sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Triste Brasil

Não me recordo o ano com exatidão, mas mantenho acesas as lembranças.

Membro fundador e primeiro presidente da União Iguatuense de Universitários (Unidus), participei do movimento que levou a Iguatu, para o que deveria ser um show memorável, Miúcha e João do Vale. Digo o que "deveria" porque, sob algum aspecto, o evento foi um fiasco: excedendo-se na bebida, o autor de Carcará sequer conseguia ficar em pé durante o espetáculo, cantando a maior parte do tempo sentado à beira do palco. Um vexame.

Desapontada, sem todavia perder a elegância jamais, Miúcha aceita o convite para um jantar num restaurante afastado da cidade, o BNB Clube, revelando-se, para além da extraordinária intérprete do cancioneiro popular brasileiro, uma conversadeira encantadora, dessas que costumam levar o interlocutor a querer varar a madrugada. E foi o que aconteceu.

Vinha dela a iniciativa de contar "causos" nos quais estivera envolvida em tempos inesquecíveis da MPB, em nenhum momento insinuando-se incomodada com a curiosidade dos presentes. Antes pelo contrário: contava-os com entusiasmo, como se, ao invés de a anônimos, dirigisse a conversa impagável a velhos amigos.

Ao final de cada história, os dentes chamativamente alvos à mostra, abria-se em gargalhadas sonoras e contagiantes. Uma noite inesquecível ao lado da melhor intérprete de Maninha: "Se lembra da fogueira / se lembra dos balões / se lembra dos luares do sertão".

"O Vinicius [de Moraes], que frequentava a nossa casa no Pacaembu, sempre dizia que o Chico [Buarque] era um mentiroso, pois nunca houvera jaqueira no quintal", dizia-nos, referindo-se ao verso "se lembra da jaqueira", da referida canção, um dos seus maiores sucessos, talvez só superado por Samba do Avião, de Antônio Carlos Jobim.

Morta nessa quinta-feira 27, aos 81 anos, Miúcha deixa inconsolável uma legião de fãs. Com uma voz "pequena" para os padrões da maioria das cantoras mais prestigiadas de sua geração (início dos anos 70), Heloísa Buarque de Holanda notabilizou-se como uma intérprete insuperável, compensando com uma fina identificação com aquilo que cantava, seus limites vocais: "Minha alma canta / Vejo o Rio de Janeiro / Estou morrendo de saudade / Rio teu mar, praias sem fim / Rio você foi feito pra mim".

Filha do historiador Sérgio Buarque de Holanda, e irmã de Chico, Cristina e Ana Buarque de Holanda, também cantoras, Miúcha foi casada com João Gilberto e é mãe de Bebel Gilberto, com quem dividiria, ao lado do então marido, um dos momentos áureos de sua carreira, o belíssimo álbum com o saxofonista americano de jazz Stan Getz (1927-1991). Para não falar de Rosa amarela (1997), Miúcha canta Vinicius & Vinicius (2003) e Outros sonhos (2007). No desfecho de um ano profundamente conturbado, o Brasil perde uma grande intérprete e uma pessoa humana luminosa.     

***

Assim, eis que termina 2018. Um ano marcado por grandes contradições, algumas das quais repercutem mundo afora de modo a depor contra o Brasil e colocar por terra a imagem do país como uma democracia sólida. Muitas de nossas principais conquistas no terreno dos direitos humanos tombam ao peso do retrocesso que já é uma realidade. Sob a égide da hipocrisia e da desfaçatez, assumirá os destinos da nação a partir de primeiro de janeiro o novo presidente, as mãos indisfarçavelmente sujas pela prática da corrupção que prometeu combater. O pior tipo de autoritarismo, o autoritarismo legitimado pelas urnas, ocupando as páginas dos principais jornais. Triste Brasil.

 

 

 

   

 


 


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sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

À cidade: quase análise

Só há poucos dias pude ler o festejadíssimo À Cidade, livro-poema com que o escritor cearense Maílson Furtado Viana arrebatou o Jabuti de Livro do Ano 2018.

Transitando entre estilos diferentes, como a revelar sua independência em relação aos modelos já cristalizados, mesmo quando dá a ver a influência do Ferreira Gullar de A luta corporal e de O Poema sujo, por exemplo, Furtado faz sua primeira aparição, em nível nacional, como um poeta grandioso ao retratar o cotidiano de sua pequena Varjota, no interior do estado do Ceará, com suas banalidades carregadas de poesia que só aos olhos do artista sensível assume a forma de arte, e arte da melhor qualidade.

Nesse sentido, como a inverter a pegada dos realizadores da Nouvelle Vague francesa, a escrever com a câmera, Furtado como que filma com palavras, pois que é notória a vocação cinematográfica do livro em toda a sua extensão: "[...] tudo sai / os meninos / os cachorros / as pessoas / os mosquitos / as casas não".

Há, na economia de meios, a construção de imagens que vão tecendo o quadro a partir de elementos os mais bizarros, num ritmo suave e preciso que faz lembrar um travelling à Agnès Varda.

