quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O quadro e o homem

Matisse, o pintor francês, levou anos até reunir dinheiro para realizar um sonho: Comprar a tela Três Banhistas, de Cézanne. Nada de muito especial nesse quadro, pintado entre 1878 e 1882, de dimensões pequenas e nitidamente experimental. Mas, para Matisse, tratava-se de uma obra ímpar, por isso objeto de um sonho que lhe custaria realizar.

Perto de morrer, no entanto, o pintor decide doar o quadro à prefeitura de Paris. Queria tornar acessível aos amantes da arte do mundo inteiro a beleza envolvente e sóbria do autor de O Negro Cipião, Pastoral ou Idílio, Telhados Vermelhos, A Tentação de Santo AntônioA Casa do Enforcado e tantas obras-primas da grande arte.

Durante quase quatro décadas, a tela de Cézanne permaneceu afixada a uma parede da casa dos Matisse, exercendo uma reconhecida influência sobre a vida da família e, principalmente, sobre a poética desse gênio do modernismo chamado Henri Matisse. Para ele, dizia o artista, voltara-se seu olhar ao longo de 37 anos, num misto de encantamento e gratidão.

Antes de entregar o quadro aos novos proprietários, Matisse fez um comentário que ficaria registrado em suas melhores biografias e, por certo, eternizado na História da Arte: ---  "Nos trinta e sete anos que fiquei com esse quadro, vim a conhecê-lo razoavelmente bem, mas sem esgotá-lo".

Na vida dos homens, também, é assim. Levamos anos até conhecer, "razoavelmente", aqueles com os quais convivemos. Por isso, são comumente falhas as nossas conclusões, injustos os julgamentos. Quantas vezes vemos nos outros só defeitos, quantas vezes nos deixam seduzidos por eles as falsas impressões?

Esta a razão, estou convencido, por que se desfazem em sopro os relacionamentos, desmoronam as grandes amizades.

Como Matisse diante do quadro de Cézanne, é preciso pois que contemplemos aqueles com os quais convivemos com o máximo de cuidado e carinho, procurando descobrir neles a beleza, sóbria ou incisiva, antes que os defeitos e as imperfeições, de resto inerentes à própria condição humana.

Sobre Três Banhistas, faria Matisse outra declaração igualmente pungente: --- "Ele [o quadro] me proporcionou apoio moral em momentos críticos de minha trajetória como artista; dele extraí a minha fé e a minha perseverança."

Não era o valor material da tela, muito embora extremamente bem cotada em termos de mercado, que seduzira de forma tão impressionante o coração de Matisse, e o rigor estético por que sempre moveu suas avaliações. Havia na tela de Cézanne, aos olhos de Matisse, um segredo que só o imponderável é capaz de justificar. Havia, é certo, o uso estilizado do jogo cromático, um brilho inaudito do amarelo, um volume de tonalidades azuis e verdes que jamais um outro pintor fora capaz de compor. E isso, supostamente, poderá explicar a verdadeira relação de amor entre o homem e a arte.

Não é muito lembrar, no entanto, que o mesmo quadro que exerceu sobre Matisse tal sortilégio, tamanho feitiço, foi abominado por muitos e muitos, arvorados de críticos e conhecedores da arte dos quatro cantos do mundo.

Assim acontece com os homens. Os arrogantes que se abriam em gargalhadas diante de Três Banhistas, mutatis mutantis, agem como aqueles que se julgam donos da verdade no julgamento dos outros.

Tal qual o contemplador diante de um quadro, na convivência dos muitos anos, a exemplo do que ocorreu a Matisse, é preciso estar atento aos detalhes, às pequenas coisas que dão ao todo de cada um o seu real valor. 

Como no mundo da arte, só o tempo é capaz de revelar as qualidades mais finas, os tons mais exatos, o equilíbrio com que se tornam imorredouras as grandes obras.

Assim também ocorre diante das amizades que podem ser eternas. Feliz Ano Novo!  

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Porque era Natal

Durante o café da manhã, entre amigos, um deles me lança o desafio: ---  "Que tal uma crônica sobre os melhores filmes de Natal?", pergunta-me, entre curioso e cúmplice. 

E fomos, juntos, vasculhando a memória na tentativa de lembrar os filmes que, direta ou indiretamente, tivessem como fio condutor a festa do Deus Menino. 

Não sem esforço, claro, ocorreram-nos, assim, como que por milagre, alguns títulos memoráveis: Natal em Hollywood, A Felicidade Não se Compra, Duas Semanas de Prazer, Inferno 17, Uma História de Natal, Papai Por Acaso, Um Conto de Natal etc. 

