quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Shakespeare por inteiro

2016 assinala o quarto centenário da morte de William Shakespeare. O acontecimento enseja que o bardo inglês volte à cena, em diferentes linguagens, mundo afora. Se é que se ausentou dela em algum momento, é importante frisar.
 
Na perspectiva do que analisou em profundidade Harold Bloom, o crítico americano que reputo o maior estudioso da obra do dramaturgo inglês, Shakespeare, atravessando o que existe de mais sombrio na alma humana, pontuando temas que se estendem do ciúme doentio e outras paixões aos delírios subjetivos mais devastadores, como artista foi além da simples criação (já por si genial). Ele teria inventado o humano, isto é, teria imaginado a condição humana com um nível de complexidade maior que a própria existência possível do homem.
 
Visada acadêmica à parte, é mais claro afirmar que os grandes dramas humanos, o amor, a inveja, a vingança, a ambição etc., são examinados pela pena de Shakespeare com um tal senso de realidade que extrapola os limites da própria arte e atingem uma verticalidade 'impossível' em termos meramente racionais. Daí, como já sugerido, o título do livro em que Bloom apresenta sua análise profunda e detalhada do conjunto da obra teatral do autor de Hamlet: Shakespeare, a Invenção do Humano.
 
Com efeito, Shakespeare foi responsável por tornar universal a discussão do caráter humano em suas infinitas possibilidades, razão por que, onde quer que sejam "levadas" suas peças, todos os espectadores em alguma proporção ver-se-ão nelas representados. Mais que isso: terão a oportunidade de compreender-se com maior inteireza, pois que expressam os demônios interiores de cada um. Em outras palavras: vemo-nos em suas personagens naquilo que existe de mais autêntico, embora inconfessável.
 
Assim é que vi, atentamente, a versão cinematográfica de Macbeth, em cartaz nos cinemas. Fiel ao texto da peça, embora reservando-se o direito de acrescentar elementos estéticos originais, Justin Kurzel fica a meio caminho do que fizeram outros cineastas, com destaque para Orson Welles e a adaptação ousada de Kurosawa. É o que se pode constatar logo no início do filme, uma cena de batalha que explora à exaustão a violência essencial de Macbeth, um espetáculo cinematográfico de encher os olhos.
 
A movimentação de câmera, os ângulos de enquadramento e a textura da imagem, obtida, por certo, pela sofisticação da tecnologia digital, constituem um momento sublime do filme. O efeito resultante disso, todavia, pude constatar na observação das pessoas que se retiraram do cinema com poucos minutos de desfile fílmico, é ambivalente: choca, por aparentemente desnecessário e apelativo, na mesma proporção em que seduz, em que pese as cabeças cortadas e o sangue que quase respinga nos espectadores da primeira fila. A sequência se desenrola, na sua quase totalidade, com o recurso da câmera na mão, o que confere um ritmo alucinante à maior parte dos quadros escolhidos por Kurzel. É aí que surpreende, mais uma vez, o apuro estético do filme: inusitada, a câmera lenta excede em poesia e força dramática, ao que se soma uma sonorização sofisticada.
 
Mas o ponto alto em termos de adaptação, todavia, reside na perfeita percepção dos elementos dramáticos da peça de Shakespeare. Aqui, ressalte-se, ocorre algo por demais surpreendente: a legenda em português preserva o toque linguístico rebuscado do dramaturgo, carregado de metáforas desconcertantes, de uso desabrido de conjugações verbais menos recorrentes no dia a dia dos brasileiros, o que me parece isentar o filme das vulgaridades não raro verificadas em outras adaptações.
 
A sequências em que Lady Macbeth empenha-se em convencer o marido a assassinar Duncan é marcada por um equilíbrio narrativo extremamente feliz, o que torna uma questão de justiça exaltar a interpretação convincente de Mario Cotillard. A luz que emana dos olhos da atriz, associada a um tom vocal levemente satânico, bem em sintonia com a memória interior por que a atriz constrói a personagem, dão ao filme uma dignidade artística notável. Para não falar de Michael Fassbender, um ator maduro e consciente na utilização da técnica teatral, bem condizente com um dos papeis mais densos de Shakespeare. Um filme vigoroso.
 
 
 
 

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