O poema, pois, agrada, desde o primeiro contato, pelo que apresenta no âmbito da imagem propriamente dita (objeto de visualização), não a imagem enquanto metáfora, tão própria da poesia, mas a percepção visual de uma imagem estabelecida dentro de determinados limites.

Pode-se, assim, falar de enquadramento, uma vez que a unidade estrutural do poema é fruto de uma escolha visual pontuada pelo deslocamento do olhar do eu-lírico como o de um operador de câmera. A sua matriz, portanto, é visual, ao que se soma a sonoridade dos versos como a reproduzir os ruídos da vida vidinha do interior na proximidade do anoitecer: "[...] a noite caminha / e gritos de pais chatos / gritam / pra voltarem pra casa / o esconde se acaba / se acabam as paqueras / as brincadeiras / se acabam".

Com isso, o poeta agora empresta à imagem o fundo sonoro que lhe dá a força de uma sequência fílmica, como a ter em mente a perfeita compreensão de que poesia e cinema são artes do tempo, e não do espaço, como quiseram os concretistas. É tímida, neste aspecto, pode-se afirmar, a presença de bases estilísticas que denunciem relação direta com o movimento de 1956, muito embora, aqui e ali, perceba-se algo como a espacialização ou geometrização do texto, a exemplo do que faz, à altura da página 15, com o verso: "[...] é novembro / e folhas enfeitam o chão / depois de seu ballet

                                                    n

                                                       o

                                                           ar

                                              outras brotam

                                              outras

                                                        caem".

Ou nos versos compostos, à página 24, em que explora a geometrização do texto de modo a sugerir o intimismo de um familiar próximo: "[...] como meu trisavô vive

                                      d   ntro

                                         e

                                       d le"

Injusto, impróprio quando menos, é apontar sob este aspecto para o uso de procedimentos ditos ortodoxamente concretos, como mais de uma vez tenho lido acerca do livro-poema de Maílson Furtado  ---  e a mim mesmo me pareceu à primeira leitura.

Ledo engano. Aliterações, assonâncias, ênfase na sonoridade do léxico empregado na feitura do poema, assim como, em certa medida, a ocupação do espaço físico da folha de papel (e da tela do computador hoje em dia), são comuns à própria poesia, recursos legítimos e incontornáveis de uma fazer artístico que se pauta, acima de tudo, pela musicalidade. Também os simbolistas, sobretudo eles, foram particularmente empenhados em tirar música da linguagem poética, e seria igualmente inadequado identificar em À cidade traços assumidamente simbolistas ou (neo)concretos, ainda que se percebam, aqui e além, características de um e outro no belíssimo texto de Maílson Furtado.

Poesia atemporal, livre e muito maior que a tola necessidade de classificação formal, À cidade sobressai pela força da percepção fenomenológica que é mesmo o esteio em que se sustenta este poema essencialmente visual, sem abandonar jamais, claro, um aguçado senso de relação entre os elementos semânticos e fonéticos que lhe dão uma vitalidade estética absolutamente louvável.

Em termos gerais, em face da exiguidade de espaço da coluna, se, no poema, é inquestionável o "perfume" neoconcreto a que me referi (e tem sido um rótulo precipitadamente colado ao poeta), valho-me de uma visada recorrente entre os concretistas para dizer, consciente de que se possa julgar isto uma mera subjetivação, que se trata de um poema de sintaxe mais visual que verbal. Mais importante, no entanto, é o fato de estarmos diante de uma autêntica obra de arte literária que faz justiça ao prestígio repentinamente conquistado por Maílson Furtado.

 

 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Cinismo e rebolado

Em termos de cinismo, matéria em que o Brasil vai confirmando ser inelutável, pelo menos em termos políticos, nada que se possa comparar à declaração do futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, acerca do envolvimento em práticas de caixa dois do futuro Chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni: --- "Ele já reconheceu o erro e se desculpou. O assunto é página virada."

O pior é que o argumento, em que pese caracterizar o mais deslavado cabotinismo, vai ocupando espaço no discurso "oficial" como um lugar-comum. Está no Estadão de hoje: "Valor "irrisório" isenta Bolsonaro em caso de assessor, diz general Heleno". Trata-se do general da reserva e futuro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do próximo governo, Augusto Heleno Ribeiro Pereira, minimizando a baita repercussão que vem ganhando o relatório produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre as transferências de recursos a assessores e ex-assessores de deputados no Rio de Janeiro, entre eles o deputado e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL), um dos "garotos" do presidente da República eleito.

No caso de Flávio Bolsonaro, o tal assessor é o ex-motorista do parlamentar, Fabrício de Queiroz, cujo nome aparece em movimentações financeiras irregulares na ordem de R$ 1,2 milhão entre 2016 e 2017, incluindo-se no montante o "irrisório" cheque de R$ 24 mil pago à futura primeira-dama, Michele Bolsonaro. Sobre o malfeito, bem na linha das falas citadas acima, é hilária a afirmação do próprio presidente eleito: --- "Dói no coração? Dói.", como a reconhecer o descompasso entre o discurso moralista que professou em campanha e o que se vê nem mesmo tem início o seu governo. A afirmação consta de uma transmissão ao vivo de Jair Bolsonaro através do Facebook.

