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Professor de Filosofia da Arte e Estética do Cinema, Álder Teixeira é membro da Academia Cearense de Cinema, Mestre em Letras e Doutor em Artes, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Na entrevista abaixo, discorre sobre o Belo na arte, embasando suas ideias na experiência de 35 anos como docente do ensino superior em mais de uma universidade.
RIVISTA - Como professor de Estética, qual a sua opinião acerca do conceito de beleza na arte?
ÁLDER - O conceito do Belo sempre foi uma questão central no campo da teoria da arte. É bem verdade, no entanto, que desde início do século XX tem sido comum questionar-se a necessidade da beleza na arte. Se através dos tempos serviu como parâmetro para o julgamento do objeto artístico, mesmo um atributo de sua excelência, por assim dizer, hoje é quase inadmissível falar-se de beleza na arte, um tipo de desserviço à estética. Mas a coisa não é tão simples assim. A discussão, embora continue a despertar o interesse de estudiosos renomados, parece apontar para uma conclusão satisfatória, uma vez que críticos, historiadores, curadores e mesmo artistas importantes passaram a ver o Belo com outros olhos.
RIVISTA - Em termos objetivos, o que significa isso?
ÁLDER - Primeiro é oportuno compreender que o pensamento em torno do Belo foi sempre divergente. Os antigos, por exemplo, concebiam-no a partir de suas relações com a Natureza; na Idade Média, esteve comumente associado à presença do elemento divino; durante o Renascimento, humanizou-se, ganhando um caráter mais racional, diferentemente do que se verificou durante o século XVIII e o surgimento dos valores ditos românticos, como expressão do mundo interior do artista, de sua subjetividade. Em que pese essa variedade de entendimento, numa coisa, todavia, essas diferentes concepções pareciam convergir: a beleza era a razão de ser da arte. Com a eclosão dos chamados 'ismos', a vanguarda europeia, tem início uma revolução sobre o conceito do Belo, pelo menos na ótica da discussão contemporânea, passando-se a percebê-lo, por exemplo, no que até então apenas se considerava grotesco e repugnante. Essa tendência resultou, em inícios do século, numa revisão filosófica do conceito, o que foi extremamente positivo. Decorre disso, pois, que obras transgressoras do ponto de vista iconográfico, na linha do que fizeram Picasso, Dalí, mesmo Cézanne ou Matisse, possam constituir exemplos irrefutáveis do Belo artístico. As raízes dessa transgressão estética, contudo, é importante frisar, remontam a um passado muito mais distante. Lembremos aqui, por oportuno, do que fizeram os realistas na segunda metade do século XIX, Gustave Courbet ou Goya, guardadas as particularidades de uma obra e outra.
RIVISTA - Qual o sentido, então, da beleza na arte?
ÁLDER - Arthur Danto, em livro notável sobre a Beleza, estabelece uma teorização que me parece conclusiva sobre isso. É quando se refere a existência do que chama de "beleza interna" da obra de arte, no sentido de que esta beleza constitui parte do seu significado. Esta beleza tem o poder de transformar a dor em algo suportável, é o que ele diz, com que concordo por inteiro.
RIVISTA - Essa teoria se aplica a qualquer tipo de arte, mesmo a um Marcel Duchamp, por exemplo?
ÁLDER - A sua pergunta é, por demais, oportuna, uma vez que o próprio Danto se refere à Fonte, de Duchamp, para falar da inexistência de uma beleza interna no urinol. Faz o mesmo com relação à Brillo Box, ainda, de Warhol, se não me falha a memória. Trata-se de obras conceituais, cuja presença do Belo decorre da interpretação que se faz delas, o que Arthur Danto identifica como "beleza externa". Para a arte dita conceitual, portanto, a beleza a que vimos nos referindo deixa de ser um elemento indispensável. Aqui chegamos a um ponto absolutamente esclarecedor: o significado de uma obra de arte é produto de uma intervenção de natureza intelectual, de uma interpretação do contemplador da obra de arte, isenta, em grande parte, da influência do artista. Mas a beleza da obra, se existe, numa perspectiva clássica, é inerente à própria obra e está vinculada ao seu significado. É, assim, um atributo da própria arte.
RIVISTA – Como tornar esses conceitos acessíveis ao público não especializado?
ÁLDER – Esta me parece uma questão central. Antes de qualquer coisa, a arte não pode ser vista como algo destinado a especialistas. Esse, por sinal, é o papel mais relevante do crítico de artes: facilitar a percepção do objeto estético, o prazer da fruição na proporção exata das possibilidades de cada um, pois o objeto estético é a obra de arte percebida esteticamente, ou seja, contemplada no que se convencionou chamar de experiência estética. A sensibilidade poética, o repertório cultural, o momento histórico vivido, são aspectos que naturalmente pesam na contemplação de uma obra de arte, seja ela um filme ou uma tela, uma peça de teatro ou um espetáculo de dança. Há algo de sublime na experiência estética.
RIVISTA – Essa experiência estética só é possível diante da obra de arte?
ÁLDER – Agora, você mais ainda adentra o território da fenomenologia da percepção. Sob este aspecto, valho-me das contribuições de um estudioso importante, que considero mesmo indispensável em termos do que tem sido a nossa pauta. Não estou falando de Sartre nem de Merleau-Ponty, mas de Mikel Dufrenne, cujo livro Fenomenologia da Experiência Estética traz ponderações, na minha modesta opinião, incontornáveis, sobre isso. Pois bem, Dufrenne nos faz entender que objeto estético e obra de arte não são coisas equivalentes. É aí que professa que é possível viver uma experiência estética diante da natureza, tanto quanto diante de uma obra de arte. Esta só é algo real, só existe quando contemplada esteticamente.
