quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O amor e a razão

Leitora faz uma reflexão curiosa sobre crônica As palavras de Saramago: - "Você não acha que casar com uma mulher 28 anos mais nova e fazer as declarações de amor que fez, não vai de encontro à racionalidade que Saramago sempre demonstrou ter?" Bem, amiga, se compreendo o que você argumenta, afirmo que não. Sua indagação, que mais constitui uma afirmação, na perspectiva da análise do discurso, reedita uma concepção do "amor romântico", inapropriado, assim, para um homem extremamente racional, como você observa com tanta correção ser o escritor português. Tentarei ser mais objetivo valendo-me do próprio Saramago, se me permite: - "A razão não é inimiga das ilusões, dos sonhos, da esperança, de todas essas coisas que têm a ver com os sentimentos... Porque a razão não é algo frio, não é algo mecânico. A razão é o que é, com tudo o que a gente tem de sentimento, de desejos, de ilusões, disso tudo."

A sua pergunta, que é mesmo um tipo de afirmação, como disse, talvez explique por que os relacionamentos tornaram-se tão vazios, explosivos, intensos... mas fugazes, fogos de palha, para ficar numa expressão. Esse modelo, romântico, idealizado, à Romeu e Julieta, para lembrar Shakespeare, talvez seja hoje demasiado anacrônico para encontrar seu espaço. Ocorre-me lembrar Luis Fernando Veríssimo: Romeu e Julieta permanecem como ícones da paixão "porque morreram e não tiveram tempo de passar pelas adversidades a que os relacionamentos estão sujeitos pela vida afora! [...] Romeu não disse para Julieta que a amava, que ela era especial e depois sumiu por semanas. Julieta não teve a oportunidade de mostrar para ele quanto ficava insuportável na TPM."

Brincadeira à parte, é isso mesmo. As relações duradouras, que são cada vez mais raras, atingem essa condição por que envolvem uma dosagem dominante de racionalidade, de equilíbrio, porque Apolo domina Dionísio em meio às dificuldades comuns a qualquer experiência de vida a dois. Por isso, na contramão do que parece sugerir, não enxergam as diferenças, mesmo as de idade, como no caso de Saramago e Pilar del Río, porque são capazes de compreender o abismo que separa o essencial do supérfluo, o inteligível do sensível, a ideia da aparência, como no 'mito da caverna' de que nos falou Platão.

Não vê, agora, como as palavras de Saramago revelam a atitude do homem movido pela razão? Só assim faz sentido a declaração comovente do seu amor: - "Com 63 anos, quando já não se espera nada, encontrei o que faltava [Pilar del Río] para passar a ter tudo." Pura luz, pura razão.

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