quinta-feira, 19 de abril de 2012

O narcisismo de hoje

O restaurante literalmente parou para ver a entrada triunfante de um casal. Eram, de fato, belíssimos os dois. Bem vestidos e sarados, na rigorosa acepção do termo, sentaram-se bem próximo a uma parede de espelhos, ela de frente. Como estivéssemos à mesa vizinha, inevitável reparar na postura de ambos, o jeito com que ela, sobremaneira, era cuidadosa em arrumar o cabelo, retocar com a unha o batom. O olhar, sem discrição, no espelho a sua frente. Vez e outra, sentindo a repercussão de sua presença entre as pessoas que estavam ali. "A mulher se embeleza para as outras mulheres!", a assertiva machista se fazendo ouvir...
 
Natural, a conversa, por instante, passou a girar em torno da vaidade humana. Hoje, afirmou alguém, 'ama-se doentemente a si próprio, mais que ao outro, mesmo entre os casais!' A reflexão, dita assim, ao sabor de uma conversa de homens, pareceu-me precipitada. Fiquei pensando em que circunstância a vira em uma obra de arte, um livro, um filme, coisa que o valha. No caminho, de volta à casa, caiu-me a ficha: estava no último filme de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados, que, entre outros, explora o tema suscitado pela afirmação do amigo, no restaurante. Sem sono, lanço mão do DVD e faço o filme desfilar na tevê.
 
É a história de um casal belíssimo, não à toa interpretado por Tom Cruise e Nicole Kidman. Ele é um médico bem-sucedido, marido dedicado à mulher, deslumbrante ao lado de ser uma mãe não menos dedicada. O casal certinho, desses que, à distância, parece a todos o casal modelo. A atrapalhar a vida da família, que ninguém é perfeito, o amor que cada um nutre pela auto-imagem. Lembrei da afirmação do amigo, 'ama-se mais a si que ao outro!' O fato é que, da imagem autocentrada à necessidade de afirmar-se na relação é um pulo, mesmo que o expediente não seja dos mais honestos. Ela, Alice é como se chama, empenha-se em despertar no marido o ciúme, a ideia obcecada de que pode perdê-la.
 
Como relacionar-se com o outro, mesmo amorosamente, é sempre um jogo, a resposta é imediata e ele passa a buscar experiências fora de casa, a necessidade de se sentir desejado. O filme ganha densidade dramática, a vida se faz respresentar na tela do cinema. A do casal pouco a pouco se desmancha por força do narcisismo que o move. 'O casal do restaurante'. Kubrick, gênio que é (morreria pouco depois de rodar De Olhos Bem Fechados) trabalha com fina sensibilidade o conflito entre Bill e Alice, a câmera explorando os detalhes: Numa cena extremamente bem dirigida, Kidman (num momento sublime de sua carreira) olha atentamente para o espelho enquanto transa com o marido. A imagem refletida, como no mito grego.
 
Só então atentamos para a importância de um detalhe da cena de abertura do filme, mesmo antes de os créditos serem exibidos: diante de um espelho imenso, Kidman, enquanto se arruma para ir a um baile de grã-finos, deixa o vestido cair, e, nua e bela, deslumbra-se diante da imagem refletida no espelho. Dando-se algum desconto, o narcisismo de hoje, dos corpos sarados e das academias.
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Amigo Álder,
    lendo sua crônica, hoje voltando-se ao narcisismo, de uma forma amena, diria branda, voltei-me à minha adolescência, quando li O Retrato de Dorian Grey, do Oscar Wilde e, mais recentemente à música Sampa, do Caetano, " é que narciso acha feio o que não é espelho...". A abordagem, como sempre, recheada com uma alusão a um filme, é perfeita naquilo que denota relacionamentos, quaisquer que sejam, eivados no narcisismo, do eu sou mais eu enquanto eu sou eu. Abraços, é sempre bom ler seus textos.

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  2. Obrigado pela visita, sempre enriquecedora, e pelas referências pertinentes a Wilde e Caetano. Grande abraço!

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  3. Saudações, Álder!

    Como sempre, texto impecável. Realmente, hoje as pessoas estão mais preocupadas consigo mesmo do que com os outros. Não que devesse ser o contrário, ou devesse? Bom, o equilíbrio seria o ideal. A verdadeira felicidade só é concretizada quando fazemos alguém feliz. É para isso que vivemos: Fazer o outro feliz. Ocorre que, infelizmente, os valores familiares estão sendo substituídos pela informação e o conhecimento instantâneo (barato e muitas vezes improdutivo), cada vez mais velozes sobre os cabos de fibra ótica. Assim não há cultura, não há império, não há ser humana que possa resistir aos avanços das ciências, muitas delas para a desconstrução do homem, do ser ― essa é a verdade.

    Abraços!!

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