quinta-feira, 24 de agosto de 2017

PALESTRA DA LIVRARIA CULTURA

 

                      COMENTÁRIO SOBRE IT'S ALL TRUE
                                                Por Álder Teixeira*                         

Admitamos, de saída, que It's All True não é um documentário como tantos outros, cujas marcas essenciais, grosso modo, caminham na direção da clássica definição de Jacques-Aumont: "[...] uma montagem cinematográfica de imagens visuais e sonoras apresentadas como reais e não fictícias".

Este aspecto, simploriamente arrolado pelo renomado estudioso francês, é que dá ao filme de Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn, de 1993, uma força de sentido que vai muito além das fronteiras fixadas para o que se convencionou chamar de "documentário", pelo menos se se levarem em consideração algumas de suas propriedades de conteúdo e forma, como pretendemos, concisamente, analisar no presente comentário.

Como ocorre, por exemplo, ao não menos importante trabalho de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado Para Morrer, concluído em 1981, It's All True é um filme que joga com duas temporalidades, segundo a classificação de Gilles Deleuze em Cinema II: Imagem-Tempo, 1985, livro com que o pensador francês, a partir dos conceitos filosóficos de Bergson a propósito do movimento, do tempo e da imagem, propõe uma reeducação do olhar.

Vejamos. Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, foi rodado, inicialmente, em 1964 e tinha como fio condutor o assassinato, ocorrido dois anos antes, de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas do estado da Paraíba. Participaram das primeiras tomadas companheiros do líder assassinado e sua esposa, Elizabeth Teixeira.

No filme, a exemplo do que se pode ver no material original gravado no sertão paraibano, João Pedro é interpretado por um camponês, numa perspectiva fílmica em que ficção e realidade se entrecruzam. As gravações, no entanto, deflagrado o golpe de abril de 1964, seriam interrompidas e muitas das pessoas envolvidas em sua realização passariam a viver na clandestinidade, Elizabeth Teixeira inclusive.

Em 1981, com a abertura política e a retomada da democracia no país, Eduardo Coutinho retorna à Paraíba e concebe um "novo" filme a partir do que ficara de memória das filmagens de dezessete anos antes. O leitmotiv do filme, contudo, teria por tema as questões políticas do primeiro momento, 1964, resultando o material rodado à época, no filme de 1981, no que se convencionou chamar de "filme dentro do filme", estratégia narrativa comumente classificada como "metacinema", ou, segundo os pressupostos da semiótica, "intertextualidade" fílmica.

Em face das limitações de espaço e motivações do presente comentário, todavia, e considerando a complexidade da tese defendida por Deleuze, contentemo-nos, por inevitável, com a sua sinóptica e incontornável afirmação de que "o cinema é o espaço por excelência para a análise das complexas relações entre passado e presente, memória e acontecimento".

Voltemos ao filme de Richard Wilson, a partir de agora referido como seu realizador (além de Wilson o filme é assinado por Myron Meisel e Bill Khron):

Lançado em 1993, It's All True, foi produzido a partir do material rodado por Orson Welles em 1942, dentro de um projeto que tinha por objetivo fortalecer a política de boa vizinhança dos Estados Unidos com países de capitalismo periférico, a exemplo do Brasil, sob o comando do estúdio RKO.

O filme original teria dois andamentos temáticos: o primeiro, a adaptação de um conto de Robert Flaherty em torno da amizade entre um menino e um touro, a ser gravado no México; o segundo, sobre o Carnaval do Rio de Janeiro.

O terceiro, a ficcionalização da viagem de jangada, de Fortaleza ao Rio de Janeiro, de três pescadores cearenses imbuídos de reivindicar junto ao presidente Getúlio Vargas, pessoalmente, melhores condições de trabalho e incentivo legal à profissão, supostamente fora concebido como um filme à parte, Jangadeiros, fruto das impressões que a aventura histórica teria causado a Orson Welles.

O filme, contudo, iria tomar um rumo diferente do que pretendiam seus patrocinadores, Nelson Rockefeller e o governo americano à frente, passando a contradizer as motivações iniciais, ou seja, vender imagens positivas do Brasil na perspectiva de suas relações com os Estados Unidos. Depoimentos de Pery Ribeiro e Grande Otelo, no filme de Richard Wilson, apontam nessa direção, o que, em tese, esclarece a complicada decisão da RKO de interromper o projeto e impedir a continuidade das gravações. As limitações de espaço e tempo, infelizmente, exigem que façamos aqui supressões importantes acerca da polêmica em torno de It's All True e das razões que impediram sua conclusão.

O fato é que o material gravado, cujo destino ficaria por muitos anos desconhecido, foi encontrado por funcionários da Paramount (produtora a que fora vendida a RKO) e entregues ao pesquisador de cinema Bill Khron, em inícios dos anos oitenta.

É desses negativos, em grande parte irrecuperáveis, que Wilson faria o filme lançado em 1993, exibido pela primeira vez no Festival de Cannes.

