Há livros que ficam na nossa vida pelo sem-fim dos tempos. Como um grande amor, vira e mexe retornam à lembrança sob a provocação de qualquer "perfume". Desde que vi Nise, o Coração da Loucura, o belíssimo filme de Roberto Berliner, que constitui uma das mais eloquentes homenagens à psiquiatra Nise da Silveira, ocorreu-me resgatar do abandono da estante Memórias, Sonhos, Reflexões, a autobiografia de Carl Gustav Jung. E que experiência maravilhosa não é reler o texto do médico suíço. É como se, lendo-o, lêssemos a nossa própria vida à luz da história de um homem extraordinário, deparando com ressonâncias de nossas mais antigas descobertas.
Escrito a quatro mãos, pois Jung fora sempre avesso à ideia de tornar pública sua história pessoal -- desafio somente enfrentado com sucesso por força da laboriosa dedicação da psicanalista alemã Aniela Jaffé, secretária dele --, Memórias, Sonhos, Reflexões bem que poderia figurar num tipo elevadíssimo de autoajuda, tamanho é o enriquecimento de nossa "alma" ao descer, com Jung, às remotas circunstâncias humanas através das quais construímos a nossa identidade pessoal. Não a alma tal qual a entendemos na perspectiva da religião, de algumas religiões será mais acertado dizer, mas como se devem compreender "os abismos e cumes de nossa natureza psíquica", aquilo que resulta da acumulação de imagens de milhões de anos.
Num mundo marcado pela inversão de valores, onde a validade de nossas realizações é pesada pela lógica da economia e pela possibilidade de acúmulo da riqueza material, mais ainda livros como esse podem constituir alternativas de ação para a angústia dos tempos modernos. Não é muito observar, a essa altura, que se deve atribuir a Jung a inserção definitiva da psicologia no que se define como atividade científica dedicada a compreender a mente humana, pois sua produção intelectual resulta do acompanhamento criterioso de suas próprias experiências vitais, de que retira a substâncias de suas reflexões tão sábias em torno do que nos faz ser aquilo que somos.
Mas é a perfeita compreensão do que existe de essencial em cada um de nós que ainda mais fortalece este livro maravilhoso e o torna uma experiência em tudo enriquecedora. A propósito, não resisto à tentação de citar uma passagem notável sobre isso. Ei-la: "A vida sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma: a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura só um verão, depois fenece... Aparição efêmera. Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de total futilidade; mas nunca perdi o sentimento de perenidade da vida sob a eterna mudança. O que vemos é a floração -- e ela desaparece. Mas o rizoma persiste".
Não à toa, Memórias, Sonhos, Reflexões, como lembra Léon Bonaventure, em apresentação à edição brasileira, despertou interesse entre gerações de jovens americanos e europeus, constituindo-se num verdadeiro guia espiritual de muitos deles. A busca da individuação, diz o psicólogo belga, começa a surgir como um único valor que ainda faz sentido. Ele nos adverte, ainda, que o desabrochar da humanidade e seu desenvolvimento faz-se primeiro através dos indivíduos, atingindo depois toda uma cultura.
Mas isso, nos anos 70, quando os jovens liam e buscavam nos livros o bom amparo para suas instabilidades e conflitos. Diferente, pois, dos dias de hoje, quando se curvam aos mecanismos traiçoeiros do capitalismo mais perverso, caçadores enlouquecidos de "bichinhos" nas telas do celular, alimentando com sua basbaquice a indústria do lazer e do divertimento que imbeciliza e embrutece.
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