quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Precisamos dos ovos

Dia desses fiz alusão a uma mesa-redonda de que participei sobre cinema em que tinha de listar os "filmes da minha vida", a exemplo do que tiveram de fazer todos os convidados. Falei de como é vulnerável ter de escolher, entre centenas, aqueles filmes de que mais gostamos. Qualquer lista vai sofrer uma ou outra alteração ao sabor das contingências, das subjetivações decorrentes do nosso estado de espírito num determinado momento da vida. Um filme, depois de muitos anos, pode ganhar ou perder numa segunda vez que o vemos. Prefiro, assim, comentar cenas e sequências que impressionaram ou impressionam por alguma razão. Esta semana, por exemplo, fui rever um filme de Woody Allen de que não tinha gostado quando do seu lançamento, lá por fins dos anos 70. Noivo neurótico, noiva nervosa é o título em português, com Allen e Diane Keaton (maravilhosa!) nos papeis principais. E adorei.

É a história de um americano, Alvy Singer, que faz sucesso como comediante mas é um desastre com as mulheres. O cara é cheio de complexos, preconceitos e instabilidades emocionais, supostamente herdados da vida familiar. Um dia, através de um amigo, conhece Annie Hall, uma cantora de casas noturnas. Apaixonam-se, passam a viver juntos, até que ela, não suportando as manias de Singer, resolve romper a relação e recomeçar sozinha. É quando ele descobre o quanto Annie é a mulher de sua vida e passa a fazer de tudo para reconquistá-la. O filme tem uns diálogos geniais, marcados pela fina ironia e o elevado humor de um gênio.

Lembro que à época Noivo neurótico, noiva nervosa fez um estrondoso sucesso, assinalando, segundo a crítica, o começo de uma nova fase da carreira de Woody Allen, mais maduro como roteirista e diretor. O filme, de fato, tem uma lógica estrutural que beira a perfeição, com um tom e um ritmo narrativo inteligentes e articulados com um rigor poucas vezes alcançado em realizações do gênero, uma comédia com jeito de drama romântico da melhor espécie. Mas eu falava de uma cena ou sequência que merecesse destaque. Pois bem, vamos a ela.

Convencido de que perdera Annie para sempre, Alvy Singer empenha-se em revê-la, para que façam juntos um balanço da separação e dos efeitos disso em suas novas vidas. É aí que a película passa a mostrar em flashback os bons momentos dos dois juntos. Mas Woody Allen faz isso repassando cenas já vistas pelo espectador, o que dá ao recurso uma força dramática muito maior e muito mais poética. Ao final do encontro, num restaurante de Nova York, o próprio Alvy Singer chega à conclusão de que ele e Annie já não têm mais nada em comum, além de uma amizade. Não seria Woody Allen, todavia, se a cena não reeditasse o timbre anárquico com que o cineasta explora os conflitos humanos e suas oscilações de humor. É assim, pois, que a voz em off do protagonista encerra qualquer possibilidade de reconciliação -- e faz uma reflexão sobre relacionamentos que se aplica ainda melhor aos dias de hoje: "Percebi a pessoa incrível que ela é, e como era bom poder conhecê-la. E pensei na velha piada: um cara vai ao psiquiatra e diz, 'doutor, meu irmão é louco. Ele acha que é uma galinha'. E o doutor diz: 'Por que não o convence?' E ele responde: 'Deveria, mas eu preciso dos ovos'. É o que eu acho dos relacionamentos de hoje. São totalmente irracionais, loucos e absurdos. Mas continuamos neles porque a maioria de nós precisa dos ovos."

Considero essa sequência um primor em termos cinematográficos. Allen explora com maestria as possibilidades narrativas do cinema, mas, como é próprio de sua arte, nunca perde a oportunidade de filosofar sobre as pessoas, as contradições humanas, a superfialidade dos sentimentos. Noivo neurótico, noiva nervosa, um filme com mais de 30 anos, parece nos dizer muito sobre a nossa época. É duro com o amor pensar assim, mas acho que insistimos nos relacionamentos porque precisamos dos ovos.


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