quinta-feira, 9 de setembro de 2010

No teu deserto

Como de costume, durante garimpagem na Siciliano, deparo com o escritor Dimas Macedo. E ficamos os dois, embriagados de literatura, a exemplo do que fazemos sempre, comentando obras e autores que nos apaixonam, sem percebermos o tempo que passa. Num rompante, o amigo levanta-se, quase assustando-me: - "Poeta [é assim que me chama], você não pode deixar de ler um romance..." E retorna, segundos depois, portando um pequeno livro, os olhos brilhando daquele entusiasmo que nos domina sempre que apresentamos a um amigo uma pérola recém-descoberta.

Trata-se do romance No teu deserto, do português Miguel Sousa Tavares, de quem, confesso, apenas conhecia o já renomado Equador, livro com que veio a público no Brasil há coisa de uns poucos anos. Ainda na presença de Dimas, e contaminado do seu entusiasmo, inicio ali mesmo a leitura dessa breve e sedutora narrativa, como havia muito não encontrava na literatura de língua portuguesa contemporânea. Uma belíssima história de amor envolvendo um jornalista maduro e uma garota quinze anos mais nova.

Encontram-se na circunstância de uma viagem ao Saara, que o destino colocara a ambos como projeto individualmente traçado. Tem início, assim, como obra do acaso, do talvez ou do quem sabe, um relacionamento marcado pela força de um amor indômito, indiferente à lógica subjetiva das individualidades. Ele, racional, apolíneo; ela, impetuosa e dionisíaca; ambos, invadidos de motivação para as descobertas do imponderável. Não haveria mesmo melhor ingrediente para se tecer um belo romance. A diferença, no entanto, para-além do ofício e da técnica, com cujo domínio se tecem as belas histórias, está na forma intensamente original com que Tavares construiu esse pequeno-grande livro sobre o amor e suas reverberações na vida de um homem.

A história começa quando, acidentalmente, enquanto procura numa gaveta algo de que, de repente, não é capaz de lembrar, cai às mãos do narrador (o ponto de vista alterna entre ele e ela, ao longo da narrativa) uma fotografia dela tirada durante a viagem: "[...] É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas refletem, não é a felicidade, mas sim a traição - quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficamos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade pudesse suspender carregando no botão 'pausa' no filme da vida." No teu deserto, como vemos, é uma intensa, poética e incontornável reflexão sobre a transitoriedade do amor.

Da leitura desse belíssimo romance, vêm, como moscas à ferida, as perguntas que todos fazemos, cedo ou tarde, numa ou noutra circunstância, sempre que o amor acaba: Onde queda, adormecido, o sentimento que nos uniu um dia na 'utópica convicção' da eternidade? Aonde vaga, nebuloso, o 'eu te amo' tantas vezes dito? E os planos que fizemos, diz-me, onde estão? É o que angustia o narrador ao final do livro: "O que fomos nós um para o outro: apenas companheiros eventuais de viagem? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro?"

2 comentários:

  1. Se o amor acaba, as transformações que ele fez em nossas vidas, não...
    Sendo assim, sempre haverá um pouco do ser amado empreguinado em nós.
    Beijão!

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  2. O que é pouco, muito pouco, para o que um dia foi tão grande! Mas é verdadeiro o que você diz. E bonito, muito bonito!
    Outro beijão!

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