Como a balizar o cinismo a que me refiro, em sendo procedente o que apontam os números da primeira pesquisa sobre o próximo presidente, cravados 75% de aprovação às medidas até aqui adotadas (indicação de ministros, extinção de ministérios, redistribuição de poderes e criação de novas pastas), os brasileiros, em sua expressiva maioria, estão satisfeitos com o que se anuncia. Pelo menos na perspectiva dos donos do dinheiro, é óbvio, os números apenas dão suporte ao que se materializa como a mais vergonhosa realidade: Garantindo os meus privilégios e fazendo crescer o meu império financeiro, "foda-se!".

O triste é saber da outra face dessa realidade: Desemprego crescente, queda do poder aquisitivo dos mais pobres, saúde e educação no rumo do desastre etc. Sem esquecer, claro, aquela fatia do eleitorado que rebolava nas praças Brasil afora, lembra?, conhecendo de política o que cão conhece de Igreja: nada! Essa vai comer o pão que o diabo amassou.

Essa gente morre e não aprende. Lembram dos adesivos "Não tenho culpa, votei no Aécio"? Pois é, o mineirinho está de volta às manchetes de jornais. Dessa vez, segundo a Polícia Federal (PF), o senador e deputado eleito é suspeito de ter arrebanhado ilegalmente R$ 128 milhões do grupo J&F, dinheiro sujo com que comprou o apoio de partidos políticos em 2014. Aécio Neves, o mesmo cujas palavras ocupavam os mais prestigiados espaços do jornalismo brasileiro para acusar Dilma Rousseff e o PT. Sem meias-palavras: Nesta terça 12, agentes da Polícia Federal reviraram apartamentos de Aécio Neves, no Rio e em Minas, em busca de documentos que confirmem o que, para ela, é quase um fato: Aécio terá recebido R$ 128 milhões da JBS para tentar garantir a sua eleição como presidente em 2014. Rebola Brasil!

 

   

 

   


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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Essa mulher imensa

Preconceito inconsciente (ou não!), leva as pessoas a afirmar que por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. Ocorre-me pensar nisso mal me chega a triste notícia da morte de Teonila Araújo, quando, o coração em prantos, passo em revista a convivência de muitos anos que tive o prazer de travar com essa família admirável que construiu ao lado do marido, Raimundo Felipe. Ao lado, rigorosamente ao lado!

Aliás, é tarefa difícil trazer à memória, agora que nos deixa, a figura de um sem o outro.

Teonila e  Raimundo Felipe eram, se diz tanto isso, como carne e osso, indissociáveis em sua beleza enquanto casal. Beleza e dignidade; beleza e elegância no sentido mais essencial da palavra. Beleza e generosidade em forma de gente, e simplicidade, e bondade humana, e todos os bons substantivos que se possa dizer sobre pessoas como foram, juntos, numa vida longa e saudável que souberam, exemplarmente bem, dividir como um casal. E ser exemplo.

Tive, como disse, o privilégio de conviver estreitamente com a família de Teonila e Raimundo Felipe. De ter, por isso, como amigos e como irmãos, pelo sem-fim dos tempos, gente da qualidade humana de Ana, Tadeu, Miguel, Tereza, Rejane, Dione e Júnior.

E quando me refiro à qualidade humana desses irmãos, que é mesmo a opinião unânime daqueles que os conhecem de perto, faço-o para evidenciar que está nisso o resultado do trabalho de pais-educadores que foram à perfeição. Teonila, então... Que firmeza de caráter possuía essa mulher, que retidão de princípios, que serenidade era capaz de demonstrar nas horas mais difíceis, que leveza de espírito sabia expressar, que doçura vinha do seu coração para festejar a alegria da paz e do amor entre familiares e amigos ao final de cada ano.

Fui, permitam-me ser redundante, de dentro da casa de Teonila. Guardo dessa convivência lembranças tão boas e tão marcantes, que não encontro, profissional da palavra, força de linguagem que possa dizer com exatidão o que quero, o que gostaria, o que tinha por obrigação dizer... Que Teonila me perdoe por isso.  

Fico, insisto, muitíssimo triste por saber que nunca mais os verei de novo, ali naquela calçada, em suas cadeiras de balanço, esperando, como rei e rainha, a noite chegar. A paz dos bons e dos justos.

Que Deus dê a Raimundo Felipe, na dignidade dos seus mais de noventa anos, a força de que vai precisar para suportar a saudade, a ausência de Teonila, essa mulher "imensa" que acabou de partir.  

