sexta-feira, 7 de março de 2014

O poeta, as mulheres

                                                                                     Para Ticiana
 
Durante o show de Edu Lobo, ontem, em Fortaleza, Cesar Rossas, com o ouvido apurado de sempre, chama-nos a atenção para o verso de uma canção: "É que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão!" A arte!
 
O poeta, esse voyeur das almas,  vê mais que pode ver o cientista. A mulher, por exemplo.
 
Não sem razão, pois, é que Freud encerra importante estudo sobre a feminilidade com uma declaração no mínimo curiosa: - "... e agora, quem quiser saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas". Bate, gênio!
 
Pois que o poeta é, de fato, este ser iluminado a quem cabe dizer o indizível. Trocadilho à parte, o poeta, como que, é capaz de visitar o inconsciente de si mesmo  --  e do outro. 
 
No caso da música popular, num tipo de reverberação que remonta a tempos já muito distantes, que o Trovadorismo português já o fizera à exaustão, é comum que essa visita se dê ao sexo contrário, como ocorre a Chico Buarque de Hollanda. Ou seja, o autor de Com açúcar e com afeto, a primeira de uma série de composições em que dá voz à mulher, exemplifica o que se convencionou chamar nos estudos da linguagem de 'função outrativa'. Ele é, como poucos, o outro. Melhor dizendo: a Outra.
 
Nessa linha produziu algumas das mais belas canções do nosso cancioneiro, com destaque para aquelas em que fala da dor do abandono, da perda, sobre o que, por coincidência, escrevi na semana que passou.
 
Em se tratando de Chico Buarque, todavia, esse sentimento, incomunicável por outros meios, outros caminhos, outras linguagens, é de tal modo trabalhado pela palavra, que 'a Outra' somos nós a cada vez que o escutamos. Afinal, quem não já passou pelo vazio advindo da separação, essa experiência que, de tão dolorosa, é capaz de gerar a sensação de que se perdeu um pedaço de si mesmo? E vem dele, Chico, a maravilhosa imagem: - "Oh, pedaço de mim / Oh, metade amputada de mim / Leva o que há de ti / Que a saudade dói latejada / É assim como uma fisgada / No membro que já perdi".
 
Mais adiante, numa das metáforas mais desconcertantes da MPB, associa a saudade do objeto amado, consumada a separação, à dor da mãe ao perder um filho: - "A saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu". Sob este aspecto, aliás, o poeta cantou o sofrimento de Zuzu Angel, cujo filho, num crime que comove e revolta, teve a juventude ceifada pela foice covarde do governo militar: - "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho? / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar".
 
E assim, como lembra o verso de Edu Lobo, o poeta, como os cegos, vai tateando na escuridão, vendo o que só uns poucos podem ver.
 
Chico viu, como ninguém, o "dentro" da alma feminina. Visitou os escaninhos em que guarda ela o inconfessável de sua vida, o lado tortuoso dos desejos, as magias da sedução, o veneno dos rancores, a alegria dos encontros e das conquistas. Mostrou-as como são: enigmáticas, intangíveis, sensuais, divinas, diabólicas, firmes e decididas, carentes e doadas, mas como são, veladamente soberbas, encantadoras, irresistíveis, indispensáveis... Através dos tempos e das civilizações.
 
Parabéns, mulher! 
 
 
 

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