Mas é Noites Calmas, que ninguém foi capaz de lembrar, naquele instante, ao redor da mesa em que nos confraternizávamos, o filme com que gostaria de ter colocado a "cereja do bolo" do prazeroso embate.

E é sobre ele que decidi aceitar, agora, a provocação de escrever a coluna do A Praça nesta antevéspera do Natal. 

É um enredo simples, roteirizado a partir do livro homônimo de William Warthon, com direção notável de Keith Gordon. Um bom filme, talvez inferior a alguns da relação, mas inesquecível por uma das mais belas sequências do cinema em muitos anos. E é, supostamente essa, a razão por que fiz questão de revê-lo ao chegar em casa  ---  confesso, contendo a custo a emoção. 

Segunda Guerra Mundial. Um pequeno grupo de soldados americanos é designado para uma missão perigosa no front alemão, em pleno inverno de 1944. 

Os inimigos encontram-se na noite de 24 de dezembro, e o que se passa, por inverossímil que possa parecer, é de uma beleza enorme: nenhum tiro, nenhum ato de violência. Em frente a um casebre que servira de esconderijo aos alemães, os combatentes lembram que é noite de Natal, as armas são postas e, juntos, entoam canções natalinas.

Dia claro, os alemães decidem se entregar. Mas como justificar ao Major Griffin (John McGinley) que ordenara aos soldados americanos destruir os alemães, que isso tenha se dado sem o disparo de um único tiro e uma só gota de sangue derramada? É quando os jovens soldados, americanos e alemães, tocados pelo espírito de paz que reinara até a antemanhã, resolvem, irmanados, simular um combate, atirando para o alto, a fim de que seus superiores não descubram a farsa.

No simbolismo dessa cena, a um tempo tão forte e tão terna, a arte lembra a todos nós que nem tudo está perdido, mesmo na realidade brutal de uma guerra, e que ainda é possível nutrir a esperança de um mundo melhor, mais humano, mais igualitário e mais tolerante.

Mais que enfeites e mesas fartas, como quis Francisco, o nascimento de um Deus pede dos homens, antes de qualquer outra coisa, a festa simples dos corações que amam.

Noites Claras, pois, com a simplicidade de sua concepção cinematográfica, ambientado num cenário de roubar o fôlego, na fronteira entre França e Alemanha, em meio ao horror de uma guerra, mostra que o amor foi capaz de vencer o ódio. Porque era Natal! 

 

 

 

 

 

 

   

 


 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Extraordinário, simples e aprimorado

Qualquer estudante de artes haverá de saber que nenhuma originalidade pura é possível. Picasso, o gênio da arte moderna, fez a propósito disso uma afirmação inquietante: --- "Os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam."

Não à toa, pois, é que se pode perceber muito de Cézanne, de Goya, de Velázquez em obras marcantes de sua trajetória. Não se trata de copiar, mas de invocar um traço, uma luz, uma composição, uma textura de que possa extrair a força pessoal do que mais tarde virá a ser "seu" estilo.

Com o cinema não é diferente, é ter um mínimo de bases teóricas para perceber que existe muito, por exemplo, de Carl Dreyer em Bergman, deste em Tarkóvski ou mesmo, pasmem, em Woody Allen, para quem o cineasta sueco foi a maior inspiração.

Digo isso a propósito de contestar um comentário que ouvi ontem de um cinéfilo sobre Extraordinário, em cartaz nos cinemas da cidade. "Nenhuma novidade", afirmava ele, como a tentar desmerecer o segundo filme de Stephen Chbosky pela clareza narrativa, como se a qualidade de uma obra estivesse limitada às excentricidades no uso da linguagem ou na abordagem novidadeira de um determinado tema.

Nesse sentido, não é preciso ir longe para reconhecer que se trata de um filme absolutamente "solar" em termos cinematográficos. O roteiro, a direção de atores, as estratégias narrativas sustentam-se em convenções cristalizadas pelo "cinemão". Mas o que é a linguagem senão um meio de se dizer alguma coisa sobre o mundo? Ver um filme, está nos bons manuais, é compreendê-lo sejam quais forem os procedimentos do que se convencionou chamar de narratividade.

Se o cinema contemporâneo não raramente explora mecanismos para "esconder" a história, como se a qualidade de um filme, repito, se prendesse à complexidade de sua concepção e à sofisticação no uso dos procedimentos formais com que se materializa enquanto construto artístico, são outros quinhentos. Um filme pode ser um grande filme em que pese a ausência de complicação dos meios adotados por seu realizador.