 

 


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terça-feira, 27 de novembro de 2018

A morte do esteta

Amigo me telefona para falar sobre Bernardo Bertolucci, morto nessa segunda-feira 26, aos 77 anos. Ao final, faz a provocação:  ---  "Espero a crônica!", diz-me, sabedor de que no cinema é a beleza da linguagem o que mais me seduz. E Bertolucci era, acima de tudo, um esteta. A perfeição do quadro e da luz, a suavidade dos movimentos de câmera, a composição esmerada da imagem, que nem um pintor da renascença, davam aos filmes de Bertolucci uma sofisticação estética de encher os olhos, e tocar a alma como muitos poucos foram capazes de fazer.

Desligo o celular e me vem à tela da retina uma sequência de O Último Imperador, 1987, que considero uma das coisas mais lindas de sua filmografia  ---  a lágrima, discreta, já escorrendo pela maçã do rosto: Numa praça imensa da Cidade Proibida, Pu Yi, o garoto que protagoniza o filme, corre em busca de um balão (amarelo?) e a câmera de Bertolucci o acompanha num travelling carregado de poesia e cor.

Para Bernardo Bertolucci, as estratégias narrativas eram tão ou mais importantes que o significado do filme, no que, aliás, destacou-se exemplarmente bem. A prova disso é que muitas vezes encontrou na literatura o esteio de filmes memoráveis, como em Antes da Revolução, de 1962, plasmado no romance Cartuxa de Parma, de Stendhal, verdadeira obra-prima sobre as revoluções. Ou, um pouco mais tarde, como faria em O Conformista, de 1970, uma adaptação bem sucedida do livro de Alberto Moravia, Jean-Louis Trintignant no papel principal, soberbo, como sempre.

Que dizer, então, de películas apaixonantes como La Luna, 1979, o mais "freudiano" de seus filmes, todos eles perpassados de motivações psicanalíticas, no caso, sobre a relação filho e mãe? Do épico Novecento  (1900, no Brasil), de 1976, sobre a utopia em torno de um mundo melhor e mais humano? De O Céu Que nos Protege, 1990, sobre o antagonismo entre culturas?  Que dizer, insisto, de O Último Tango de Paris, 1973, um dos mais belos filmes da história do cinema, tão equivocadamente recebido por conta de uma "simples" cena de sexo? Sim, porque nele, em que pese o erotismo da cena referida, a famigerada cena da manteiga, o que se discute é muito mais que isso: é a angústia de um homem para o qual a vida deixou de ter sentido, e o mundo é apenas um vazio imenso.

Filho de poeta (Atílio Bertolucci), e crítico incansável do fascismo italiano, contra o qual fez de sua arte um instrumento de luta, Bernardo Bertolucci fez seus últimos filmes preso a uma cadeira de rodas, vítima de uma cirurgia de coluna malsucedida. Ironicamente, a propósito, disse durante uma entrevista:  ---  "Sempre gostei tanto de travelling, nunca imaginei que terminaria a vida num travelling permanente, vendo o mundo da perspectiva do deslocamento dessa cadeira". A voz incontida do esteta.

O fato é que o cinema perde com a morte de Bernardo Bertolucci um dos seus mestres mais adorados. Fica a beleza de sua arte, a que podemos, felizmente, nos entregar, vez e outra, sempre que a vida, como está em Nietzsche, pretenda nos matar de tanta realidade.

 

  

 

 

 

  

 

 

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

As mil vidas de Jean-Paul

A palavra escrita não para de surpreender, o que é maravilhoso num mundo dominado pela imagem. Explico-me: "garimpando" estantes da livraria Cultura, no exercício diário do vício, eis que deparo com um livro intrigante  ---  não por outra razão: do autor, nada sabia além do fato de que se trata de um ator importante, e ícone da Nouvelle Vague francesa, uma estética cinematográfica que "amo de paixão", como diria Carol, minha filha. Como escritor, absolutamente nada conhecia de sua autoria. Eis o porquê da surpresa. Refiro-me Jean-Paul Belmondo, cuja autobiografia chega às lojas de livros brasileiras com um título curioso: "Mil vidas valem mais do que uma".

Tomo nas mãos um exemplar e, ali mesmo, leio com sofreguidão essa pérola sobre uma vida muito mais rica do que, cinéfilo contumaz, supunha eu até agora.

Delícia de livro este em que o astro francês desfia uma história pessoal marcada por experiências emocionantes, mesmo quando a narrativa se dedica às coisas mais banais: a infância em Neuilly-sur-Seine, onde nasceu em 1933; a convivência inesquecível com os horrores da guerra; a admiração pela mãe; o ateliê do pai, escultor, e os muitos amores. É que o texto de Belmondo, vazado num estilo leve e descontraído, como é raro no gênero, leva-nos a percorrer os mais inusitados caminhos, numa prática de leitura que a um tempo ensina e seduz.

Belmondo, sabe-se, além de protagonizar o filme Acossado, 1960, de Jean-Luc Godard, um dos marcos do cinema moderno, atuou em mais de oitenta filmes, sem falar nas dezenas de peças teatrais encantando plateias do mundo inteiro com o perfil "feio charmoso" que levou a cantora Édith Piaf a fazer a famosa revelação:  ---  "Saio como [Alain] Delon e volto com Belmondo".

