sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ao Deus desconhecido

Enquanto leio Nietzsche, Uma Biografia, o belíssimo livro de R. J. Hollingdale, sentado a uma poltrona da Livraria Cultura, ouço de um amigo a provocação: "Deus está morto!". Cita a famosa assertiva do filósofo alemão, retirada de cor do livro A Gaia Ciência. Como bom polemista, que costuma 'dar um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela', bem ao gosto da máxima popular, convido-o a sentar-se, e vou, pelas bordas, desconstruindo sua provocação.

O preconceito decorre, estou certo, do fato de Nietzsche ter, ele mesmo, declarado-se ateu. Está na sua autobiografia, Ecce Homo, que mal e mal justifica o equívoco de tanta gente acerca do filósofo alemão. É que, com frequência, fazem de sua obra   ---   extraordinária!   ---, uma leitura de superfície, sem percorrer com a atenção devida os labirintos, as armadilhas, as falsas pistas e, sobretudo, a poesia imensa de que o autor de Assim Falou Zaratustra inundou sua escrita.

Citação (as faço tanto!) é coisa muito séria para ser reproduzida ao sabor da vontade e das conveniências. A literatura, como a filosofia, é feita de metáforas, de jogo de palavras, de polissemias, enfim, de afirmações perpassadas de ironia, figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender. Temos uma inclinação para fazer do pensamento alheio uma interpretação rasa, não é raro com a intenção de tirar, disso, algum proveito.

É verdade que Nietzsche, literalmente, usou essas palavras. Mas o fez, fundamentalmente, para falar de um tempo em que perdemos a noção cósmica da existência e nos permitimos a negação dos valores absolutos, de que resultará, por inevitável, a descrença de todos os valores, o que podemos definir como niilismo.

Qualquer leitor mais atento, pois, haverá de compreender que Nietzsche vê no niilismo um sinal da decadência que toma conta do mundo moderno. Por isso, ele nos fala da necessidade imperiosa de reformulação dos valores humanos, que nem mesmo o cristianismo foi capaz de elevar `a perfeição. Alegoricamente, então, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas. O seu ataque não se dirige a um Deus impossível, como grosso modo se quer provar, mas `as instituições que O dizem representar.

A História, nesse sentido, é feita de equívocos, de julgamentos precipitados, de conclusões descabidas. Espinosa, o pensador sobre o qual Alcântara Nogueira (meu conterrâneo de Iguatu) escreveu coisas maravilhosas, também ele, foi acusado de não crer na existência de Deus. E sua obra, no entanto, foi toda ela dedicada a Deus.

Um estudioso importante, de cujo nome não sou capaz de lembrar aqui, sentado `a frente do computador, enquanto escrevo este artigo, já admitiu de modo convincente que também Sócrates foi acusado de ateu e, pasmem, Cristo, razão por que imortalizado a partir da cruz.

É preciso desconhecer o que existe de essencial no pensamento de Nietzsche para julgá-lo com simplificações. Assim Falou Zaratustra que o possa dizer, na contramão das muitas leituras que se fazem dessa verdadeira obra-prima da filosofia mundial. Poucos livros terão sido escritos com tanta força espiritual, tanta crença na possibilidade de vivermos a bondade essencial, que, um dia, haverá de nos aproximar do verdadeiro Deus.

Por fim, como o fiz em presença do amigo de que lhes falei acima, permitam-me terminar com a poesia do próprio Nietzsche, segundo a tradução conhecida de Leonardo Boff.

"Antes de prosseguir em meu caminho/e lançar o meu olhar para frente uma vez mais,/elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo./A Ti, das profundezas do meu coração,/tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar./Sobre esses altares estão  gravadas em fogo estas palavras:/"Ao Deus desconhecido"./Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos./Seu, sou seu, não obstante os laços que me puxam para o abismo./Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo./Eu quero Te conhecer desconhecido./Tu, que me penetras a alma e, tal qual turbilhão, invades a minha vida./Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,/quero Te conhecer, quero servir só a Ti".

Ele fala do conflito interior de cada um de nós. Ter fé, só, não é bastante. É preciso exercitá-la.

Percebe-se, pois, que Nietzsche foi mal compreendido, e o Deus que diz estar morto é outro. Aquele, por trás de cuja existência escondemos nossa omissão diante da miséria humana. Matamos este Deus todos os dias, nos sinais de trânsito, indiferentes aos que sentem fome ou necessitam de assistência para sair do inferno em que se encontram; matamos este Deus quando exploramos as pessoas que nos servem, quando aviltamos suas vidas com salários indignos; matamos este Deus quando nos articulamos para suprimir direitos conquistados a duras penas por aqueles que trabalham; quando nos deixamos dominar pela intolerância e pelo ódio aos que pensam diferentemente de nós; quando julgamos o outro pela cor da pele, pelas escolhas que fazem no campo da sexualidade e da política; matamos este Deus quando nos sentimos superiores e enxergamos as pessoas pela posição social que ocupam, num país marcado por tantas contradições. Este Deus está morto, porque o matamos todos os dias.

 

 

 

    

 

 

 


 

Um comentário:

  1. Deus pode estar morto...ou não. Os clichês, citações e interpretações estão vivíssimos.

    ResponderExcluir