É o caso: Extraordinário conta uma história interessante, atual, e a discute com um nível de responsabilidade poucas vezes visto no cinema de hoje. Mas vai além disso, porque é capaz de encantar o espectador mantendo-o sob o controle de sua própria simplicidade, mesmo quando o ponto de vista da narração passa de uma personagem a outra, no que me parece ser o único expediente minimamente rebuscado de sua estrutura narrativa.

Baseado no livro homônimo de R. J. Palacio, o filme de Stephen Chbosky narra a história de um garoto "diferente" chamado Auggie Pulmann, cujo intérprete, Jacob Tremblay, já conquistara a admiração do grande público por sua comovente atuação em O Quarto de Jack. Neste, está ainda melhor.

Mas, por que "diferente"? Justifico-me.

Auggie é a criança cujo nascimento serve de abertura para o filme, quando a câmera enquadra sua mãe (Julia Roberts) em trabalho de parto e o espectador é tomado pelo estranhamento de ver a reação aflita do pai (Owen Wilson) e da enfermeira diante do recém-nascido.

Na sequência seguinte, após o uso convencional da elipse de tempo, quando Auggie Pulmann tem dez anos de idade, é que o espectador é informado de que o menino nascera com uma deformidade no rosto que resultará  no eixo dramático do filme: a sua difícil trajetória desde o homeschooling ao ingresso na escola regular e o pesadelo do bullying na terrível convivência com os colegas ditos "normais".

O arco dramático do filme, no entanto, oscila do protagonista para personagens secundárias, a exemplo da irmã de Auggie, Via (Izabela Vidovic) e sua atormentada amiga Miranda (Danielle Russell), cujos conflitos, também densos do ponto de vista dramático, orbitam em torno do núcleo central desse belíssimo filme de Stephen Chbosky.

Por sua delicada excelência estética, pois, Extraordinário, na contramão do que professa uma certa crítica cinematográfica do país, vezeira histórica no preconceito contra tudo o que, em termos artísticos, é capaz de comover, tem nesse componente apenas um detalhe que, mais ainda, dá realce a sua beleza a um tempo simples e aprimorada. Imperdível.

 

 

 


 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Cesar Fiuza em nova linguagem

O filósofo lituano Emmanuel Levinas, no livro O Tempo e o Outro, chama de "Rosto" o lugar onde tomamos conhecimento do "Infinito" do Outro. Anita Prado Koneski, por sua vez, conclama-nos a acolher a obra de arte como esse "Rosto" que nos possibilita ter acesso a esse "Infinito", para o qual todas as palavras são incapazes de comunicar.

Muitas vezes, como é o caso a que me referirei neste artigo, essa incapacidade ganha o estatuto de referência, pois que decorre de complicações no centro articulador da linguagem verbal. Sem delongas: tomo como objeto de exame a obra pictórica de Cesar Fiuza, ainda que incipiente, mas significativa ao ponto de justificar, com imenso mérito para o artista, a exposição que vem realizando entre 6 e 12 do corrente, em Fortaleza.

Como na afirmação notável de Koneski, esse "Outro quando nos fala, fala da infinita distância que nos separa [...] "é um discurso com Deus e não com iguais. No Rosto está o vestígio do inominável, do errante, daquele estrangeiro que está sempre em êxodo. O Rosto é principalmente a expressão do diferente."

Esse "infinito" ou "diferente" a que se refere a ensaísta, ecoando as palavras de Emmanuel Levinas, só mesmo a arte é capaz de comunicar, a exemplo do que fez Michelangelo (a propósito da dor intransferível da mãe que perde um filho) na Pietà.

Drummond, também ele um grande artista, foi além em torno da incomunicabilidade do sofrimento de Maria tendo no colo o filho sem vida, cena imortalizada na escultura do renascentista italiano: "Dor é incomunicável./O mármore comunica-se,/acusa-nos a todos."

Cesar Fiuza, cujas realizações como arquiteto povoam de graça, estilo e sedutora beleza diferentes pontos da cidade, acertado duramente por um acidente vascular cerebral há coisa de dois anos, não se curvou às sequelas que advieram da doença. Artista extraordinário que é, buscou novas possibilidades de comunicação com o exterior.

Descobriu-se, assim, além do arquiteto notável, um pintor dotado de imensa aptidão  ---  e suas telas passaram a falar por ele, comunicando-nos suas inquietações interiores, sua sensibilidade estética e sua imaginação criadora incomum com vitalidade formal, equilíbrio compositivo e apurado senso de harmonia entre traços e planos.

