quinta-feira, 13 de março de 2014

Jogando conversa fora

De sua relevância como marchand, incentivadora das Artes no Ceará, dama inconfundível do ramo de restaurantes, onde atuou com uma originalidade e um bom-gosto que entraram para a história do que existe de melhor na noite da cidade, e no esmero do bem receber, em seus tempos do La Bohème, ponto de encontro do que houve de mais representativo da vida intelectual e artística do estado, não vou falar, que já o fizeram por esses dias com o talento e a competência que me faltam. Ouso falar, com o meu verbo claudicante, mas determinado, da escritora, com que todos  --  rigorosamente todos  --, fomos pegos de surpresa no dia que se seguiu aos festejos dos seus 90 anos.
 
Isso mesmo, assim, com todas as letras: Escritora. Pois não é que Ignez Fiuza (peço vênia para dispensar o 'dona'), meio sorrateira, como gosta de ser entre aqueles que têm o privilégio de conhecê-la na intimidade da família, brinda-nos com um livro delicioso, escrito com a elegância e a leveza do seu estilo marcante e da sua sensibilidade refinada!? Pois bem, é sobre Jogando conversa fora, como intitulou seu livro de memórias, que gostaria de dizer duas ou três palavras.
 
Vazado em primeira pessoa, como é próprio do memorialismo, o livro seduz o leitor já nas primeiras páginas, quando a autora, entre humilde e ardilosa, simpaticamente ardilosa, justifica-se por trazer a público, ainda que restrito, a sua vontade de "abrir gavetas, não só de móveis, mas também da alma à procura de escondidos".
 
E assim, já de chofre, que me perdoem o deselegante da expressão, faz o leitor deparar com a sua forma gostosa de dizer as coisas, tragando-o, como as ondas do mar de Bentinho, no Dom Casmurro, tragaram Escobar numa certa manhã de domingo, exemplo do que dá a ver com o uso estilizado do vocábulo "escondidos", tão expressivo, como está no livro, na sua forma substantivada.
 
Explico-me: Ignez poderia ter lançado mão da forma adjetivada, como é usual, e teria, que eu sei, inúmeras maneiras de dizê-lo, arrogantes ou banais. E viriam termos já cansados com que se costuma fazer rotular os registros da memória: ábditos, absconsos, abstrusos, confidenciais, disfarçados, ocultos, secretos, sigilosos, velados, e por aí vai (ou iria).
 
Mas não, que Ignez abomina tudo o que capitula frente aos costumes e aos modismos. E sai-nos, já no início de suas conversas, com esse maravilhoso substantivo, "escondidos", na definição do que são algumas intimidades (outras nem tanto), que só nos levam, àqueles que não estavam perto, por esses idos, cada vez mais, a admirar essa grande mulher. E viajamos, assim, maravilhados, como quem saboreia um bordeaux à luz de velas, as viagens de Ignez através do passado e do contemporâneo, num texto que se notabiliza pelo rigor memorialístico e pela emoção estética invulgar.
 
Pouco mais adiante, à guisa do que poderia ter chamado de prefácio, não o tivesse feito com propriedade o professor Miguel Leocádio Araújo, a quem Ignez agradece como "incentivador" por sua primeira incursão no mundo das Letras, lança mão de sua 'fala' pontuada de imagens a um tempo simples e hábeis do ponto de vista criativo, para se dizer surpresa com a evolução do seu texto: "E por aí fui eu pulando as frases de uma para outra, como quem brinca de Tarzan". Que coisa linda, Ignez!
 
Para além do estilo, do processo de produção do texto propriamente dito, com que se vai revelando a mulher incomum, a mãe obstinada, a arte-educadora avant la lêttre a quem o Ceará deve tanto, Jogando conversa fora mais ganha em qualidade pelo senso de justiça e gratidão com que sua autora dá realce a pessoas simples, que, por razões que só ela conhece em sua total extensão (e que comumente são esquecidas em escritos do gênero), avultam das páginas do livro delicadas e afáveis como velhos amigos.
 
É assim, pois, que aparecem no livro, além dos notáveis dos meios artísticos, sociais e políticos, daqui e d'além, nomes como o de André Legeon, misto de galerista (de Arte), cozinheiro de talento e artista francês radicado em Fortaleza, a quem Ignez Fiuza, de maneira notavelmente simpática, como é próprio das mulheres elegantes, apresenta-nos como uma "gaivota inquieta", amante de Edvard Munch e Edgar Degas.
 
Por último, se eram duas ou três as palavras, não titubeio em afirmar: Que belo, que belíssimo livro de estreia este Jogando conversa fora com que Ignez Fiuza nos presenteou. 
 
 
 
 
 
 
 

                        
            
            
           

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