terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
O pesadelo de Kampusch
Em 2 de março de 1998, quando tinha 10 anos, Kampusch, que acabara de se desentender com a mãe, sai à rua e é surpreendida pelo engenheiro de telecomunicações Wolfang Priklopil, que a arrebata bruscamente e a mantém como prisioneira em cativeiro doméstico até 26 de agosto de 2006, quando, aproveitando-se de um descuido do seu algoz, contando agora 18 anos, Natascha Kampusch foge para a liberdade. A história, contudo, assim resumida, não tem a profundidade dramática que, só lendo 3096 dias, se pode dimensionar com exatidão.
Durante esses longos, intermináveis anos de suplício, a jovem foi submetida a abusos inomináveis, tamanha a vileza e a crueldade desse monstro, que, como se ficou sabendo, pouco depois atirar-se-ia à frente de um trem. O livro é absolutamente desconcertante, obrigatório, pelo que é capaz de revelar sobre a condição humana, quer na perspectiva do psicopata, quer na perspectiva dessa jovem a quem foram infligidos os mais cruéis tratamentos físicos e psicológicos.
Em suas 225 páginas, no entanto, o livro de Kampusch traz muito mais sobre a realidade humana para além das fronteiras do cárcere, revelando o lado torto de todos nós, as pessoas 'normais' com algumas das quais, nas circunstâncias de uma fuga desesperada, teve de conviver naquele instante dramático. Depois de uma primeira tentativa frustrada de ajuda (negaram-lhe um celular com o qual pudesse se comunicar com a polícia) a fugitiva invade o jardim de uma casa e dirige-se a uma mulher que se achava à janela: - "Por favor, me ajude. Fui sequestrada, chame a polícia!" E o que houve em resposta: - "Por que você veio justo a minha casa? Espere na cerca viva. E não pise no gramado!"
Nos limites de uma crônica de jornal, é-me impossível dizer, com rigor, a força do livro de Kampusch. Lê-lo, como o fiz meio que por acaso, é uma experiência muito mais que aconselhável e enriquecedora. As memórias do pesadelo vivido por essa moça, de quem se roubou o melhor da vida, muito mais que tocar o nosso coração, ensina como deveria ser o mundo que, em alguma medida, cabe a cada um de nós construir. Recomendo.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
Cartas para Julieta
Disse Fernando Pessoa que todas as cartas de amor são ridículas, mas verdadeiramente ridículas são as pessoas que não escrevem cartas de amor. Lembrei do poema quando vi esta semana, por provocação de minha filha de quinze anos, Cartas para Julieta, o doce filme de Gary Winick. Não se trata de um grande filme, mas, como diria uma amiga, é um filme "bonitinho".
A história lembra, en passant, o arrebatador O amor nos tempos do cólera, o épico romântico de Mike Newell, pelo menos num aspecto: o roteiro 'fala' de um amor que se recusa a morrer mesmo quando se passaram 50 anos. Sophie, numa bela interpretação de Amanda Seyfried, uma inglesa de férias em Verona, trabalha como 'checadora' da revista The New Yorker, mas sonha com a oportunidade de se tornar repórter. Conhece, então, as legendárias Secretárias de Julieta e escreve para uma senhora (Vanessa Redgrave) e a convence a ir à Itália em busca de um velho amor, Lorenzo. Até conseguir reencontrar o homem amado, no entanto, terá de percorrer um longo caminho.
E me vem, de chofre, a resposta. Porque a utopia do amor é imortal. Corações partidos, os apaixonados deixam no muro, em forma de cartas, a esperança de que um dia reconquistem os seres amados. Atire a primeira pedra aquele ou aquela que nunca trocou a dura realidade das perdas pela utopia do reencontro. Em meu tempo, acho que também deixei naquele muro uma carta de amor, "como as outras, ridículas!" É isso que agrada a tantos cinéfilos num filme tão simples e tão despretensioso como Cartas para Julieta.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Cisne Negro
Se não saí maravilhado do cinema, o que, por exemplo, ocorreu a minha filha Carolina, que "amou", trouxe comigo o que será uma indicação obrigatória para os meus alunos de Filosofia e Estética da Arte, do curso de Cênicas do IFCE, tão-logo voltemos à sala de aula nessa segunda-feira. É que o filme de Aronofsky, muito mais que um filme sobre o balé clássico, tematiza um dos grandes desafios de todo artista: a busca pela superação dos seus limites. E o faz com uma intensidade dramática e um apuro estético raramente vistos nos últimos anos, o que, de cara, justifica o furor dos cinéfilos diante da película. Para não falar da interpretação de Natalie Portmam, que, não tenho a menor dúvida, arrebatará a estatueta de melhor atriz. Irrepreensível.
