segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Na manhã de domingo

Com a morte de Ferreira Gullar, na manhã de domingo 4, perde a inteligência brasileira um dos seus maiores nomes. Poeta, ensaísta, letrista, tradutor, roteirista e crítico de arte, José Ribamar Ferreira, 86, para orgulho dos nordestinos, era natural do Maranhão.

Foi um dos renovadores da linguagem poética, tendo participado ativamente do neoconcretismo na literatura e nas artes visuais, de que veio a se tornar o maior crítico brasileiro desde a morte de Mário Pedrosa. Como este, Gullar era homem de formação marxista, mas, nos últimos anos, transformou-se num desafeto do governo do Partido dos Trabalhadores, assinando crônicas para a Folha de S. Paulo em que expressava seu desencanto em face dos rumos políticos que vinha tomando o país. Em muitos desses textos, diga-se de passagem, era indisfarçável algum ranço pessoal, o que não raro redimensionava para menor a qualidade de sua crítica, invariavelmente dura e irredutível.

Não importa, agora, no entanto, falar de seu engajamento e de suas desilusões com o rumo que tomou a esquerda nos últimos anos. De resto, são posições próprias de quem, como ele, foi sempre um defensor intransigente das liberdades. Nesse sentido, é a voz de sua arte que confirma com maior exatidão a presença do homem coerente e firme, reverberando com uma força lírica incomum as lembranças de um tempo que queremos esquecer, mas diante do qual o silêncio nunca é a melhor saída. Por isso, seu lirismo tem algo de trágico e, por vezes, subversivo no sentido mais exato da palavra. Por isso, ninguém melhor que Ferreira Gullar para exemplificar o que existiu de mais digno e significativo em termos intelectuais e artísticos, no Brasil, desde a redemocratização. Nenhum outro foi capaz de exprimir as inquietações do homem moderno com tão grande sensibilidade e capacidade de análise, mesmo quando se viu forçado a negar tendências estéticas antes acolhidas com entusiasmo e convicção. Não à toa, pois, é que rompeu com a poesia concreta, tornou-se um desafeto dos irmão Campos (Haroldo e Augusto) e apontou sem meias-palavras a banalização da arte dita conceitual.

Mas é do poeta, insisto, que gostaria de falar um pouco. Para dizer o quanto marcou os de minha geração, não apenas por força do entusiasmo natural advindo da descoberta do Poema Sujo, que tão exemplarmente serviu de farol em meio à escuridão dos anos de chumbo; para dizer da sintonia com a sua visão de mundo e a sua notável compreensão do amor e da paixão, bem como de todos os muitos desafios que tivemos pela frente ainda tão jovens e tão despreparados para o enfrentamento da vida.

É dessa época, por exemplo, que me vêm à mente, espontâneos e incontidos, os versos em que nos adverte sobre o trabalho, árduo e anônimo, dos cortadores de cana: "Este açúcar era cana/e veio dos canaviais extensos/que não nascem por acaso/no regaço do vale.//Em lugares distantes, onde não há hospital/nem escola,/homens que não sabem ler e morrem/aos vinte e sete anos/plantaram e colheram a cana/que viraria açúcar//Em usinas escuras,/homens de vida amarga/e dura/produziram este açúcar/branco e puro/com que adoço meu café esta manhã em Ipanema".

É dela que me retornam, vindos mais do coração que da mente, outros, assim tão doces, tão puros: "Você é mais bonita que uma bola prateada/de papel de cigarro/Você é mais bonita que uma poça dágua/límpida/num lugar escondido/Você é mais bonita que uma zebra/que um filhote de onça/que um Boeing 707 em pleno ar/Você é mais bonita que um jardim florido/em frente ao mar em Ipanema/Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás/de noite/mais bonita que Úrsula Andress/que o Palácio da Alvorada/mais bonita que a alvorada/que o mar azul-safira da República Dominicana//Olha você é tão bela quanto o Rio de Janeiro/em maio/e quase tão bonita/quanto a Revolução Cubana".

Sim, é desse tempo que já vai longe, que me retornam, de cor, sem errância, sem lapsos de memória, as estrofes apaixonantes de Ferreira Gullar em Dentro da noite veloz: "Meu povo e meu poema crescem juntos/como cresce no fruto/a árvore nova//No povo meu poema vai nascendo/como no canavial/nasce verde o açúcar//No povo meu poema está maduro/como o sol/na garganta do futuro//Meu povo e meu poema/se refletem//como a espiga se funde em terra fértil//Ao povo seu poema aqui devolvo/menos como quem canta/do que planta".

