Qualquer estudante de artes haverá de saber que nenhuma originalidade pura é possível. Picasso, o gênio da arte moderna, fez a propósito disso uma afirmação inquietante: --- "Os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam."
Não à toa, pois, é que se pode perceber muito de Cézanne, de Goya, de Velázquez em obras marcantes de sua trajetória. Não se trata de copiar, mas de invocar um traço, uma luz, uma composição, uma textura de que possa extrair a força pessoal do que mais tarde virá a ser "seu" estilo.
Com o cinema não é diferente, é ter um mínimo de bases teóricas para perceber que existe muito, por exemplo, de Carl Dreyer em Bergman, deste em Tarkóvski ou mesmo, pasmem, em Woody Allen, para quem o cineasta sueco foi a maior inspiração.
Digo isso a propósito de contestar um comentário que ouvi ontem de um cinéfilo sobre Extraordinário, em cartaz nos cinemas da cidade. "Nenhuma novidade", afirmava ele, como a tentar desmerecer o segundo filme de Stephen Chbosky pela clareza narrativa, como se a qualidade de uma obra estivesse limitada às excentricidades no uso da linguagem ou na abordagem novidadeira de um determinado tema.
Nesse sentido, não é preciso ir longe para reconhecer que se trata de um filme absolutamente "solar" em termos cinematográficos. O roteiro, a direção de atores, as estratégias narrativas sustentam-se em convenções cristalizadas pelo "cinemão". Mas o que é a linguagem senão um meio de se dizer alguma coisa sobre o mundo? Ver um filme, está nos bons manuais, é compreendê-lo sejam quais forem os procedimentos do que se convencionou chamar de narratividade.
Se o cinema contemporâneo não raramente explora mecanismos para "esconder" a história, como se a qualidade de um filme, repito, se prendesse à complexidade de sua concepção e à sofisticação no uso dos procedimentos formais com que se materializa enquanto construto artístico, são outros quinhentos. Um filme pode ser um grande filme em que pese a ausência de complicação dos meios adotados por seu realizador.
É o caso: Extraordinário conta uma história interessante, atual, e a discute com um nível de responsabilidade poucas vezes visto no cinema de hoje. Mas vai além disso, porque é capaz de encantar o espectador mantendo-o sob o controle de sua própria simplicidade, mesmo quando o ponto de vista da narração passa de uma personagem a outra, no que me parece ser o único expediente minimamente rebuscado de sua estrutura narrativa.
Baseado no livro homônimo de R. J. Palacio, o filme de Stephen Chbosky narra a história de um garoto "diferente" chamado Auggie Pulmann, cujo intérprete, Jacob Tremblay, já conquistara a admiração do grande público por sua comovente atuação em O Quarto de Jack. Neste, está ainda melhor.
Mas, por que "diferente"? Justifico-me.
Auggie é a criança cujo nascimento serve de abertura para o filme, quando a câmera enquadra sua mãe (Julia Roberts) em trabalho de parto e o espectador é tomado pelo estranhamento de ver a reação aflita do pai (Owen Wilson) e da enfermeira diante do recém-nascido.
Na sequência seguinte, após o uso convencional da elipse de tempo, quando Auggie Pulmann tem dez anos de idade, é que o espectador é informado de que o menino nascera com uma deformidade no rosto que resultará no eixo dramático do filme: a sua difícil trajetória desde o homeschooling ao ingresso na escola regular e o pesadelo do bullying na terrível convivência com os colegas ditos "normais".
O arco dramático do filme, no entanto, oscila do protagonista para personagens secundárias, a exemplo da irmã de Auggie, Via (Izabela Vidovic) e sua atormentada amiga Miranda (Danielle Russell), cujos conflitos, também densos do ponto de vista dramático, orbitam em torno do núcleo central desse belíssimo filme de Stephen Chbosky.
Por sua delicada excelência estética, pois, Extraordinário, na contramão do que professa uma certa crítica cinematográfica do país, vezeira histórica no preconceito contra tudo o que, em termos artísticos, é capaz de comover, tem nesse componente apenas um detalhe que, mais ainda, dá realce a sua beleza a um tempo simples e aprimorada. Imperdível.
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