A trama começa quando o diretor da companhia, Thomas Leroy (Vicent Cassel) anuncia estar à procura de uma substituta para a dançarina Beth Macintyre (Winona Ryder), em vias de se aposentar. Em que pese ser a primeira na ordem de preferência do diretor, um mau-caráter que explora sexualmente as integrantes da companhia, Nina tem de enfrentar a concorrência desleal (no mau sentido!) da colega Lily (Mila Kunis). Está composta a intriga.
Mas, voltando ao leitmotiv da crônica, o que tem isso a ver com a formação dos meus alunos de teatro? Tudo. No que me parece ser mesmo uma fixação de Darren Aronofsky, que já explorara a tranposição dos limites profissionais em obras anteriores, o filme discute à exaustão um dos componentes mais complexos da personalidade artística, a mistura de profissionalismo, esmero técnico, dedicação para além dos limites humanos e a vaidade, a fantasia que perpassa a alma de todo artista em formação.
Numa complexa tessitura dramática, perpassada de intrigas e expedientes literalmente sangrentos, Nina tem um perfil adequado para brilhar como intérprete do Cisne Branco, como sabemos, terno e inocente, mas, como ocorre com frequência na vida dos jovens talentos, está determinada a brilhar no papel do Cisne Negro, pérfido e sensual, como previsto no libreto de Begitchev. É aí que o filme cresce em densidade psicológica: na ânsia de ganhar o papel, Nina descobre o que é um nó górdio da alta filosofia: a maior luta que temos por travar é com o inimigo que existe no íntimo de cada um de nós. Revela-se o lado tortuoso e assustador de sua personalidade, o que, invariavelmente, leva à autodestruição. Um filme que, para além de sua estonteante beleza plástica, leva-nos a refletir. O que, não bastassem suas outras qualidades, coloca Cisne Negro entre os principais acontecimentos da grande Arte em 2011.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
Uma história de amor
Vera, como disse, mora em Camaragibe e, para os que não leram o texto a que se refere, faz alusão à crônica que escrevi em homanagem ao amigo João Francisco do Amaral Neto, morto no sábado, 22, em Iguatu, após sofrer um AVC. O que seria apenas um comentário sobre textos aqui publicados, no entanto, assumiu significados curiosos. Vera Portela tem 63 anos e namorou com João Francisco, como diz, há quase 50 anos. A história é interessante.
Os dois se conheceram bem jovens, namoraram, ficaram apaixonados e tinham tudo para viver um amor sem reservas, não ocorresse o obstáculo já imortalizado pela grande literatura, desde os trovadores: a oposição da família. João, irreverente desde a mais tenra idade, bebia e tinha a fama de brigão. Segundo Vera, adolescente, era capaz de acabar uma festa pelo simples fato de que a namorada fosse objeto da atenção mais demorada de qualquer rapaz. E, diz, "brigava bem, à época com o corpo sarado e bela musculatura." Ademais, não trabalhava e nada era indicador de que viesse a fazê-lo um dia, sem contar, o que era mais relevante aos olhos da mãe de Vera, que não gostasse de estudar.
A fim de conquistar a confiança da pretensa sogra, nosso amigo deu um tempo na bebedeira, recolheu-se em estudos e ingressou com méritos na Universidade Federal de Pernambuco. Enquanto, isso, é óbvio, o casal se encontrava às escondidas. Concluída a faculdade, João procura a mãe de Vera e revela as suas melhores intenções: fazer a moça feliz. Qual não foi a sua decepção: a mulher tinha razões que a própria razão desconhece para rejeitar o rapaz. Desiludido, mas com o orgulho ferido, o nosso Romeu junta os panos e resolve partir para outras plagas, distantes da mulher amada.
Por obra do talvez ou do quem sabe, chega a Iguatu, nos grotões do Ceará. Estabelece-se como veterinário (o mais talentoso de que se viria a ter notícia na região), casa-se com moça de boa origem, constitui família e torna-se uma pessoa querida de todos. Desde a morte da mulher, há coisa de uns seis, sete anos, pouco mais ou menos, a vida de João, todavia, jamais foi a mesma e, até onde sei, a nossa personagem nunca mais se reencontrou consigo mesmo. Morreu, como sabem, semana que passou.
50 anos decorridos desde o primeiro beijo, o primeiro sonho de menina [...], desde que recebera dele uma aliança de compromisso, pouco sabendo de João e do seu paradeiro, na contramão das tantas coisas acontecidas (casou, teve filhos, netos, foi feliz, separou), no recolhimento e no silêncio do que diz ser, quase, um claustro, Vera ainda guarda no peito, acesa, a chama do que foi um amor que se tornou impossível; a lembrança da alegria e da irreverência do homem amado. "Joca (é assim que o tratava) está gravado no meu coração", disse Vera no seu e-mail.