O livro vai, assim, de página em página, proporcionando-nos um passeio atemporal pela Europa e pela história do cinema moderno. Intitulado "Então, Godard", o capítulo em que se reporta ao filme que o consagrou, contracenando com a lindíssima Jean Seberg, é uma aula de construção narrativa. É que Belmondo lança mão de uma forma curiosa de expor o seu pensamento sobre a personalidade controversa do diretor francês, no que surpreende com um depoimento originalíssimo que vai da repulsa ao mau caráter à verdadeira adoração ao gênio do cinema. O discurso desliza de um olhar a outro com a leveza de um mestre da escrita, sem sobressaltos ou declarações minimamente antipáticas tão comuns quando se é levado a julgar alguém. É sublime o estilo, na sua simplicidade quase franciscana.

As páginas em que narra a dura realidade da Segunda Guerra constituem um registro invulgar sobre a insanidade do combate armado entre homens: Jean-Paul, então com onze anos, e seus amigos de mesma idade, auxiliam um padre a recolher cadáveres de aviadores "abatidos" nos céus de Clairefontaine, cidade onde vivia com os pais. Tudo, reafirmo, com um domínio de linguagem que impressiona pela força de uma narrativa digna de nota mesmo se estivéssemos diante de um escritor consagrado.

Nomes célebres do cinema, das artes plásticas, do teatro, da literatura, protagonizam histórias impagáveis vividas com Jean-Paul Belmondo em diferentes países. Nesse sentido, aliás, é que o livro ganha fôlego enquanto registro do que houve de mais significativo na Europa na segunda metade do século XX. Aí estão Michelangelo Antonioni, Woody Allen, Ursula Andress, Jean Anouilh, Claude Chabrol, François Truffaut, Laura Antonelli, Alain Resnais e Gérard Depardieu, para citar apenas algumas celebridades que povoam essa mil vidas de Jean-Paul Pelmondo.

Mas o livro, diga-se por fim, é muito, muito mais que um depoimento de um astro do cinema e do teatro sobre seu tempo. Em muitas passagens, deparamos com o homem consciente do seu papel, politizado, portador de mensagens extremamente atuais sobre a impossibilidade de nos colocarmos neutros diante das contradições de um mundo submetido à lógica do capital, em que se professa, de forma desavergonhada, a neutralidade impossível. Referindo-se às corporações militares, por exemplo, à época da Segunda Guerra, diz sobre um dos chefes: "Usa a braçadeira das forças de Resistência quando precisa e tira quando se sente constrangido". 

E arremata, com uma precisão cirúrgica: "Quando a batalha surge, convém escolher de que lado lutar. Mas, para sobreviver, há os que fazem questão de não ter opinião, de esquecer de escolher um lado. Querem a paz a qualquer custo, até mesmo às custas da própria honra. No final do conflito, não pensarão duas vezes antes de marchar com os norte-americanos [...]. A duplicidade vem acompanhada de certa audácia".

Que bela surpresa estas Mil vidas... de Jean-Paul Belmondo.

 

 

 

 


 

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Processo de Kafka

Como uma personagem dos pesadelos de Kafka, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva percorreu mais uma vez, esta semana, os corredores do Tribunal. Os que conhecem a obra do escritor tcheco, nascido em Praga em 1883, sabem do que estou falando. Por dever de ofício, no entanto, tentarei ser claro para os que nunca leram obras como A Sentença, Na Colônia Penal e, principalmente, O Processo, algumas das páginas mais luminosas sobre a injustiça entre os homens.

 

Os dois primeiros, ambos de 1916, tratam, respectivamente, da condenação sem causa e do cumprimento injusto da pena estabelecida pelo Tribunal. Mas é o terceiro que se pode considerar a obra-prima de Franz Kafka.

 

O romance narra o martírio do bancário Josef K., retirado do convívio social em função de um processo marcado por contradições e absolutamente inconsistente do ponto de vista legal. Preso, portanto, sem provas que o justifiquem, K. é julgado por motivos que ignora e, finalmente, executado. O livro é tomado como referência em cursos de Direito, e rendeu, de que me lembro, duas obras-primas do cinema.

 

No estilo enxuto e cru que é mesmo uma de suas marcas, o texto de Kafka começa assim: "Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal, foi detido certa manhã. [...] Imediatamente bateram em sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto, que emprestavam à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviriam todas aquelas coisas."

 

A partir daí, sustentando-se em delações vagas, imprecisas, invariavelmente marcadas por contradições, cuja verdadeira razão de ser nem mesmo ao leitor é dado conhecer em profundidade, posto que o livro constitui uma metáfora do desespero humano e sua impotência ante a injustiça inelutável de que é vítima, tem início o processo que serve de título à obra atemporal de Franz Kafka.

