sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Novas Ofensas ao Trovador

Mal havia sido liberado o clipe oficial do novo disco de Chico Buarque de Holanda, As Caravanas, e a galera da futilidade e do ódio passou a dedicar-se  full time a tecer comentários injuriosos sobre o maior artista brasileiro vivo. O pior é que só mesmo a falta de cultura e a tacanhez de espírito podem justificar o temporal de tolices que logo desabou sobre um disco que já surge clássico, tantas e tão inquestionáveis são as qualidades do álbum que chegou às lojas em 25 do mês passado, o primeiro de Chico Buarque em quatro anos (o último, intitulado Chico, é de 2013).

A quintessência da detração centrou-se no argumento de que Tua Cantiga, uma das mais belas do disco, revela um Chico Buarque (e não o seu eu lírico, como seria aceitável) machista e virilmente agressivo, segundo o olhar de milhares de defensores do politicamente correto.

O fato, que, como disse, antes expõe uma ignorância artística desmedida que mesmo as intenções inconfessáveis que estão por trás do alvoroço, seria curioso, não fosse ridículo.

Chico Buarque, ao lado de ser um dramaturgo excepcional, um romancista de encher os olhos mesmo da crítica mais exigente, é sobretudo um "trovador" na acepção da palavra.

O termo, que há muito tempo caiu em desuso, mas se aplica à perfeição em se tratando do artista de que tratamos aqui, designava, na lírica medieval, o poeta completo, ou seja, aquele que escrevia a letra, compunha a melodia das "cantigas" e, também, as interpretava ao som de instrumentos musicais. Via de regra eram homens de berço, fidalgos, o que serve para evidenciar o porquê de não apenas serem artistas de múltiplas possibilidades, mas, em particular, dotados de uma vasta capacidade intelectual.

Nascido entre livros e na convivência íntima dos grandes poetas brasileiros, a exemplo de Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto, Vinícius de Moraes, aqui citando apenas alguns dos maiores de que privou, na sala de casa, de amizade precoce, Chico Buarque detém um conhecimento de tal modo amplo da grande literatura, de cultura retórica, poética e musical, que vira e mexe joga com os mais diferentes estilos e tendências estéticas, quer no teatro, quer na literatura, mas, sobremaneira, nas letras sublimes que compõe ao longo de uma carreira brilhante. O faz com a propriedade de um poeta culto e dotado de aguçada compreensão do que é a arte, o que a define e determina a nossa reação diante dela.

No caso de Tua Cantiga (Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos/E de joelhos/Vou te seguir), já o título é pautado por uma certa reflexividade, é uma "cantiga" de um trovador contemporâneo, mas sensível ao fato de que a arte é algo sinfrônico, capaz de extrapolar os limites do tempo e do espaço, reeditando sentidos e formas do passado a fim de ressignificar-se enquanto representação, expressão ou mesmo imitação da vida real.

Com a sensibilidade de um poeta extraordinário, e a maestria de um artista dotado de inegável respaldo intelectual, Chico Buarque atualiza a Cantiga de Amor provençal, percorre suas forças retóricas e musicais, enaltece a mulher numa atitude platonizante, que, em princípio, apenas a espiritualiza e deifica, para derramar-se ao fim no desejo incontido da experiência carnal.

Como o trovador medieval, no que se revela a um só tempo erudito e popular, Chico Buarque lança mão do eu lírico (o ser artístico inventado) para assumir-se vassalo, obediente a um antigo código afetivo que impunha ao homem colocar-se "de joelhos" em presença da mulher, como diante de um objeto sagrado.

Como na Cantiga de Amor, da Alta Idade Média, pois, o poeta mostra-se  servil (Silentemente/Vou te deitar/Na cama que arrumei/Pisando em plumas/Toda manhã/Eu te despertarei); promete ser solícito (Quando te der saudade de mim/Quando tua garganta apertar/Basta dar um suspiro/Que eu vou ligeiro/Te consolar); protetor (Se o teu vigia se alvoroçar/E, estrada afora, te conduzir/Basta soprar meu nome/Com teu perfume/Pra me atrair); heroico e sobre-humano (Se as tuas noites não têm mais fim/Se um desalmado te faz chorar/Deixa cair um lenço/Que eu te alcanço/Em qualquer lugar); eternamente fiel (E quando nosso tempo passar/Quando eu não estiver mais aqui/Lembra-te, minha nega/Desta cantiga/Que fiz pra ti).

Atencioso, sonhador, polido, humilde, indiferente   ---  por amor  ---, ao julgamento que fará dele a sociedade do politicamente correto, o eu lírico da letra de Tua Cantiga é maldosamente confundido com o autor Chico Buarque de Holanda. O julgamento, se é político, é perverso e, por isso, revoltante. Se é estético, tão-somente materializa um exemplo claro de incompetência e despreparo. De todo modo, lamentável. 

 

   

 


 

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