitos anos depois, já amante da literatura, deparei com uma personagem que me traria à memória o aludido juiz. Ah, agora me ocorre o nome deste: chamava-se Carlos. A personagem, do clássico de Tolstói, Ivan Ilitch, um juiz esnobe, vaidoso, desapegado à ética e empavonado por força dos poderes que lhe conferia o cargo: "[...] era-lhe agradável passear com desenvoltura, em seu uniforme talhado por Charmer, junto aos solicitantes trêmulos, que esperavam ser recebidos, e aos outros funcionários, que o invejavam".
 
Em pouco mais de 80 páginas, o livro de Tolstói constitui uma reflexão soberba acerca do abuso do poder, da vaidade desmesurada daqueles a quem cabe julgar os outros, da procura a qualquer custo de "parecer estar bem", atento às vontades de uma sociedade que visa sempre à manutenção de seus privilégios e de suas regalias.
 
Ivan Ilitch é a versão clássica do juiz que se arvora justiceiro, daquele que, dizendo-se "escravo da lei", faz valer o Direito.  A esse propósito, dou voz ao próprio narrador: "Todo o interesse da sua existência se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência da sua força, que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos, seu êxito com superiores e subordinados e, sobretudo, a maestria com que conduzia os processos criminais e da qual se orgulhava  --  tudo isso lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par das palestras com os colegas, os jantares, o uíste (jogo)".
 
Um acidente doméstico, no entanto, que a princípio não lhe parecia grave, leva o poderoso Ivan a uma agonia humilhante. Ao fundo de uma enfermidade que o consome, só então o poderoso juiz desenvolve as reflexões que dão à obra de Tolstói a capacidade de atualizar-se sempre: Conclui que a sua vida esteve orientada pelos interesses escusos, pelo faro da perseguição aos desafetos, e, magistral, era tudo "farinha do mesmo saco", incluindo-se aí os seus colegas magistrados. "É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim  --  a sepultura me espera".
 
A leitura de "Ivan Ilitch", esse texto estupendo da literatura russa, que explode em modernidade e, cada vez mais, reatualiza-se em seus muitos sentidos, fez retornar à mente do menino distante as lembranças do juiz Carlos e sua imagem assustadora. Ivan apaixonou-se pela imagem que lhe construiu a burguesia, os ricos do seu tempo, ávidos de manter intocáveis suas vantagens e prerrogativas. E afagava-lhe a alma sentir-se um deles. Como outros juízes do nosso tempo.
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A atualidade de Kafka

Natural de Praga, na antiga Tchecoslováquia, Franz Kafka é um dos escritores mais influentes da literatura universal. Escreveu romances e contos que romperam os limites geográficos e temporais, todos marcados por uma sensação claustrofóbica e angustiante que resultariam num adjetivo usado, até mesmo por quem jamais leu qualquer dos seus livros, para definir o beco sem saída, o desespero de quem se sente impotente diante do caos, da perseguição sem causa e do arbítrio que reduz a condição humana à bestialidade mais insuportável: "Kafkiano".
 
O conto A Metamorfose, supostamente o mais conhecido dos escritos de Kafka, narra a história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que desperta uma certa manhã sob o pesadelo de ver-se transformar num grande inseto, passando, a partir desse fenômeno surreal, a viver as mais inusitadas situações, que culminam com o abandono de sua própria família e a sua morte solitária.
 
Em outro, O Veredicto, um filho é levado pelo próprio pai a cometer suicídio. A leitura crítica dos contos de Kafka, pois, aponta para um simbolismo que se reatualiza com o passar dos tempos e retrata a falta de perspectiva do homem diante do desconhecido, da ganância do poder a todo custo, das práticas fascistoides a que se vê de repente e injustificavelmente condenado.
 
Mas é com romance O Processo que o escritor tcheco atinge o mais elevado estágio de ficcionista genial que foi. Aqui a personagem central é Joseph K., preso e condenado à morte sem motivo, sem explicação possível, sem direito a defender-se da acusação de um crime que jamais cometeu. A narrativa desenvolve-se num clima de absoluto desespero, claustrofobia e náusea que toma de assalto o leitor. O livro seria objeto de uma adaptação cinematográfica notável, The Trial, filme dirigido por Orson Welles e com Anthony Perkins no papel de Josef K.
 
O romance tem início com a prisão de Joseph K., sem nada que a justifique, como é próprio nos regimes totalitários e nas práticas hediondas do fascismo. A fala do agente policial é emblemática: - "Não  --  retrucou o homem que estava junto à janela, deixando o seu livro sobre uma mesinha e pondo-se de pé. Você não pode sair, está detido".
 
Impedido de movimentar-se e sair do quarto à procura dos seus direitos legais, Joseph K. pede explicações para o que se passa, mas a resposta é "kafkiana": - "Não me cabe explicar isso. Volte para o seu quarto e espere ali. O inquérito está em curso, de modo que se inteirará de tudo em seu devido tempo".
 
Começa, assim, o martírio da personagem de O Processo. O labirinto que terá de percorrer à procura de seus direitos, nunca alcançados, materializa a absoluta ausência de um Estado democrático de Direito.
 
À dada altura, Joseph K., busca entender o absurdo da situação em que se vê inexplicavelmente envolvido: - "Que espécie de homens eram estes? De que estavam falando? A que Departamento oficial pertenciam? Quem eram aqueles que se atreviam a invadir sua casa?" Impotente, ainda tenta argumentar: - "Aqui está meus documentos de identidade; mostrem-me os seus e, especialmente, a ordem de prisão".
 
O romance metaforiza, à perfeição, a destruição dos valores democráticos, o solapar dos direitos do homem e da legitimidade da ordem pública. Adverte-nos, com sua representação alegórica, de como se processam os mecanismos totalitários e de como se dá a implantação do autoritarismo mais vil e repugnante. Sombrio e assustador, exemplifica o desastre que se anuncia, ansioso e alienador. Sua leitura, por certo, ajudaria a compreender o que se passa hoje no Brasil, com sua história protagonizada por Sérgio Moro e cia.