Desde que o marido morrera, havia muitos anos, dona Lili vivia na mais absoluta solidão. Dedicava-se, mal raiava o dia, a costurar na velha singer. A rotina de sempre: receber clientes, fazer a entrega das encomendas, comprar botão, zíper, tubos de linha, agulha, alfinete - "Se Deus quiser pago tudo depois das festas - dizia ao dono do armarinho, que a coisa melhora véspera do Natal e do Ano-Novo."
Todos os dias, à luz dos primeiros raios de sol, dona Lili arrumava a casa, o quintal e, zelosa, ia ao velho guarda-roupa de jacarandá organizar as gavetas do finado - o dourado da abotoadura esfregado no vestido para conservar o brilho. Com o desvelo das apaixonadas, dobrava cada gravata, cada cueca... E eram vinte e sete anos de viuvez!
No começo, passados os quatro ou cinco primeiros anos, as freguesas diziam que dona Lili haveria de achar um marido novo: - "Quarentona muito da bem-apanhada", brincavam.
Mas o tempo, tão afeito a surpresas, não trouxe surpresas para dona Lili. A vida-vidinha passando sem novidades, e com ela a beleza e o encanto da velha costureira, o verde dos olhos ainda guardando o brilho dos olhos que amam.
Não tivera filhos, e Maria, a empregada vinda das bandas do Quixelô, que fora a companhia de dona Lili pelo correr dos tempos, voltara para os confins, desde que a catarata roubara-lhe dos olhos os derradeiros fiapos de luz.
Contudo, tendo como amiga a eterna solidão, dona Lili não maldizia a vida: - "É assim mesmo, até que Deus me leve outra vez para os braços de Murilo", que Murilo era como se chamava o marido de dona Lili.
Com a proliferação das butiques, as dificuldades aumentavam, as freguesas escasseando com o passar dos anos.
Hora existia no abandono a que se entregara a pobre mulher, que lhe passava pela cabeça largar a velha singer e tentar recomeçar a vida --- balconista de loja de tecido, manicure, vendedora de produtos de beleza...
Depois, recomposta a lucidez e a solenidade da velhice, dona Lili via com clareza que já não era tempo de recomeçar. E voltava, alfinete à boca, a dobrar o corte de fazenda de que surgiria o vestido de término de curso da filha de Zenaide, a mulher do tabelião, "tão exigente!", balbuciava com seus botões.
Dia após dia, a rotina era de tristeza e solidão na velha casa. Varrer, lavar, passar, fazer a comida e arrumar o guarda-roupa de Murilo, o dourado da abotoadura arrastado no vestido de organdi, para retomar o brilho.
Certo dia, véspera do Natal, à tardinha, banho tomado, a travessa de tartaruga segurando o penteado simples, o cheiro da alfazema a se espalhar no ar, dona Lili debruçou-se na pedra da janela para admirar o mundo. Ao longo da Rua do Fogo, a rua em que morava dona Lili, as barracas de guloseimas, quinquilharias, brinquedos baratos, fizeram-na lembrar que se comemorava o nascimento de Jesus, dali a poucas horas. E que a vida, no viravoltear das coisas e na repetida utopia dos homens, anunciava-se nova, porque era Natal.
Alforriando o olhar cansado para o além, dona Lili deixou-se transportar para os tempos ao lado de Murilo, a tão esperada missa-do-galo na Matriz, o calçadão da praça apinhado de gente, o braço enlaçado à cintura do homem amado --- e a sensação, há tanto esquecida, de que a vida pode ser feliz.
Exausta, que foram muitas as encomendas do fim de ano, dona Lili fechou lentamente a janela, percorreu, passo trôpego e tateando o ar, o corredor que levava ao quarto. Ainda uma vez, antes de deitar, dona Lili abriu a gaveta do guarda-roupa, reorganizou as gravatas, as cuecas, o pente, a navalha de barbear, a aliança de Murilo - "Ainda mando o relojoeiro tirar os riscos!" - o dourado da abotoadura contra o vestido, para reconquistar o brilho.
Sob o domínio da insônia, companheira de toda noite, dona Lili ainda pode escutar o pipocar das bombas, o badalar do sino da Matriz. E, antes de soprar a vela, bruxuleante sobre a mesa de cabeceira, como fazia há vinte e sete anos, antes de dormir beijou o retrato de Murilo.
Dessa vez, no entanto, dos olhos verdes de dona Lili, duas lágrimas rolaram, serenamente, pelas maçãs do rosto.
Na manhã seguinte, a muito custo, conseguiu-se entrar no velho casarão, onde a encontraram sem vida, em decúbito dorsal, o par de abotoaduras preso a uma das mãos, já endurecidas.
Ao enterro, rigorosamente contadas, compareceram dezoito pessoas --- onze homens, seis mulheres e um menino.
Dizem que do interior daquela casa enorme e vazia, à meia-noite, por muitos anos, ouviu-se o barulho da velha máquina de costurar.
Alder, eu acabei de conhecê-lo na Livraria Cultura. Sou professora de literatura, porque, embora aposentada, nunca deixarei de ser professora. Passei grande parte de minha vida lecionando literatura no Curso de Letras da UECE e do mesmo modo que você, também escrevo contos.
ResponderExcluirGostei muito do seu conto sobre a costureira. Parabéns! Grande abraço!
Lourdinha Leite Barbosa.