Mas, por que partimos da afirmação de que It's All True não é um documentário, digamos, convencional, uma vez que apresenta em sua estrutura narrativa elementos tradicionais do gênero, a exemplo do uso da voz over, das entrevistas, do som direto, da alternância imagens documentais/depoimentos de pessoas em seus papeis "reais" e, sobretudo, uma montagem que rompe com a continuidade típica do filme de ficção em favor da representação de situações relacionadas entre si no tempo e no espaço ditos reais?

O procedimento fílmico aqui utilizado situa-se no estatuto do que André Gide, valendo-se de um conceito da heráldica, define como "mise en abyme", ou seja, a estratégia narrativa que consiste num processo de reflexividade, de duplicação especular.

Aqui, no entanto, essa propriedade não se dá apenas no nível do enunciado, isto é, da inserção de uma narrativa dentro de outra narrativa a fim de representar, como documento, fragmentos do que é, originariamente, o objeto de exame do filme.

Não. Em It's All True deparamos com um verdadeiro "movimento para o abismo", pois se trata de um filme feito a partir da tentativa de realização de um filme dentro do qual a representação da realidade se faz com elementos não do documentário, tal qual o pensamos tradicionalmente, mas com a ficcionalização de fatos que, artisticamente, foram submetidos a uma concepção autoral assinada, no caso, pelo cineasta Orson Welles, no ano de 1942, em lugares e momentos diferentes ente si: México, Rio de Janeiro e Fortaleza.

Não se trata, tão-somente, de uma narrativa (ou fragmentos de uma narrativa) explorada no nível do enunciado, em que se vê (ela, a primeira narrativa) sucintamente representada a uma dada altura do seu curso, como é comum em filmes do gênero.

O procedimento, em It's All True, ganha, assim, maior complexidade simbólica e a instância enunciadora configura-se no texto fílmico em plena ação enunciatória: em mais de uma oportunidade, vemos o diretor inglês dirigindo a representação ficcional de um fato real, a viagem dos pescadores cearenses entre Fortaleza e o Rio de Janeiro, embora a sua representação se dê com os próprios indivíduos no fato real agora representado.

Para concluir, Richard Wilson, nessa tentativa de reconstituição de uma experiência cinematográfica já conhecida, a experiência de filmagem levada a efeito de modo inconcluso por Orson Welles, em 1942,  no contexto de ocorrências extrafílmicas ainda não esclarecidas (e que provavelmente jamais serão de todo esclarecidas) ainda que voltando-se para a figura do cineasta inglês, não descreve ou documenta essa experiência, as práticas cinematográficas ou estéticas vivenciadas pelo diretor, de forma rigorosamente documental.

Incorre, ouso afirmar, num tipo de registro tipificado por Timothy Corrigan, em estudo notável, como filme-ensaio. Melhor: num filme-ensaio "refrativo", que, segundo o estudioso americano, "decompõe e dispersa a arte ou o objeto que envolve, fragmenta-o ou deflete-o de maneiras que deixam a obra original dispersa e à deriva em um mundo exterior".

It's All True, a exemplo do que afirma o autor citado a propósito do que define como filme-ensaio refrativo (e são suas as palavras com que encerro essa comunicação), pede que "pensemos não tanto sobre a estética do cinema   ---   o gênio por trás dele, as estratégias artísticas ou suas comunicações emocionais e imaginativas. Em vez disso [...], tende, de variadas maneiras, a chamar a atenção para onde o filme fracassa ou, mais precisamente, para onde e como o cinematográfico pode nos forçar para além de suas fronteiras, forçar-nos a pensar sobre um mundo e sobre nós mesmos, que necessária e crucialmente existem fora do cinema".

O eixo temático do filme, pois, é menos estético (ainda que seja notável também sob este aspecto)* e mais um  'objeto estético' fenomenológico de percepção política sobre o fazer cinematográfico.

*Nota: Não perder de vista que todo documentário é, em alguma medida, ficcional, assim como toda ficção também incorpora muito do documental. Essa discussão, que há muito constitui objeto de exame nem sempre confortável entre teóricos do mundo inteiro, ainda desperta interesse quando o assunto é a Arte. O cinema, em particular, por ser uma linguagem dentro da qual muitas outras linguagens estão presentes, amplia o leque de possibilidades discursivas. André Bazin, para citar um estudioso incontornável da matéria, foi mal compreendido quando defendeu "um certo realismo ontológico e automático do cinema". A sua didática declaração sobre o neorrealismo italiano parece-me esclarecedora nesse sentido: "[...] devemos desconfiar da oposição entre o refinamento estético e não sei que crueza, que eficácia imediata de um realismo que se contentaria em mostrar a realidade. Não será, a meu ver, o menor mérito do cinema italiano ter lembrado uma vez mais que não havia 'realismo' em arte que não fosse em princípio profundamente 'estético'?" Fazer cinema, pois, é lançar mão de uma retórica, é fazer escolhas e manipular instrumentos, construir discursos, levar a efeito um tipo de interferência. 

        *Professor de História da Arte, Iniciação à Estética e Estética do Cinema. É Mestre em Literatura e Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG.                                     

 


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