RIVISTA – O que difere então a experiência estética diante da arte e diante da natureza?
ÁLDER – Nas primeiras linhas de um texto clássico sobre estética, Hegel nos fala da existência de dois tipos de beleza: a beleza natural e a beleza artística. É nesse mesmo livro, O Belo na Arte, que afirma ser a beleza artística superior à beleza natural, pois só ela é fruto da intervenção humana, advindo do espírito do homem. Isso é maravilhoso, pois confere à arte a sua plenitude como obra criada pelo homem, como coisa necessária para a sua, dele, homem, máxima realização, o que só tem equivalência, para os que têm fé, na experiência religiosa, na aceitação de que Deus existe e na busca eterna de Sua presença diante de nós.
RIVISTA – Do ponto de vista artístico, pode nos dar um exemplo disso?
ÁLDER – Claro. Imaginemos que a miséria humana é uma coisa inaceitável, que deve mesmo provocar a nossa indignação. Uma família de retirantes esquálidos, famintos, entregues a sua própria sorte, deve causar revolta e nos mover contra as razões que a ocasionam. Mas poucas vezes nos mobilizamos contra esse estado de coisas, e isso quase não nos sensibiliza, posto que se tornou banal encontrar pessoas condenadas a esse sofrimento. O quadro de Portinari, no entanto, ao representar essa realidade, é capaz de nos tocar, de nos chamar para o enfrentamento da desigualdade social, da injustiça que grassa à nossa frente todos os dias, desde sempre. A arte, veja! Não a ciência. O que sentimos diante da tela de Portinari, Os Retirantes, ou de Vidas Secas, o romance de Graciliano Ramos, isso é a Beleza, pois que nos torna mais humanos e plenos como homens, devolvendo-nos a capacidade perdida de nos indignar diante da dor humana, e de nos comover com ela.
RIVISTA – Como professor de Estética do Cinema, o que teria a nos dizer sobre o Belo na arte cinematográfica?
ÁLDER – O cinema, sabemos, é uma arte intersemiótica, que explora, portanto, a força estética de diferentes linguagens, a pintura, a literatura, a música etc., razão por que é tão prodigioso como arte. Um grande cineasta, a exemplo de Ingmar Bergman, para citar um artista genial, é capaz de coisas extraordinárias nesse sentido. Ocorre-me lembrar, aqui, de filmes como O Sétimo Selo ou Morangos Silvestres. Que beleza existe no tratamento que dá ao conteúdo fílmico, que sensibilidade na escolha das estratégias e na construção da narrativa com que nos "fala" dos conflitos do homem. Ali, tudo é belo: a luz, a composição do quadro, a suavidade dos movimentos de câmera, os closes, suportes com que atinge a máxima profundidade na sondagem psicológica da personagem: a poética cinematográfica, enfim. Saraband, um dos seus últimos trabalhos, dá-nos a dimensão do que é possível no cinema em termos de realização artística, na qual o domínio da técnica se encontra com o objetivo dramático que persegue como realizador cinematográfico. O Belo está ali, diante de nós, com uma clareza e uma intensidade de que só a arte é capaz.
RIVISTA – Para encerrar, como quis Vinícius de Moraes, a beleza é fundamental?
ÁLDER – Sim, a beleza é fundamental. E não estou me referindo aos parâmetros platônicos ou aristotélicos do Belo, pois, na arte, a representação do Feio resulta, se a arte é grande, na mais completa Beleza. A arte é o encontro mágico entre dois sujeitos, o artista e o espectador. O artista cria a obra de arte e expressa a sua visão de mundo através dela, mas o espectador, através da percepção, como que participa de sua elaboração, na medida em que lhe atribui significados. Mas há um limite para essa participação do espectador. Estamos a meio caminho entre sujeito e objeto, percorremos os passos de Kant a Hegel.
RIVISTA – Em termos artísticos, pode-se discutir o gosto?
ÁLDER – Sim. Na perspectiva hegeliana pode-se discutir o gosto. Um crítico de arte que se preze deve trabalhar com elementos racionais, por mais que isso não signifique afastar de todo uma certa dosagem de subjetividade, claro. Mas há, no objeto estético, na obra de arte, componentes e procedimentos técnicos que definem o que é Belo na arte. Benedetto Croce, um crítico que é hoje muito questionado, considera que a arte é parte fundamental da vida e essencial para o ser humano. Ernst Fischer, no livro A Necessidade da Arte, fala-nos da importância da arte para que o homem seja capaz de conhecer o mundo e tentar transformá-lo. Se isso não for possível, e não é, que a vida possa se tornar mais suportável. Nietzsche, também, falou alguma coisa nesse sentido. Mas Fischer nos lembra que a arte é também necessária em virtude da magia que lhe é inerente. Essa magia, esse sortilégio, não tem relação direta com o que definimos como realidade. A arte é um tipo de mentira que revela a verdade, a mais funda verdade, como quis Jorge Luis Borges e o próprio Picasso. E, ainda, ocorre-me lembrar, Mário Vargas Llosa, em ensaio antológico, A Verdade da Mentira. A beleza da arte reside nisso, na representação das coisas não como elas são, mas como poderiam ser, para referir Aristóteles. Aí reside a imensa Beleza da arte.