Matisse, o pintor francês, levou anos até reunir dinheiro para realizar um sonho: Comprar a tela Três Banhistas, de Cézanne. Nada de muito especial nesse quadro, pintado entre 1878 e 1882, de dimensões pequenas e nitidamente experimental. Mas, para Matisse, tratava-se de uma obra ímpar, por isso objeto de um sonho que lhe custaria realizar.
Perto de morrer, no entanto, o pintor decide doar o quadro à prefeitura de Paris. Queria tornar acessível aos amantes da arte do mundo inteiro a beleza envolvente e sóbria do autor de O Negro Cipião, Pastoral ou Idílio, Telhados Vermelhos, A Tentação de Santo Antônio, A Casa do Enforcado e tantas obras-primas da grande arte.
Durante quase quatro décadas, a tela de Cézanne permaneceu afixada a uma parede da casa dos Matisse, exercendo uma reconhecida influência sobre a vida da família e, principalmente, sobre a poética desse gênio do modernismo chamado Henri Matisse. Para ele, dizia o artista, voltara-se seu olhar ao longo de 37 anos, num misto de encantamento e gratidão.
Antes de entregar o quadro aos novos proprietários, Matisse fez um comentário que ficaria registrado em suas melhores biografias e, por certo, eternizado na História da Arte: --- "Nos trinta e sete anos que fiquei com esse quadro, vim a conhecê-lo razoavelmente bem, mas sem esgotá-lo".
Na vida dos homens, também, é assim. Levamos anos até conhecer, "razoavelmente", aqueles com os quais convivemos. Por isso, são comumente falhas as nossas conclusões, injustos os julgamentos. Quantas vezes vemos nos outros só defeitos, quantas vezes nos deixam seduzidos por eles as falsas impressões?
Esta a razão, estou convencido, por que se desfazem em sopro os relacionamentos, desmoronam as grandes amizades.
Como Matisse diante do quadro de Cézanne, é preciso pois que contemplemos aqueles com os quais convivemos com o máximo de cuidado e carinho, procurando descobrir neles a beleza, sóbria ou incisiva, antes que os defeitos e as imperfeições, de resto inerentes à própria condição humana.
Sobre Três Banhistas, faria Matisse outra declaração igualmente pungente: --- "Ele [o quadro] me proporcionou apoio moral em momentos críticos de minha trajetória como artista; dele extraí a minha fé e a minha perseverança."
Não era o valor material da tela, muito embora extremamente bem cotada em termos de mercado, que seduzira de forma tão impressionante o coração de Matisse, e o rigor estético por que sempre moveu suas avaliações. Havia na tela de Cézanne, aos olhos de Matisse, um segredo que só o imponderável é capaz de justificar. Havia, é certo, o uso estilizado do jogo cromático, um brilho inaudito do amarelo, um volume de tonalidades azuis e verdes que jamais um outro pintor fora capaz de compor. E isso, supostamente, poderá explicar a verdadeira relação de amor entre o homem e a arte.
Não é muito lembrar, no entanto, que o mesmo quadro que exerceu sobre Matisse tal sortilégio, tamanho feitiço, foi abominado por muitos e muitos, arvorados de críticos e conhecedores da arte dos quatro cantos do mundo.
Assim acontece com os homens. Os arrogantes que se abriam em gargalhadas diante de Três Banhistas, mutatis mutantis, agem como aqueles que se julgam donos da verdade no julgamento dos outros.
Tal qual o contemplador diante de um quadro, na convivência dos muitos anos, a exemplo do que ocorreu a Matisse, é preciso estar atento aos detalhes, às pequenas coisas que dão ao todo de cada um o seu real valor.
Como no mundo da arte, só o tempo é capaz de revelar as qualidades mais finas, os tons mais exatos, o equilíbrio com que se tornam imorredouras as grandes obras.
Assim também ocorre diante das amizades que podem ser eternas. Feliz Ano Novo!