quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Poema e letra-de-música

É sabido que Chico Buarque resiste a autorizar que as letras de suas músicas sejam publicadas, como poemas, em livro. Afirmei isso, em debate, e amigo querido contestou: "Mas tenho visto alguns livros com suas letras nas livrarias". Disse bem, "com suas letras"... É diferente de 'poema', pelo menos se submetido esse material (independentemente de sua qualidade estética) ao mínimo rigor acadêmico, a exemplo do que eu afirmara durante o debate. Explico-me.
 
Há no mercado inúmeros livros que comentam as letras de músicas do nosso maior compositor, suas canções, o teatro e a ficção, nenhum, contudo, que analise a sua produção como letrista numa perspectiva rigorosamente literária. De crítica literária, pelo menos. Tenho em casa aqueles de cuja publicação tomei conhecimento e, alguns, são livros importantes. Chico Buarque do Brasil, organizado por Rinaldo de Fernandes, por exemplo, é maravilhoso. Chico Buarque, de Wagner Homem, é excelente. Para Seguir Minha Jornada, Chico Buarque, de Regina Zappa, é soberbo. Mas, afinal, o que existe de diferente entre "poema" e "letra-de-música"?
 
Em que pese a limitação de espaço, tentarei responder. Em livro dedicado a essas diferenças, o renomado poeta e ensaísta Pedro Lyra estabelece 15 diferenças fundamentais do ponto de vista da estrutura, da criação, da enunciação, da temática, da substância, da expressão, da percepção, da atitude, da perspectiva, da autonomia, do nível, do destinatário, da recepção e do consumo.
 
Trata-se de um trabalho acadêmico, cuja abordagem não se aplica com justeza ao que pretendo aqui. Vou por atalhos e cito o saudoso Cacaso, exímio nas duas formas de construção poética pela palavra: "O suporte e a justificativa da letra é a 'canção', que anima a palavra de uma dimensão nova, sublinhando e redimensionando o sentido por meio de intervalos melódicos, dos ritmos, harmonias, timbres. E por meio, sobretudo, do canto, da presença humana, que dá às palavras de uma letra um suporte de generalidade baseado na emoção, na inflexão psicológica viva, na recriação do momento".
 
Tati, outro craque como letrista, vai na mesma linha, para quem o compositor está condicionado a buscar caminhos que compatibilizem texto e melodia. Um não sobrevive, por inteiro, sem a outra. A expressão poética está atrelada à musicalidade, à melodia, "centro da elaboração da sonoridade do plano da expressão". A letra, diz ele, ficaria mutilada se desvinculada do "lastro entoativo, que toda canção alimenta".
 
É famosa, para os amantes da música popular, o arranca-rabo em que estiveram envolvidos Caetano Veloso e o historiador e crítico de música popular José Ramos Tinhorão, tudo porque este afirmara sobre o artista baiano e Chico Buarque de Holanda o seguinte: "Pode-se dizer que Caetano Veloso é um bom letrista, Chico Buarque é um bom poeta. Mas é assim, "tudo bem", mas não me venha comparar com Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto. É bom lá para aquilo que ele faz, cantando e tal".
 
Preconceitos à parte, o certo é que, admirador contumaz dos dois (Chico e Caetano), extraordinários "poetas", no sentido de que fazem "poesia" a exemplo do que fazem todos os grandes artistas  --  escultores, pintores, músicos etc.  --, pois toda arte é poética no plano da substância, mas difere no plano da expressão, faço aqui uma observação: conta em favor de um e outro, diferenciando-os dos demais artistas, cujos suportes constituem linguagens distintas, o fato de que o poeta convencional e o letrista utilizam-se do mesmo código para produzir seus textos, o código verbal. Mais relevante é que ambos, Chico e Caetano, são reconhecidos e amados como compositores e letristas sublimes. Esta a razão por que o autor de Construção, dizia eu, não admitiu, ainda, que suas letras-de-música sejam publicadas em livro como literatura. A mesma a que se tem dedicado, por último, com uma competência excepcional.
 
Para finalizar, é oportuno lembrar que mesmo no teatro, terreno em que transita com genialidade, Chico Buarque dá voz às personagens através da canção, não das "falas" convencionais do gênero. O texto dramático de peças notáveis de sua autoria, Roda Viva, Calabar, Ópera do Malandro, cairiam feridas de morte se as tais "letras" fossem recitadas. Não é demais lembrar, a propósito, que ária e recitativo são distintos na ópera. Aquela é cantada solitariamente, quase sempre, pelo ator ou atriz, o segundo é como se define a parte da ópera em que o elenco declama o texto. É isto.
 
 
 
 
 
 
            
           

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