Para VALÉRIA
Aos olhos do bom cinéfilo, pouca coisa passa despercebida num filme. No Cidadão Kane, sobre o qual já se disse e escreveu quase tudo, há um detalhe de que nunca me esqueci: uma personagem, chamada Bernstein, numa frase durante o desenrolar da história, fala de um encontro seu com uma moça. Ele apenas a viu, quando o barco em que viajava cruzou com o dela no rio Hudson. Orson Welles, que dirige o filme com a sensibilidade de um gênio, não mostra esse 'encontro', não mostra o rio, não mostra os barcos, tampouco os olhares que se cruzaram na eternidade daquele instante. Sabemo-lo pela revelação de Bernstein, já passados tantos anos desde o acontecimento aparentemente banal.
Mas Bernstein afirma que jamais conseguira esquecer a tal moça, durante toda a sua vida, todas as semanas, todos os dias. Por essa razão, um dos críticos de cinema brasileiros que mais aprecio, Paulo Emílio Salles Gomes, estudando a obra-prima de Orson Welles, considera essa moça uma personagem, embora mal saibamos da sua existência na vida de Bernstein, num episódio sem nenhuma importância aparente para o argumento do filme. Ele nos adverte de que a personagem se revela ao espectador pela tonalidade da voz, pelo olhar perdido no vazio, pela expressão perpassada de saudade de Bernstein.
Numas anotações de memórias, que me recuso a chamar de livro, refiro-me a um caso parecido que me ocorreu um dia. Foi no Beaubourg, em Paris, permitam-me contar. Enquanto contemplo atentamente Tristeza do Rei, de Matisse, supostamente a sua última obra, aparece ao meu lado uma mulher de preto, elegante e detentora de uma beleza ligeiramente exótica. Faz considerações inteligentes sobre a técnica do pintor modernista desde que foi diagnosticada a doença irreversível que o levaria à cadeira de rodas. Fala com desenvoltura, olhando-me vez e outra. Compara Matisse a Picasso e Kandinsky. E, finalmente, comenta a Tristeza com um domínio de análise em tudo convincente, original e profundo.
Olha-me ainda uma vez, despede-se com o seu francês impecável, embora deixe claros sinais de que não nascera aqui, que apenas retorna a este centro pelo amor às artes, com que parece traçar seus rumos, tecer seus projetos, sua vida. Atravessa o salão com passadas firmes e serenas, como se fora uma garça negra, sequer olha para os lados. Vai altiva e bela, até que desaparece por uma porta de saída.
A Dama de Preto, como passei a me referir a essa moça desde então, vira e mexe ressurge nas minhas recordações. Vem leve, inesperada como a brisa, desponta de entre a névoa de uma saudade para a qual não encontro explicação. Na vida da gente, acontecem dessas coisas, estranhas, indefiníveis... Sabemos apenas como contá-las... Há amores, por exemplo, que surgem no nosso caminho, assim, fugazes como a moça do rio Hudson para Bernstein. Entrevemo-los como que num cruzar de barcos, durante segundos. Mas insistem... voltam... grudam nas paredes da memória e do coração.
Aos olhos do bom cinéfilo, pouca coisa passa despercebida num filme. No Cidadão Kane, sobre o qual já se disse e escreveu quase tudo, há um detalhe de que nunca me esqueci: uma personagem, chamada Bernstein, numa frase durante o desenrolar da história, fala de um encontro seu com uma moça. Ele apenas a viu, quando o barco em que viajava cruzou com o dela no rio Hudson. Orson Welles, que dirige o filme com a sensibilidade de um gênio, não mostra esse 'encontro', não mostra o rio, não mostra os barcos, tampouco os olhares que se cruzaram na eternidade daquele instante. Sabemo-lo pela revelação de Bernstein, já passados tantos anos desde o acontecimento aparentemente banal.
Mas Bernstein afirma que jamais conseguira esquecer a tal moça, durante toda a sua vida, todas as semanas, todos os dias. Por essa razão, um dos críticos de cinema brasileiros que mais aprecio, Paulo Emílio Salles Gomes, estudando a obra-prima de Orson Welles, considera essa moça uma personagem, embora mal saibamos da sua existência na vida de Bernstein, num episódio sem nenhuma importância aparente para o argumento do filme. Ele nos adverte de que a personagem se revela ao espectador pela tonalidade da voz, pelo olhar perdido no vazio, pela expressão perpassada de saudade de Bernstein.
Numas anotações de memórias, que me recuso a chamar de livro, refiro-me a um caso parecido que me ocorreu um dia. Foi no Beaubourg, em Paris, permitam-me contar. Enquanto contemplo atentamente Tristeza do Rei, de Matisse, supostamente a sua última obra, aparece ao meu lado uma mulher de preto, elegante e detentora de uma beleza ligeiramente exótica. Faz considerações inteligentes sobre a técnica do pintor modernista desde que foi diagnosticada a doença irreversível que o levaria à cadeira de rodas. Fala com desenvoltura, olhando-me vez e outra. Compara Matisse a Picasso e Kandinsky. E, finalmente, comenta a Tristeza com um domínio de análise em tudo convincente, original e profundo.
Olha-me ainda uma vez, despede-se com o seu francês impecável, embora deixe claros sinais de que não nascera aqui, que apenas retorna a este centro pelo amor às artes, com que parece traçar seus rumos, tecer seus projetos, sua vida. Atravessa o salão com passadas firmes e serenas, como se fora uma garça negra, sequer olha para os lados. Vai altiva e bela, até que desaparece por uma porta de saída.
A Dama de Preto, como passei a me referir a essa moça desde então, vira e mexe ressurge nas minhas recordações. Vem leve, inesperada como a brisa, desponta de entre a névoa de uma saudade para a qual não encontro explicação. Na vida da gente, acontecem dessas coisas, estranhas, indefiníveis... Sabemos apenas como contá-las... Há amores, por exemplo, que surgem no nosso caminho, assim, fugazes como a moça do rio Hudson para Bernstein. Entrevemo-los como que num cruzar de barcos, durante segundos. Mas insistem... voltam... grudam nas paredes da memória e do coração.
Boa noite, Álder!
ResponderExcluirQue belo depoimento.
Olha, meu caro, também tenho lá uma Dama de Preto que vez por outra paralisa os meus pensamentos. Esta é, foi vista, no Aeroporto Pinto Martins, em “nostra” capital cearense.
Abraços!
Sucesso sempre!