quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O ano de nossas vidas

Eis que chegamos a 2011. 2010 não foi um ano fácil, eu sei, pelo menos para mim. Mas desejo que tenha sido bom para vocês. Aliás, pensando bem, acho que estou sendo injusto com a vida. Se ela me deu no ano que passou alguns dissabores, e, já no desfecho, um momento dramático para enfrentar, fiz coisas boas, muitas. Retomei um segundo doutorado e estou pesquisando a obra teatral de um dos meus autores preferidos, Nelson Rodrigues; "deixei de comprar o meu câncer", como disse a poeta (assim, como está escrito) Elisa Lucinda quando parou de fumar; terminei um livro novo e arrumei a casa para a chegada de Carolina, a minha filha que vem morar comigo a partir de agora; fiz novas amizades e alimentei as antigas etc. Como se vê, até que não foi improdutivo o ano.
 
Li muito, li como não fazia há tempos, de Vargas Llosa a Jorge Luis Borges, que, tenho o atrevimento de confessar, não está entre os meus escritores mais amados. Reli alguns clássicos, folheei novidades, vi e revi filmes... escrevi, ministrei cursos interessantes, conheci gente nova e nutri uma paixão inesperada, que é do casual que se faz (e refaz) a vida.
 
No cenário nacional, é provável que 2010 tenha sido um ano alvissareiro: a economia foi bem, a crise financeira internacional nos atingiu como uma "marolinha", tivemos um presidente que se redimensionou em suas possibilidades, pacificaram o Rio de Janeiro, elegemos a nossa primeira mulher presidente, enfim, um ano de conquistas e realizações, mesmo para os eternamente-insatisfeitos-de-plantão  -  e o Brasil, pouco mais ou menos, tornou-se o país dos sonhos. Sem fechar os olhos para a porrada de coisas que ainda estão por fazer, claro. Mas o balanço é positivo, positivíssimo, eu diria.
 
Decepções, fracassos, desencantos, fatalidades etc., são coisas naturais, que fazem parte da vida por inteiro, que ela não é só feita de graças. O amigo faltou, a namorada desistiu de tentar, o sonho da viagem não se tornou possível? Fazer o quê? Entregar-se à tristeza, à saudade que dilacera, à frustração que silencia a nossa capacidade de sonhar? Acho que a virada do ano traz consigo a possibilidade de sermos melhores, de darmos o troco ao que não deu certo nutrindo a esperança de que no Ano Novo haverá de dar, de conquistarmos novas amizades, de que o dinheiro, se bem gasto, poderá ser suficiente para aquela viagem com que você sonhou, de que a natureza seja mais generosa, de que surgirá o grande amor, de que poderá se dar o reencontro, de que tanta coisa boa está por acontecer. A vida é bailarina, já nos dizia o poeta, e nenhum ponto inerte anula o eterno viravoltear das coisas.

Que o Ano Novo venha cheio da sabedoria que nos faltou, da fé que não tivemos, da certeza de que Deus é bom e nunca faltará com aqueles que acreditam na eternidade de sua existência. Que o Ano Novo nos renove naquilo que ficou envelhecido, que se desgastou pelos tantos equívocos que cometemos, pelas faltas que poderíamos ter evitado, pela intolerância com que nos tratamos tantas vezes uns aos outros. Que o Ano Novo, de tão bom, seja o ano de nossas vidas!


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Então, é Natal!

Para Regina Jereissati

Lispector, Clarice Lispector, tem uma crônica que fala de uma experiência curiosa: recebera um telefonema de alguém comunicando que uma moça que conhecera faria uma apresentação musical na tevê. A cronista fica intrigada, pois a jovem tinha uma voz delicada, uma voz de criança, de um feminino infantil. Mas liga a tevê e se pergunta: - "Terá ela força ao piano?" E qual não é a surpresa, posto que a moça tocava um piano irrepreensível e cantava com uma emoção contagiante. Diz Clarice: - "Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível."

A escritora ficou de tal modo tocada pela arte da moça, que, sempre tão apolínea, não conseguiu conter as lágrimas. Como se o filho, que mal contava 14 anos, percebesse a emoção da mãe, esta tenta disfarçar: - "Estou nervosa, vou tomar um calmante." E o filho a surpreende com o que diz na crônica ter sido uma bela lição: - "Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção." E Clarice, assimilada a lição, vive "o que era pra ser vivido."

Lembrei-me dessa historinha outro diz. Era um show do cantor Raimundo Fagner na programação dos 100 anos do Theatro José de Alencar. Eu assistia ao show pela tevê. No finalzinho, Fagner surpreende com a canção natalina de John Lennon e Y. Ono Então é Natal , numa bela versão de Claudio Rabello: "Então é Natal / E o que você fez / O ano termina / E nasce outra vez."

Fagner cantava com uma força interior, com uma entrega sentimental tamanha, que, a exemplo de Clarice, abandonei-me a uma emoção tão grande, tão inesperada e tão sincera, que, estando Saulo, o meu filho, ali ao lado, por pouco não reeditei Clarice: "Estou nervoso, vou tomar um calmante." E só então, como que por milagre, me veio à mente o sentido do que se passava comigo naquele instante. E vivi o que tinha de ser vivido.