 

Lembrei do livro ao ver, ontem, na TV, as imagens do interrogatório de Lula. Acompanhei a sua angústia, a sua impotência diante do discurso autoritário da juíza Gabriela Hardt,  como a cumprir, ela mesma, seu papel na farsa de um julgamento para o qual, desde muito cedo, todas as cartas estão marcadas. Não era o discurso de Hardt um "discurso de autoridade", para me valer da teoria de Mikhail Bakhtin, aquele que se abre para o contraditório e para a interpretação criadora de outros contextos, nas palavras felizes do pensador russo. O discurso da juíza Grabriela Hardt era o "discurso autoritário", fechado, unilateral, vinculado a um interesse externo, ao dogma político dominante, como a impor nossa relação ideológica com o mundo:  ---  "Isso é um interrogatório e se o senhor continuar nesse tom comigo, a gente vai ter problema!" 

 

No parágrafo com que desfecha seu livro sempre atual, Kafka descreve os derradeiros instantes de Josef K., o pescoço entregue à impiedade de seus algozes: "... as mãos de um dos senhores seguravam a garganta de K., enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois a revolvia ali duas vezes. Com os olhos vidrados conseguiu K. ainda ver como os senhores, mantendo-se muito próximos diante de seu rosto e apoiando-se face a face, observavam o desenlace. Disse:  

--- "Como um cachorro!  ---  era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo".

 

As palavras de Lula, ao final do depoimento, ontem, lembraram-me as de Josef K.:  ---  "Eu me considero um troféu que a Lava Jato precisava entregar!" 

 

 

 

 

 

 

 

 


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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O presidente louco

Golyádkin começou a experimentar duas sensações: uma, de uma felicidade fora do comum, a outra, a de que não conseguia mais se aguentar nas pernas. (Dostoiévski, O Duplo)

 

É bom "já ir se acostumando", mas a sensação de desordem que a chamada equipe de transição do presidente eleito, o próprio à frente,  vem causando, é inacreditável. A habilidade no trato de questões importantes, se é lícita a comparação, é a mesma de um macaco embriagado numa loja de cristais. 

 

A menos de dois meses da posse, a dificuldade de Bolsonaro para lidar com a linguagem escancara o perfil do que será seu governo: um diz/desdiz, um faz/desfaz que tendem a colocar o país numa situação de indefinição perante o mundo, cujos prejuízos serão impensáveis nos mais diferentes setores.

 

Primeiro afirma que acabará o Ministério do Trabalho, depois aponta para uma divisão da pasta em três frentes, mas não diz quais; fala que fundirá num só os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, mas já se curvou à grita de ambientalistas e até mesmo dos grandes empresários do setor de agronegócios, receosos da repercussão indesejável que a medida teria lá fora. 

 

Anteontem, em entrevista, afirmou que o Ministério da Educação absorverá o Ministério da Cultura, mas, agora, acena com a possibilidade de que ambos sejam incorporados à Ciência e Tecnologia...

 

Enquanto isso, o todo-poderoso Paulo Guedes mal recomenda uma "prensa" no Congresso, tem de engolir a aprovação do aumento do Judiciário com uma projeção de gastos em torno dos 5 bilhões a mais a partir do próximo ano. Engraçado, não fosse um desastre.

 

No início da semana, o presidente eleito decidiu que o número de ministérios seria reduzido para 15, mas, hoje, sexta-feira 9, admite que serão 18 pastas; e o famigerado MDIC (Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior) pertencerá mesmo à Economia, como anunciado antes? Tente-se compreender...

 

Em tempo: a CGU, que há cinco dias faria parte do superministério da Justiça confiado a Sergio Moro, agora terá status de ministério e "seguirá com vida própria" segundo o próprio presidente eleito. É pouco? Pois veja, o tão festejado ministro da Defesa, General Heleno, desce nesta quarta um degrau, pois deverá assumir o Gabinete de Segurança Institucional.

 

O mais grave é que, sem precedentes na História, o Brasil abre o flanco para o olhar ameaçador do terrorismo muçulmano com o desnecessário anúncio de que transferiria a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, o que nada traz de benéfico para o país e tão-somente constitui uma demonstração oficial de que se alinhará mesmo aos interesses norte-americanos, custe o que custar. Mas, tranquilizemo-nos, o assunto, diz agora Bolsonaro, não está resolvido.

 

Para além de dar provas irrecusáveis de que Jair Bolsonaro é mesmo despreparado para dirigir o país, a bagunça faz-me lembrar daquele personagem inesquecível de Dostoiévski no romance O Duplo. Mergulhado em dilemas, um pobre homem descobre que a realidade é bem diferente do sonho, e que a imagem que desenhou de si mesmo não tem correspondente nas suas possibilidades humanas.