Há, em cada quadro, ainda que  ---  natural  --- o pincel se mostre aqui e ali balbuciante, uma intuição poética altamente refinada. E a cor... Bem, a cor é provavelmente o elemento pictórico com que, ainda mais e de forma mais amadurecida, Cesar Fiuza dá a ver a sua aguçada capacidade de combinar tons, nuances e ritmos cromáticos cheios de sugestão e profundamente simbólicos.

Sua pintura tem uma dignidade que aflora espontânea pelo competente uso da luz, luz por que se transmite o sentimento humano do artista, sua ternura, sua elegância e, como pintor, suas imperfeições e virtudes. Mas o que é a arte, indagava Mário Pedrosa, senão a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós?

Por isso, ao participar do vernissage com que Cesar Fiuza abriu a sua exposição pictórica nessa quarta-feira 6, ocorreram-me as ponderações de Emmanuel Levinas a propósito da arte como "Rosto", aquilo que nos leva, conquistados, a descobrir os mistérios e desafios, a fé e a angústia, o amor, as tensões, a felicidade e a infelicidade, o abismo do infinito que existe no Outro.

Há, como disse, posto que se trata de um pintor estreante, pequenos deslizes. O pincel se mostra algumas vezes claudicante, deixa-se ver uma saturação de tonalidades aos olhos do observador mais atento. Nada, contudo, que roube o brilho da composição, o senso de medida, o detalhe admirável no uso da cor e o lúdico geometrismo das formas, o equilíbrio de massas e volumes.

Tudo é beleza no abstracionismo de Cesar Fiuza. Há no interior de cada quadro a organização visual necessária e um admirável senso estético na distribuição dos elementos "narrativos" da pintura. Ritmos, modulações, cruzamento de cores, intersecções de planos, luz, peso, ritmo, forma, movimento, proporção.

Ganham as artes visuais do Ceará com a arte do reconhecido arquiteto que se fez pintor. Para encantar a todos.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Métodos da mulher autoritária

                                      Apesar de você, amanhã há de ser um novo dia! 

As cenas de tortura em presídios de Goiás, divulgadas através da imprensa essa semana, reeditam uma prática comum durante o Regime Militar implantado no Brasil com o golpe de 1964.

Ademais, a concluir pelo que afirma o próprio deputado e potencial candidato a presidente da República, constitui um dos pontos subliminares do programa de governo que Jair Bolsonaro professa abertamente desde há muito tempo.

É muito simples: o candidato que a direita e parte significativa da elite brasileira abraça como alternativa para os problemas do país, é favorável a que se arranquem unhas, apertem bicos de seios com alicate, dependurem-se pessoas em paus de arara e que se apliquem choques elétricos nas partes íntimas de presidiários, a exemplo do que se descobriu ser prática de rotina no estado de Goiás, governado pelo tucano Marconi Perillo.

É importante frisar que não são fatos isolados, pelos quais se possa responsabilizar um ou outro agente penitenciário. Não, trata-se de um procedimento corriqueiro. É acessar diferentes sites na Internet e constatar: os vídeos, gravados em pelo menos três unidades prisionais do estado (São Luís de Montes Belos, Formosa e Jataí), mostram cenas chocantes, aterradoras, a um tempo perversas e covardes de inúmeros agentes usando a força bruta,  "taser" e até armas de fogo para supliciar presos.

Num dos vídeos, o enquadramento dá a ver um agente com uma lista de condenados à prática hedionda, só conhecida no Brasil nos anos de chumbo, desde a Ditadura Militar. A câmera desliza numa panorâmica sinistra e o espectador depara-se no quadro com um detento suplicando que o matem: --- "O que eu fiz com vocês?"

O estômago embrulha ao pensar que porção considerável dos brasileiros (entre os quais sobressaem jovens ente 20 e 35 anos, negando o que se espera daqueles de quem se diz o "futuro da Nação"), manifeste o mórbido desejo de ver o Brasil nas mãos dessa gente, alheia ou indiferente ao que a história já registra de abominável adotado entre nós durante o governo militar.

Ah, os versos da epígrafe são de Chico Buarque e fazem parte de Apesar de Você, composta durante os anos de chumbo. Ameaçado de tortura, o artista foi indagado por agentes prisionais sobre o "você" da canção, ao que respondeu sarcasticamente: "É uma mulher muito autoritária!"