Enquanto isso, inconfundível, Fagner continuava: "Então é Natal, pro enfermo e pro são. /Pro rico e pro pobre, num só coração. /Então bom Natal, pro branco e pro negro. /Amarelo e vermelho, pra paz afinal. /Então bom Natal, e um ano novo também. /Que seja feliz quem / souber o que é o bem."

Feliz Natal!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Observar as pausas, valorizar o silêncio

Tchékhov confiara a segunda montagem da peça A Gaivota a Stanislávski. Espetáculo pronto, chega para o diretor e reclama: - "O que você fez, o espetáculo vai ficar esticado, muito maior do que o previsto?" Ao que Stanislávski responde: - "Nada, apenas observei as pausas, valorizei o silêncio." Que bela lição não apenas de semiótica teatral. Falo de uma outra lição, que pouca gente aprendeu: observar as pausas, valorizar o silêncio.

Na vida, quase sempre, é assim. A gente não observa as pausas, não valoriza o silêncio. E, no entanto, quanta coisa ruim poderia ser evitada. Quantas feridas abertas a menos, quanto sofrimento... É que quase nunca percebemos o momento de calar, de ouvir mais o outro. Nos relacionamentos, não raro, acontece de uma palavra desnecessária pôr por terra o que se ergueu com tanto entusiasmo, o que se fez com tanto amor. Na ânsia de construir, destruímos. Na vontade de fazer valer a nossa vontade, não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio. E o mundo desmorona.

Consta que a primeira montagem de A Gaivota, em 1896, fora um fiasco. De público e de crítica. Uma pena, leve-se em consideração que o texto é maravilhoso, poético, de uma harmonia estética invulgar. O próprio autor dissera sobre ela: - "[...] uma comédia, três papeis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem (vista para o lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um toque de amor." Mas o público a repudiara. Não se observaram as pausas, não se valorizara o silêncio.

Dois anos mais tarde, sob nova direção, marcaria época no teatro universal. Desde então, uma gaivota passou a ser o símbolo do Teatro de Arte de Moscou, uma das mais prestigiadas casas de espetáculo do mundo.

Como se explica que uma mesma peça seja um fracasso hoje, um sucesso estrondoso pouco tempo depois? Simples: Stanislávski, que a dirigiu numa segunda montagem, percebera na obra uma economia de voz, de movimento, uma contenção de gestos, como jamais alguém fizera. Numa palavra: observou as pausas, valorizou o silêncio. Na vida, como no teatro, a essência das coisas muitas vezes está nas entrelinhas, num gesto que quase não se percebe, numa palavra que não se diz, num sinal que nunca vemos... Nas pequenas coisas da vida estão os mais fortes sentimentos, as maiores aflições. Todavia, quantas vezes não deixamos de fazer na vida como Stanislávski no teatro? Não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio...

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Uma forma amarga de nascer

Entre os filmes que adoro está Il Postino, que, no Brasil, tem o mesmo nome do livro em que foi inspirado: O Carteiro e o Poeta, de Antônio Skármeta. Não à toa, vire e mexe escrevo sobre esta adaptação maravilhosa levada ao cinema sob a direção de Michael Radford. Um clássico sobre a força prodigiosa da poesia na amizade e no amor. Ontem, a exemplo do que faço vez e outra na cadeira de Estética e Filosofia da Arte, mostrei a 'película' e abri o debate com os alunos. Um deles, quis saber: - "É ficção ou baseia-se em fatos reais da vida de Pablo Neruda." Ficção e realidade.

No livro, Skármeta ambienta a história no Chile, entre 1969 e 1973, ano em que morreu o poeta, contados dez dias do suicídio (?) de Salvador Allende. Nesse sentido, o filme se aproxima mais da verdade dos fatos, uma vez que o exílio de Neruda ocorreu em Capri, na Itália, onde viveria um incontornável amor clandestino com Matilde Urrutia, uma enfermeira que lhe prestara assistência depois que o poeta sofrera um acidente de automóvel em Santiago.

Segundo Skármeta, no delicioso Neruda por Skármeta, livro em que discorre sobre a sua amizade íntima com o poeta, a ideia do filme surgiu do acaso. O ator Massimo Troisi depara com uma tradução do livro para o italiano, "[...] Termina de lê-lo nessa mesma tarde em sua casa. Na mesma noite liga para o produtor e ordena, implora, que ele compre os direitos de adaptação do livro para o cinema." Esta a razão por que o filme é ambientado na Itália. Troisi, que interpretaria à perfeição o carteiro, sofria de uma doença grave e não estava em condições de viajar para fazer as gravações do filme fora do seu país. O porquê de ser italiana a obra que conquistaria o coração de cinéfilos mundo afora.

