Chega às livrarias notável biografia do cineasta, poeta e ator Ruy Guerra, de autoria de Vavy Pacheco Borges. Tomo nas mãos o livro, editado pela BoiTempo, e, duas ou três páginas depois, não consigo largá-lo. Havia muito não se publicava um livro tão delicioso, permitam-me o adjetivo talvez inadequado para se avaliar uma produção intelectual, pelo menos observando-se os parâmetros acadêmicos usuais.
Delicioso, insisto, pois é a palavra que melhor diz do imenso prazer que sente o leitor ao ler aquela que me parece ser a primeira biografia de um dos mais importantes artistas "brasileiros" dos últimos tempos. As aspas, claro, devem-se ao fato de que Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira é natural de Moçambique, onde nasceu a 22 de agosto de 1931.
Aos 29 anos chega ao Brasil, vindo de Paris, onde cursara o Idhec, Institut de Hautes Études Cinématographiques, centro de referência em termos de formação cinematográfica da França. Como, curiosamente, é recorrente na história artística e intelectual brasileira, chegou e ficou apaixonado pelo país, vendendo a passagem de volta a fim de se estabelecer para sempre aqui, para felicidade dos brasileiros que, já muito cedo, puderam descobrir que chegava ao país um artista genial.
E, como Vavy Pacheco faz questão de frisar, já nas primeiras páginas dessa belíssima biografia, mais que um grande cineasta, reconhecido internacionalmente pouco tempo depois, chegava ao Brasil "alguém com uma vida cheia de glamour".
A esse respeito, muito embora irrelevante quando se está à frente de um talento de relevo, é conhecido o fato de ter sido sempre cortejado pelo universo feminino, e casado com nomes famosos dos meios artísticos brasileiros, como Leila Diniz, Nara Leão e Cláudia Ohana. Com a primeira teve Janaína Guerra, que, após a morte inesperada da mãe, num desastre aéreo em 1972, Nova Délhi, onde fora premiada como atriz e voltava para o Brasil, passou a viver sob os cuidados de Chico Buarque de Holanda e Marieta Severo. Janaína, sabe-se, tornar-se-ia atriz de reconhecido talento.
O importante, no entanto, é que a biografia de Ruy Guerra percorre a trajetória do homem, mas, acima de tudo, volta-se com proficiência para o grande artista que é. É quando se pode acompanhar o processo de criação poética, dramatúrgica e, sobretudo, cinematográfica de um verdadeiro expert.
Sobre isso, por sinal, deparamos em Ruy Guerra, Paixão Escancarada (título do livro) com relatos de rara agudeza sobre o fazer artístico em diferentes linguagens. É quase perfeito o segmento do livro que Vavy Pacheco denomina Livro 2. Nele estão os capítulos que mais me agradaram na obra, quando Vavy Pacheco se debruça sobre o estilo do biografado em tudo que se relaciona com a criação através da palavra e da imagem. Em Linguagem Fílmica, por exemplo, a biógrafa faz um breve mas eficientíssimo apanhado do que é fazer cinema.
A propósito, quem tiver sido capaz de ver com a devida atenção o cinema de Ruy Guerra (refiro-me aos cinéfilos, propriamente ditos) haverá de perceber facilmente que estamos falando de um cineasta absolutamente extraordinário, um esteta inventivo e muitíssimo feliz em tudo que diz respeito ao que se deve identificar como o 'estilo cinematográfico'.
É que, em cinema, na perspectiva do que tenho procurado fazer quando escrevo sobre a matéria, mesmo para o desconforto de muitos, a câmera é a caneta com que se escreve a narração, o pincel com que se compõe a imagem. E poucos como Ruy Guerra, e não me refiro apenas aos cineastas brasileiros, têm tamanho domínio do principal instrumento da arte cinematográfica. Enquadramentos, travellings, panorâmicas, composição do quadro, equilíbrio de massas, tudo tudo é objeto de escolhas rigorosas em se tratando do diretor de Os Fuzis (1964), obra-prima do cinema nacional.
Não à toa, pois, são recorrentes no livro os depoimentos de diretores de fotografia que enaltecem a sensibilidade "milimétrica" de Ruy Guerra na construção da imagem. Sobre Quase Memória (2015), seu último longa-metragem, diz Renan de Andrade: "A marca forte de Ruy está lá (as marcações de luz particulares e os estéticos enquadramentos de câmera dizem muito sobre isso) e seu filme se legitima muito em cima disso (a fotografia é difícil mas assertiva)".
Ocorre-me lembrar a cena da praia em Os Cafajestes (1962), aula de fotografia fílmica. Sem esquecer, por óbvio, seus planos sequência desconcertantes, a profundidade de campo e o ponto de fuga que nos fazem recordar Jean Renoir, o cineasta francês, em seus melhores momentos.
Por essas breves considerações, e outras muitas razões que as limitações de espaço impedem-nos de explorar, Ruy Guerra, Paixão Escancarada chega ao mercado, para os aficionados do cinema, como um grande acontecimento. Há muito se fazia necessário um registro atento e sensível do que representa esse octogenário 'quase-brasileiro' para o cinema e a arte do Brasil e do mundo. Recomendo.
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