Ou do suave e terno erotismo de Coito: "Todos os movimentos/do amor/são noturnos/mesmo quando praticados/à luz do dia//Vem de ti o sinal/no cheiro ou no tato/que faz acordar o bicho/em seu fosso:/na treva, lento,/se desenrola/e desliza em direção a teu sorriso".

Com a morte de Ferreira Gullar, eu dizia, morre mais que um poeta, posto que é um pouco da poesia que desaparece na manhã de domingo. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Ex-amor

Dia após dia, vai se confirmando nos bastidores da política brasileira o que todos já sabiam: foi golpe, e tinha por maior objetivo impedir que a operação Lava Jato investigasse quadros importantes da dupla PMDB/PSDB. Para não falar, óbvio, do jogo de interesses espúrios na linha daquele que levou Geddel Vieira Lima à lona. Lixo sobre lixo, numa sequência que a um tempo enoja e revolta, o (des)governo de Michel Temer parece apontar para seu desfecho antes mesmo de começar. Mesmo quando, visando a safar-se da repercussão negativa e coerente com sua vocação de traidor, o presidente anuncia que vetará alterações no projeto anticorrupção aprovado, noite alta, pelos senadores, e que, sabe-se, faziam parte das manobras arquitetadas na intimidade de almoços e jantares promovidos pelo próprio Michel Temer. Uma vergonha.

Sobre isso, por oportuno, merece destaque a entrevista concedida à Folha de S. Paulo, edição desta quinta 01/12/2016, pelo ex-amor da corja golpista, Joaquim Barbosa. Para os que não leram, aqui vão alguns trechos notáveis do que falou Barbosa.

Impeachment: "... uma encenação que fez o país retroceder a um passado no qual éramos considerados uma República de Bananas. [...] Todos os passos já estavam planejados desde 2015. Aqueles ritos ali [no Congresso] foram cumpridos apenas formalmente".

Interesses por trás da manobra: "Era um grupo de líderes em manobras parlamentares que têm um modo de agir sorrateiro. Agem às sombras. E num determinado momento decidiram derrubar [Dilma Rousseff]".

Fim da Lava Jato: "Há [riscos] sim, porque a sociedade brasileira ainda não acordou para a fragilidade institucional que se criou quando se mexeu num pilar fundamental do nosso sistema de governo, que é a Presidência. Uma das consequências mais graves de todo esse processo foi o seu enfraquecimento".

Apoio popular ao golpe: "Aquelas lideranças da sociedade que apoiaram com vigor, muitas vezes com ódio, um ato grave como o impeachment não tinham clareza da desestabilização estrutural que [isso] provoca".

Envolvimento do Capital: "A partir de determinado momento, sob o pretexto de se trazer estabilidade, a elite econômica passou a apoiar, aderiu. Mas a motivação inicial é muito clara".

Consequências do golpe: "No momento em que você mina esse pilar central, todo o resto passa a sofrer desequilíbrio estrutural. Todas as teorias dos últimos anos 30 anos, de hipertrofia da Presidência, de seu poder quase imperial, foram por água abaixo. A facilidade com que se destituiu um presidente desmentiu todas essas teses. No momento em que o Congresso entra em conluio com o vice para derrubar um presidente da República, com toda a sua estrutura de poder que se une, não para exercer controles constitucionais, mas sim para reunir em suas mãos o poder, nasce o que eu chamo de desequilíbrio estrutural".

Ilegitimidade de Temer: "Essa desestabilização empoderou essa gente numa Presidência sem legitimidade unida a um Congresso com motivações espúrias. E esse grupo se sente legitimado a praticar as maiores barbáries institucionais contra o país".

Risco de Temer cair: "Corre risco. É tão artificial essa situação criada pelo impeachment que eu acho, sinceramente, que esse governo não resistiria a uma série de manifestações".

Retrocesso político: "O Brasil deu um passo para trás gigantesco em 2016. As instituições democráticas vinham se fortalecendo de maneira consistente nos últimos 30 anos. [...] E houve uma interrupção brutal desse processo de 'rebananização' [voltar a ser uma país de bananas]. É como se tivéssemos voltando ao passado no qual éramos considerados uma República de Bananas. Isso é muito claro. Basta ver o olhar que o mundo lança sobre o Brasil hoje.

Com a palavra, os coxinhas, seus ex-amantes.