 

No romance, Golyádkin (é como se chama a personagem) tem duas vozes, a dele e do seu duplo... razão por que se vê dividido entre a fantasia e a realidade, a ambição e a humildade, os desejos e as frustrações. O resultado disso, claro, pode ser a loucura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

   

 

     

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

PREFÁCIO - ENSAIOS SOBRE O CINEMA MODERNO

Tenho pela produção acadêmica de Régis Frota um profundo respeito. Mais que isso: nutro pelo estudioso de cinema que é uma admiração que dedico, subjetivação à parte, aos grandes nomes brasileiros no campo do audiovisual  ---  gente "grande", a exemplo de Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, Amir Labaki, Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany. Para não falar dos mais antigos, como Pedro Lima, Moniz Vianna, Rubem Biáfora, Hugo Barcelos ou Francisco Luiz de Almeida Salles. É visitar (ou revisitar) a sua vasta produção para entender que não vai, nisso,  nenhum exagero.

 

Estudioso atuante em diferentes áreas, e historiador de cinema dotado de sólida erudição, Régis Frota vem contribuindo, há pelo menos 40 anos, para o que existe de mais significativo entre nós sobre a Sétima Arte. Agora, pela segunda vez em menos de doze meses, vem a público com um novo livro  ---  para enriquecer o debate e dar relevo ao que se publicou no Brasil sobre cinema nos últimos tempos.

 

Desta vez com uma coletânea de artigos em que esmiúça, com um domínio de linguagem notável, questões importantes acerca do cinema moderno. Debruça-se, assim, com a sensibilidade e o rigor analítico de sempre, sobre a filmografia de cineastas incontornáveis, ninguém menos que Ingmar Bergman, Krzystof Kieslowski e Andrei Tarkovski, para que se tenha uma noção do que é este pequeno-grande livro que o leitor tem em mãos.

 

Para aqueles que já conhecem de perto a obra de Régis Frota (e tenho o orgulho de estar entre esses) Ensaios Sobre o Cinema Moderno cristaliza uma nova perspectiva de análise, posto que o autor, habitualmente situado entre os estudiosos de tendência "crítico-histórica", envereda, agora mais, pelo viés "formalista" que estava mesmo a merecer dele maior atenção. Não que Régis Frota não fosse, desde sempre, possuidor de uma notável acuidade analítica sob qualquer aspecto em que o objeto de exame seja o cinema. Pelo contrário, pois Régis Frota é, entre nós, daqueles que conhecem melhor o cinema no antes, no durante e no depois da realização de um filme, mas talvez por pertencer a uma escola demasiado comprometida com a defesa do cinema nacional e latino-americano em nível internacional, mais pelo engajamento político que o fez admirar tanto o Cinema Novo e o desbravador Glauber Rocha em particular (e nisso é dos maiores especialistas que temos) e menos pelas qualidades rigorosamente estéticas dos mesmos, diga-se em tempo.

 

Nos textos aqui reunidos, sem descuidar do conteúdo dos filmes examinados, que é mesmo o esteio que sustenta o estudo sob diferentes aspectos  ---  filosóficos, psicanalíticos, sociais etc.  ---, Régis Frota mostra-se mais atento aos procedimentos formais de cada quadro, cena ou sequência para os quais se volta com a competência de um profundo conhecedor da matéria. Quando examina a filmografia de Andrei Tarkovski, por exemplo, Régis Frota mantém-se em sintonia com os fundamentos estéticos professados pelo cineasta russo no belíssimo Esculpir o Tempo, como ele, supostamente, consciente de que "a sua filmografia poderia conferir-lhe aquela intensidade estética de sentimentos que transformaria a ideia da história numa verdade confirmada pela vida".

 

Não à toa, assim, é que intitula Andrei Tarkovski e o Cinema do Interior Humano aquele que considero o mais interessante capítulo do livro, pela contribuição que dá para uma compreensão possível da difícil filmografia do cineasta russo, marcada, é indispensável saber, por uma invariável tensão de cunho dostoievskiano dentro da qual se movimentam personagens "exteriormente estáticos e interiormente cheios da energia de uma paixão avassaladora", segundo palavras do próprio realizador russo.

 

É relevante dizer que, em dia com as mais recentes contribuições da filosofia para o campo da exegese cinematográfica, tanto em relação a Tarkovski quanto em relação a Kieslovski, Régis Frota dialoga, ainda, com o pensamento do esloveno Slavoj Zizek (sem esquecer o clássico estudo de Walter Benjamin sobre a Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica) e equilibra-se, com apreciável segurança, sobre o delicado fio que separa, na perspectiva de suas filmografias, os componentes psicanalíticos, religosos e marxistas.

 

É claro que o livro de Régis Frota, assim, contando nove pequenos capítulos, não tem a pretensão de cobrir um arco já por demais estendido do que se convencionou chamar de cinema moderno, mesmo considerando-se que essa modernidade se deu na Sétima Arte muito depois do que ocorrera às outras linguagens, por volta de 1910, a exemplo das Artes Plásticas. Tampouco se pode fechar os olhos para o fato de que na Alemanha e na antiga União Soviética, com o expressionismo e o construtivismo, respectivamente, é onde estão as raízes dessa modernidade, elevados em expressiva porção pela presença marcante de grandes diretores na Itália e nos Estados Unidos, onde pontuam, com destaque, nomes importantes como os de Rossellini e Welles com suas inapagáveis contribuições para o repensar da narrativa clássica e a inserção definitiva da cinematografia como encenação da realidade do homem e do mundo. O olhar de Régis Frota, nesse sentido, não se volta para esse tipo de historicismo já muito remoído, e seu enquadramento é despretensioso e consciente de que este papel já fora desenvolvido, por ele mesmo, com rigor, em outras de suas muitas publicações: artigos de jornais, revistas e livros etc., onde examina à perfeição, por exemplo, o cinema francês, nomeadamente a partir do final dos anos 1950, com a nouvelle vague, uma de suas paixões.