Skármeta faz alusão a um fato curioso ocorrido durante as filmagens: Radford, reparando no abatimento de Troisi, propõe ao ator suspender as filmagens até que se recupe. "Um filme não vale uma vida", teria argumentado. Ao que Troisi, num tipo de premonição, respondera: - "Estamos fazendo um filme para que os nossos filhos sintam orgulho da gente, certo?" Irônico. O coração do ator estancaria no dia exato em que foram concluídas as gravações de Il Postino. Troisi morreria sem conhecer o estrondoso sucesso do filme. Mas voltemos ao clamoroso romance de Neruda com Matilde.

De volta ao Chile, o poeta do amor tenta a custo esconder da verdadeira mulher, Delia del Carril, o seu envolvimento com Matilde. Em vão. Escrevera em intenção da amante o belo Os versos do Capitão, que assinara com o ingênuo pseudônimo de Anônimo. No livro, pasmem, alguns dos versos mais célebres de Neruda: "Tal vez llegará un día / en que un hombre / y una mujer, iguales / a nosotros, / tocarán este amor, y aún tendrá fuerza / para quemar las manos que lo toquen."*

Neruda, sob a repercussão do caso, romperia com Delia del Carril, para terminar seus dias ao lado de Matilde, a mulher a quem certamente dedicara o melhor de si como homem e amante. Se era reconhecedor das qualidades imensas de Delia, conforme faria sempre questão de por em evidência, compreendera, como afirma num dos seus versos antológicos "... que o amor extinto não é a morte / mas uma forma amarga de nascer."

* Talvez chegue um dia / em que um homem / e uma mulher, iguais / a nós dois / tocarão neste amor, que ainda terá força / para queimar as mãos que o toquem.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Todo o sentimento

Semana que passou, escrevi neste espaço sobre Toquinho e, por tabela, a coleção Histórias de Canções, da editora Leya, que vem a público com assinatura do jornalista Wagner Homem. No texto, disse ser o volume dedicado a Antônio Pecci Filho o segundo da aludida coleção. Equívoco, o livro é o terceiro, uma vez que fora publicado antes um título sobre o compositor Paulo César Pinheiro. Indiferente ao fato, agora esclarecido, leitor pede que comente sobre o volume 1, Chico Buarque de Hollanda. Faço-o, com prazer.

Antes, devo acrescentar: a coleção História de Canções surgiu quando Wagner Homem teve a feliz ideia de colocar no papel as circunstâncias em que cada canção de Chico Buarque fora composta. Wagner é amigo íntimo de Chico e domina informações curiosas sobre quase tudo o que o multiartista fez em termos de MPB. Como ele mesmo fez questão de esclarecer, contudo, não se tratava de produzir um songbook ou uma biografia das muitas que já se conhecem sobre o próprio Chico. Não, o pesquisador queria algo mais que isso. Queria contextualizar músicas como A Banda, Pedro Pedreiro, Apesar de Você, Todo o Sentimento, por exemplo. Queria dizer em que momento da realidade brasileira o artista fizera clássicos como esses. O livro resultou maravilhoso e agrada antes de tudo pela leveza de linguagem com que o escritor trata verdadeiras obras-primas do cancioneiro popular. Mas, em atenção ao leitor desta coluna, teçamos algumas considerações sobre o livro dedicado a Chico, com que a coleção foi inaugurada.

Pois bem. O volume traz tantas e tão boas informações sobre o que há de mais representativo da genialidade do autor de Construção, que o próprio Chico diz num e-mail enviado a Wagner e publicado na contracapa: "[...] Enquanto lia, eu pensava, tenho uma história boa para contar ao Wagner. Mas, à medida que o livro avançava, todas essas histórias apareciam. [...] Acho que você as conhece todas, melhor que eu." De fato, o pesquisador vai fundo na intimidade criativa do gênio. Comenta, inclusive, músicas extraordinárias mas pouco conhecidas do grande público, a exemplo da belíssima Todo o Sentimento, que narra a necessidade que sente o amante de reviver um grande amor até seus últimos momentos: "Pretendo descobrir / No último momento / Um tempo que refaz o que desfez / Que recolhe todo o sentimento / E bota no corpo uma outra vez."

Letra esplêndida, que revela a sensibilidade romântica do Chico trovador. Segundo Wagner Homem, a música fora composta originalmente como um samba, mas uma greve de técnicos condicionou o autor a mexer nos arranjos e aproveitar uma gravação já feita mesmo em ritmo de canção. Lembra, ainda, que Todo o Sentimento faria parte, depois, da trilha da novela Vale Tudo, da TV Globo, 1988.

Samba, como queria Chico, ou canção, no que resultou este clássico do romantismo musical brasileiro, o certo é que Todo o Sentimento explora com maestria a trajetória de um amor que se recusa a perecer, mesmo quando cai "doente, doente". Não sem razão, assim é que termina essa emocionante declaração de amor, uma das mais extraordinárias letras de Chico Buarque de Hollanda: "Depois de te perder / Te encontro, com certeza / Talvez no tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei, como encantado / Ao lado teu." Poucas vezes, mesmo num cenário de verdadeiras obras-primas qual o da música popular brasileira, um poeta terá ido tão fundo no que há de mais essencial na história de um grande amor que não quer morrer. Recomendo.