Depois de Tim Maia (2013), Mauro Lima volta ao circuito com outra cinebiografia. E que filme! Com uma direção cada vez mais aprimorada, em que sobressai um rigor estético notável para um cineasta ainda em início de carreira (em que pese ser este o seu sexto filme), João, o Maestro é digno de figurar entre os quatro ou cinco melhores filmes brasileiros dos últimos anos.
Apoiado no livro de Ricardo Carvalho, A Volta por Cima de João Carlos Martins e Outras Histórias, o filme de Mauro Lima conta a trajetória de um dos maiores pianistas de sua geração, infelizmente pouco conhecido do grande público em seu país, mas internacionalmente respeitado como um dos principais intérpretes do compositor clássico Johan Sebastian Bach (1685-1750).
Mas, se são recorrentes as sequências em que vemos o músico em atuação, no que aliás sobressaem algumas grandes qualidades estéticas do filme, a belíssima fotografia e um trabalho de câmera que excede em rigor técnico e sensibilidade poética, por exemplo, é a presença do homem por trás do mito que constitui o eixo dramático da história.
Marcada por tragédias recorrentes, a vida de João Carlos Martins, por si só, é algo que extrapola os limites da normalidade e serve para assinalar a densidade do enredo, bem construído e coerente.
As estratégias narrativas do diretor, não raro criticadas por um certa vocação maneirista, o que de resto parece mesmo vir se tornando uma de suas características mais marcantes, realçam a forma como estão articulados os acontecimentos, mesmo que Mauro Lima jogue com espaços e temporalidades diferentes ao longo do filme. São numerosos, sob esse aspecto, os flashbacks, mas nada que torne incompreensível o desenrolar da história, ainda que sejam diferentes os atores que interpretam o biografado e, natural, os traços fisionômicos dos mesmos e o timing da interpretação.
João, o Maestro tem sequências memoráveis, dessas que o espectador guarda consigo e não se cansa de comentá-las depois. Numa delas, em 1958, quando o protagonista conta 18 anos de idade e algo em torno dos 10 de piano, o quadro mostra o interior do Teatro Municipal de São Paulo, berço dos maiores eventos de música clássica no país. Vemos João Carlos Martins ser ovacionado depois de executar prelúdios e fugas de O Cravo Bem Temperado, uma das obras-primas de Bach.
Exausto, o jovem virtuoso debruça-se sobre o piano, levanta-se e abandona o palco em busca do pai, que o aguarda na coxia. A câmera fecha no abraço de pai e filho, enquanto ouvem-se os gritos de "bis" da plateia: --- "Pai, não vou voltar. Estou com uma dor aqui, ó... Eu me recuso a subir o palco se não puder tocar com perfeição. E não vou voltar para o bis".
Como o filme deixa claro, esse episódio era apenas um dos muitos que o então pianista teria de enfrentar com a saúde. Aos 6 anos tinha convulsões terríveis. Ainda na primeira infância, foi submetido a uma cirurgia para extrair um tumor, do que resultaria uma fístula que o atormentaria por dois anos. O tratamento era doloroso, à base de injeções no pescoço que o quase menino suportaria com a dignidade de um verdadeiro homem.
É exemplarmente bem conduzida do ponto de vista formal, noutro momento interessante do filme, a sequência em que o artista brasileiro vê, pela janela do apartamento em que mora em Nova York, algo impensável: jogadores da Portuguesa de Desportos (time do coração de João) treinam num campo improvisado do Central Park. O pianista desce e é convidado a participar do racha. De sapatos e roupa comum, aceita. Numa disputa de bola com um zagueiro adversário, João Carlos cai e, em close, vemos a seriedade da contusão: uma pedra pontiaguda dilacerara o nervo ulnar, comprometendo para sempre os movimentos da mão de um dos gênios do teclado clássico.
Tudo é mostrado, no entanto, sem o apelo piegas não raro presente em outras cinebiografias. Isso, por suposto, justifica que Mauro Lima tenha optado por suprimir ou apenas "olhar" à distância acontecimentos que, no livro de Ricardo Carvalho, aparecem como episódios centrais da vida de João Carlos Martins.
É o caso da cena em que o futuro maestro é amparado por uma coleguinha, Marina, depois de humilhado por meninos do colégio ao sujar a camisa com secreções oriundas da fístula em seu pescoço.
Momento inesquecível, diz, no livro, João Carlos Martins.
Meses depois, voltando do colégio, o artista depara com uma cena assustadora. Homens retiravam do interior da casa de Marina os caixões com os corpos de toda a família, o dela inclusive. "A mãe da menina, diz Ricardo Carvalho, num surto psicótico, ligou o gás do banheiro e lá se trancou com os filhos".
Mauro Lima opta por dar ênfase a passagens intrigantes da trajetória do maestro. É notável, ainda, a sequência em que mostra João Carlos Martins ser escolhido para participar de um dos mais importantes eventos ligados à música clássica, o Festival de Casals, em Porto Rico. O governo brasileiro nega-se a cobrir os custos da viagem, mas o embaixador da Argentina nos Estados Unidos, depois de ler na imprensa sobre o fato, patrocina a ida de João Carlos Martins ao festival. Ele é selecionado como vencedor para se apresentar em Washington, mas, no momento da apresentação, vê-se ao fundo, em primeiro plano, a bandeira da Argentina.
João, o Maestro, na esteira de outros filmes feitos por último no Brasil, confirma o que disse sobre o cinema nacional, em entrevista recente ao jornal O Globo, Ruy Guerra: "O cinema brasileiro, hoje, é melhor que o americano". Polêmica à parte, o Brasil tem realizado mesmo grandes filmes. Que bom.
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