Foi como ganhar uma final de Copa do Mundo contra dois grandes times franceses, dentro de casa, e um dos mais vigorosos representantes da Espanha em todos os tempos. Imaginou o leitor o que isso significa? Pois é, em 24 de maio de 1962, mesmo ano em que pouco depois conquistaríamos o segundo campeonato mundial de futebol, no Chile, o Brasil vencia a Palma de Ouro de Cannes com O Pagador de Promessas, a bela adaptação da peça homônima de Dias Gomes para o cinema, sob a direção de Anselmo Duarte. Para se ter uma ideia, os adversários, pela ordem, eram O Processo de Joana d'Arc, de André Bresson, Cléo de 5 às 7, de Agnès Varda e o extraordinário O Anjo Exterminador, de Luís Buñuel. Para não falar de Plácido, de Luis Gercia Berlanga e O Eclipse, do gênio Michelangelo Antonioni. Com folga, leve-se em conta que o filme brasileiro conquistou o público presente ao prestigiado festival (mais que o Oscar à época) e o júri, que tinha como presidente, entusiasmado para além do que é ético fazer, ninguém mais, ninguém menos que François Truffaut, que concorrera três anos antes com Os Incompreendidos, obra-prima e referência inaugural da Nouvelle Vague.
O Festival de Cannes, no renomado balneário francês, fora criado em 1946, a fim de premiar profissionais do cinema, roteiristas, diretores e atores com maior destaque a cada ano. Dos prêmios concedidos, todavia, a exemplo do que ocorre em Hollywood, o mais importante é mesmo para o melhor filme do ano, o Palme d'Or. No caso, há exatos 50 anos, o brasileiríssimo O Pagador de Promessas. Entre os mais afamados ganhadores, merecem destaque Louis Malle, O Mundo do Silêncio (1956), Willian Wyler, Sublime Tentação (1957), Federico Felini, A Doce Vida (1960), Luchino Visconti, O Leopardo (1963), Francis Ford Coppola, Apocalypse Now (1979), Quentin Tarantino, Pulp Fiction (1994) e Roman Polanski, O Pianista (2002). Sem esquecer artistas da estatura de Kurosawa, Wim Wenders, David Lynch, Soderbergh ou os irmãos Ethan e Joel Coen. Meu Deus, e como não lembrar de Abbas Kiarostami e Theo Angelopoulos?
Falo isso, correndo o risco de ser incompreendido pelos desafetos da sétima arte (alguns dos quais reclamam que este colunista venha escrevendo tanto sobre cinema), apenas para dar provas da importância do festival e da conquista de melhor filme do ano por uma produção brasileira, notadamente num tempo em que eram ainda mais acanhadas as condições tupiniquins para fazer cinema. A propósito, há pouco, no Jornal da Globo, dizia a atriz Glória Menezes, que protagoniza o filme ao lado de Leonardo Villar: - "Poucos dias antes de fazer a Rosa, eu tinha ensaiado para fazer uma prostituta no filme. Imaginem o que é fazer isso da noite para o dia".
O filme, que tem visíveis fragilidades estéticas, compreensíveis para as limitações da produção, tem no entanto qualidades que o elevam a níveis excepcionais, mesmo para os espectadores mais exigentes. A direção de atores, por exermplo, é segura, os personagens foram construídos com rigoroso senso de verossimilhança (são críveis, pois), mesmo quando se sabe que as figuras centrais da história, Zé do Burro e Rosa, estão inseridos -- na quase totalidade da película -- num cenário estranho às suas origens rurais, em meio à exuberante riqueza cultural de Salvador, onde a história é ambientada. Sem a sofisticação estilística de um Otto Preminger, que também concorrera ao prêmio, e o apuro intelectualista de Antonioni, assim, e deixando de lado o "complexo de vira-latas" de que nos acusou Nelson Rodrigues, acerca da nossa seleção de futebol, O Pagador de Promessas justifica o entusiasmo saudosista com que se deve comemorar a sua premiação há 50 anos. O Brasil dava provas de que era capaz de fazer cinema. Do bom!
O Festival de Cannes, no renomado balneário francês, fora criado em 1946, a fim de premiar profissionais do cinema, roteiristas, diretores e atores com maior destaque a cada ano. Dos prêmios concedidos, todavia, a exemplo do que ocorre em Hollywood, o mais importante é mesmo para o melhor filme do ano, o Palme d'Or. No caso, há exatos 50 anos, o brasileiríssimo O Pagador de Promessas. Entre os mais afamados ganhadores, merecem destaque Louis Malle, O Mundo do Silêncio (1956), Willian Wyler, Sublime Tentação (1957), Federico Felini, A Doce Vida (1960), Luchino Visconti, O Leopardo (1963), Francis Ford Coppola, Apocalypse Now (1979), Quentin Tarantino, Pulp Fiction (1994) e Roman Polanski, O Pianista (2002). Sem esquecer artistas da estatura de Kurosawa, Wim Wenders, David Lynch, Soderbergh ou os irmãos Ethan e Joel Coen. Meu Deus, e como não lembrar de Abbas Kiarostami e Theo Angelopoulos?
Falo isso, correndo o risco de ser incompreendido pelos desafetos da sétima arte (alguns dos quais reclamam que este colunista venha escrevendo tanto sobre cinema), apenas para dar provas da importância do festival e da conquista de melhor filme do ano por uma produção brasileira, notadamente num tempo em que eram ainda mais acanhadas as condições tupiniquins para fazer cinema. A propósito, há pouco, no Jornal da Globo, dizia a atriz Glória Menezes, que protagoniza o filme ao lado de Leonardo Villar: - "Poucos dias antes de fazer a Rosa, eu tinha ensaiado para fazer uma prostituta no filme. Imaginem o que é fazer isso da noite para o dia".
O filme, que tem visíveis fragilidades estéticas, compreensíveis para as limitações da produção, tem no entanto qualidades que o elevam a níveis excepcionais, mesmo para os espectadores mais exigentes. A direção de atores, por exermplo, é segura, os personagens foram construídos com rigoroso senso de verossimilhança (são críveis, pois), mesmo quando se sabe que as figuras centrais da história, Zé do Burro e Rosa, estão inseridos -- na quase totalidade da película -- num cenário estranho às suas origens rurais, em meio à exuberante riqueza cultural de Salvador, onde a história é ambientada. Sem a sofisticação estilística de um Otto Preminger, que também concorrera ao prêmio, e o apuro intelectualista de Antonioni, assim, e deixando de lado o "complexo de vira-latas" de que nos acusou Nelson Rodrigues, acerca da nossa seleção de futebol, O Pagador de Promessas justifica o entusiasmo saudosista com que se deve comemorar a sua premiação há 50 anos. O Brasil dava provas de que era capaz de fazer cinema. Do bom!