sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Arte, conhecimento e intuição em Manchester à Beira-Mar

As contribuições de Mikel Dufrenne no campo da filosofia da arte, na opinião deste humilde colunista, são incontornáveis. Como não escrevo para especialistas, no entanto, pesa-me a responsabilidade de tentar esclarecer o escopo que sustenta essas contribuições para que as considere, assim, incontornáveis. 

Segundo o estudioso francês, em toda e qualquer perspectiva de análise, assim como o faço quando escrevo sobre cinema, por exemplo, a fenomenologia da experiência estética exige que essa experiência seja submetida à descrição fenomenológica, à análise transcendental e a apreensão de sua significação metafísica.

Sendo mais claro: Dufrenne estabelece distinção entre percepção e imaginação, mas, para ele, a imaginação está na base da percepção e deve ser encarada como sua colaboradora, ou seja, diante de uma obra de arte, que ganha na experiência da contemplação o status de objeto estético, mesmo quando me empenho em vê-lo com olhos críticos (pretensamente isentos de subjetivações), as minhas conclusões resultam do encontro de minha imaginação com o ato da percepção.

É claro que, para levar a efeito a interpretação e/ou crítica de um filme, é indispensável que trabalhe com o repertório intelectual que me dá bases racionais para interpretar ou criticar esse filme. Mas essa intervenção racional não pode exceder a medida de sua importância na percepção estética, assim como o sentimento, estando no centro dessa experiência, não pode tudo suplantar em seu favor ou da emoção que todos sentimos diante de uma obra de arte.

Fiz essa introdução, pela qual me desculpo, para justificar comentários meus sobre Manchester, à Beira-Mar, o belo filme de Kenneth Lonergan, em cartaz nos cinemas da cidade. Nesses comentários, defendi a tese de que se trata de um filme soberbo, desses que não víamos havia anos. Fui além, afirmei que o filme guarda um "perfume" bergmaniano, em alusão ao que existe de mais significativo na obra do cineasta sueco: a sondagem psicológica, o mergulho na alma humana, nos seus conflitos mais íntimos, nos traumas muitas vezes insuperáveis do que se viveu no passado, a impossibilidade da comunicação, acima de tudo.

É isso, não outra coisa, que constitui o esteio de Manchester, cuja trama se desenvolve em torno dos transtornos psiquiátricos de Lee Chandler (numa interpretação sublime de Casey Affleck), um homem jovem que trabalha como zelador de um condomínio e, de repente, é levado a largar o emprego e voltar para sua cidade natal depois que um irmão morre e deixa em desamparo o filho adolescente Patrick. Esse retorno à cidade em que nasceu é um retorno ao passado, de que não conseguirá se libertar.

Dito assim, em sinopse, o filme parece banal. Mas não é. O diretor de Manchester, à Beira-Mar dá um verdadeiro show na condução desse enredo simples e já recorrente no grande cinema. O ritmo do filme obedece à intensificação dos dramas vividos por Lee, a música extradiegética (over) é calculadamente explorada como elemento narrativo; a luz é precisa; o uso do close-up é rigoroso e os planos longos pontuam uma estilizada percepção do comportamento humano diante da morte e de suas implicações na vida dos homens.

O ponto central da história, por surpreendente, passa ao largo do tema da morte em si, posto que o conflito de Lee Chandler decorre da vida, do passado que o atormenta, impedindo-o de reconstruir-se e à sua vida depois de uma separação mal resolvida. É aí que Lonergan lança mão do flashback como recurso narrativo, mas o faz sem banalizar esse expediente já muito explorado na perspectiva da narrativa clássica. Cada plano, cada tomada, cada cena da memória atormentada de Lee parecem tragar o espectador, estabelecendo uma empatia com a personagem que nos remete ao melhor Bergman.

São imagens invariavelmente marcadas por um requinte plástico típico do que se costumou definir como o estilo do realizador sueco: mais que fulgurações de cunho estético, a força visual das imagens dita a densidade dramática da história, numa "sucessão de impulsos e repousos", para fazer valer a definição de música por Stravinsky, que nos enreda no que existe de mais significativo no filme e o torna, curioso, extremamente musical.

Se ver um filme de Bergman é "meditar, é ir o mais fundo possível no âmago do ser humano, é viajar por um planeta estranho à procura de uma chave que possa abrir nosso próprio cárcere para nos libertar de nós mesmos, nos fazer sair das trevas", como disse à perfeição sobre o autor de Saraband Carlos Armando, em livro clássico, é essa a sensação que se tem ao assistir a Manchester, o belo filme de Kenneth Lonergan. Não é muito lembrar que no filme citado, o canto de cisne de Ingmar Bergman, também é a impossibilidade de se livrar do passado que constitui o eixo dramático do enredo. Em outra chave, fique isso claro.

O certo é que, para o bem ou para o mal, como disse na introdução, faço esta afirmação sem perder de vista que a experiência estética impõe como resultado o casamento do conhecimento com a intuição. Tenho dito.

 

 

 

 

 

 

 

 

  

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