Com a morte de Ferreira Gullar, na manhã de domingo 4, perde a inteligência brasileira um dos seus maiores nomes. Poeta, ensaísta, letrista, tradutor, roteirista e crítico de arte, José Ribamar Ferreira, 86, para orgulho dos nordestinos, era natural do Maranhão.
Foi um dos renovadores da linguagem poética, tendo participado ativamente do neoconcretismo na literatura e nas artes visuais, de que veio a se tornar o maior crítico brasileiro desde a morte de Mário Pedrosa. Como este, Gullar era homem de formação marxista, mas, nos últimos anos, transformou-se num desafeto do governo do Partido dos Trabalhadores, assinando crônicas para a Folha de S. Paulo em que expressava seu desencanto em face dos rumos políticos que vinha tomando o país. Em muitos desses textos, diga-se de passagem, era indisfarçável algum ranço pessoal, o que não raro redimensionava para menor a qualidade de sua crítica, invariavelmente dura e irredutível.
Não importa, agora, no entanto, falar de seu engajamento e de suas desilusões com o rumo que tomou a esquerda nos últimos anos. De resto, são posições próprias de quem, como ele, foi sempre um defensor intransigente das liberdades. Nesse sentido, é a voz de sua arte que confirma com maior exatidão a presença do homem coerente e firme, reverberando com uma força lírica incomum as lembranças de um tempo que queremos esquecer, mas diante do qual o silêncio nunca é a melhor saída. Por isso, seu lirismo tem algo de trágico e, por vezes, subversivo no sentido mais exato da palavra. Por isso, ninguém melhor que Ferreira Gullar para exemplificar o que existiu de mais digno e significativo em termos intelectuais e artísticos, no Brasil, desde a redemocratização. Nenhum outro foi capaz de exprimir as inquietações do homem moderno com tão grande sensibilidade e capacidade de análise, mesmo quando se viu forçado a negar tendências estéticas antes acolhidas com entusiasmo e convicção. Não à toa, pois, é que rompeu com a poesia concreta, tornou-se um desafeto dos irmão Campos (Haroldo e Augusto) e apontou sem meias-palavras a banalização da arte dita conceitual.
Mas é do poeta, insisto, que gostaria de falar um pouco. Para dizer o quanto marcou os de minha geração, não apenas por força do entusiasmo natural advindo da descoberta do Poema Sujo, que tão exemplarmente serviu de farol em meio à escuridão dos anos de chumbo; para dizer da sintonia com a sua visão de mundo e a sua notável compreensão do amor e da paixão, bem como de todos os muitos desafios que tivemos pela frente ainda tão jovens e tão despreparados para o enfrentamento da vida.
É dessa época, por exemplo, que me vêm à mente, espontâneos e incontidos, os versos em que nos adverte sobre o trabalho, árduo e anônimo, dos cortadores de cana: "Este açúcar era cana/e veio dos canaviais extensos/que não nascem por acaso/no regaço do vale.//Em lugares distantes, onde não há hospital/nem escola,/homens que não sabem ler e morrem/aos vinte e sete anos/plantaram e colheram a cana/que viraria açúcar//Em usinas escuras,/homens de vida amarga/e dura/produziram este açúcar/branco e puro/com que adoço meu café esta manhã em Ipanema".
É dela que me retornam, vindos mais do coração que da mente, outros, assim tão doces, tão puros: "Você é mais bonita que uma bola prateada/de papel de cigarro/Você é mais bonita que uma poça dágua/límpida/num lugar escondido/Você é mais bonita que uma zebra/que um filhote de onça/que um Boeing 707 em pleno ar/Você é mais bonita que um jardim florido/em frente ao mar em Ipanema/Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás/de noite/mais bonita que Úrsula Andress/que o Palácio da Alvorada/mais bonita que a alvorada/que o mar azul-safira da República Dominicana//Olha você é tão bela quanto o Rio de Janeiro/em maio/e quase tão bonita/quanto a Revolução Cubana".
Sim, é desse tempo que já vai longe, que me retornam, de cor, sem errância, sem lapsos de memória, as estrofes apaixonantes de Ferreira Gullar em Dentro da noite veloz: "Meu povo e meu poema crescem juntos/como cresce no fruto/a árvore nova//No povo meu poema vai nascendo/como no canavial/nasce verde o açúcar//No povo meu poema está maduro/como o sol/na garganta do futuro//Meu povo e meu poema/se refletem//como a espiga se funde em terra fértil//Ao povo seu poema aqui devolvo/menos como quem canta/do que planta".
Ou do suave e terno erotismo de Coito: "Todos os movimentos/do amor/são noturnos/mesmo quando praticados/à luz do dia//Vem de ti o sinal/no cheiro ou no tato/que faz acordar o bicho/em seu fosso:/na treva, lento,/se desenrola/e desliza em direção a teu sorriso".
Com a morte de Ferreira Gullar, eu dizia, morre mais que um poeta, posto que é um pouco da poesia que desaparece na manhã de domingo.
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