 

Por último, é importante ressaltar o fato de que Régis Frota dedique, neste livro, espaço para o cinema brasileiro com o registro oportuno do percurso feito por Nelson Pereira dos Santos, bem como para o cinema chileno contemporâneo na figura do extraordinário Sebastián Lelio. E o que dizer de uma abordagem em que se confrontam nomes como os de Patrício Guzman e Eduardo Coutinho?

 

Não é pouco, admita-se, para um trabalho que o próprio autor considera assumidamente "apressado", quero crer, como a nos advertir de que novos estudos se seguirão a este Ensaios Sobre o Cinema Moderno. Um livro para se ler com atenção.

 

Álder Teixeira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, é autor, entre outros, do livro 'Bergman, Estratégias Narrativas'. 

 

         

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

      


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Em pequenas doses

Em todo caso, precisamos lembrar que quem deve responder primeiramente pela vitória do mal no mundo não são seus executores cegos, mas os servidores do bem, que são espiritualmente capazes de ver. (F. Stepun)

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É conhecido o provérbio latino atribuído a Plínio, o Grande: "In vino, veritas", ou seja, "no vinho, a verdade". Defendo que também o voto revela o homem. Assim foi.

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Pouco tempo se passou, e nós mesmos nos curvamos sob o seu fardo, porque ninguém nos ensinou o que era a liberdade. Só nos ensinaram a morrer pela liberdade. (Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura 2015).

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Para quem defendeu a isenção do juiz Sergio Moro já soa mal o seu encontro com Bolsonaro, nesta quinta-feira, quando deverá confirmar seus superpoderes de novo ministro da Justiça. Segundo Mourão, o vice do presidente eleito, o convite se deu antes da eleição. Sim, entendi.

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A propósito, está na edição de quinta-feira da Folha de S. Paulo, juízes federais, dirigentes de associações de magistrados e ministros do Supremo avaliam que, ainda que Sergio Moro rejeite o convite para a superpasta da Justiça de Jair Bolsonaro, ele já meteu os pés pelas mãos.

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De Marina Silva, sobre a proposta de fusão dos Ministérios da Agricultura e Meio Ambiente: --- "Você submete um ministério com a função de fiscalizar ao setor que será fiscalizado". Em metáfora grosseira, é como se você confiasse aos macacos cuidar do bananal.

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"Freire, sim, Frota, não". A frase, empunhada por estudantes ontem, no Congresso Nacional, referia-se ao educador Paulo Freire, nome internacionalmente respeitado como notável educador que foi, e Alexandre Frota, o ator de filmes pornô, eleito deputado pelo PSL, respectivamente.

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A única força legitimada para invadir as universidades é a das ideias livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia. (Cármen Lúcia, ministra do STF)

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"A guinada do juiz", é como se intitula o editorial do jornal Folha de S. Paulo, desta quinta-feira. Ao se aproximar do novo governo, Sergio Moro perde a isenção necessária para seguir à frente da Lava Jato e mina esforços de combate à corrupção, diz o lide (em inglês: lead), como se chama, no jornalismo, o primeiro parágrafo posto em destaque.

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Há dias, disse que a lua de mel dos eleitores com o presidente eleito terminaria assim que ele assumisse o mandato. Estava errada. Nem bem o casamento foi consumado, os desentendimentos começaram. (Mariliz Pereira Jorge, jornalista)

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Sempre sinto atração por esse pequeno espaço: o ser humano... um ser humano. Na verdade é lá que tudo acontece. (Svetlana Aleksiévitch)

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Um prestigiado assessor do deputado Heitor Ferrer, Barros Alves, poeta e membro da Academia Cearense de Cinema (pasmem!), postou em redes sociais a afirmação de que "as mulheres de bem votaram em Bolsonaro, as vadias, não". Claro que foi afastado do cargo e responderá a processo da própria Assembleia Legislativa. Entrarei, hoje, com pedido de afastamento também da ACC. Fere, num só golpe, com a sua truculência recorrente, a poesia e o cinema. E envergonha seus pares! 

 

  


 

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O voto revela o homem

É conhecido o provérbio latino que diz: In vino veritas, que significa "no vinho está a verdade". Alude, por óbvio, ao fato de que o álcool provoca no homem a sensação de "liberdade".

Mais objetivo, todavia, seria afirmar que o provérbio, atribuído ao filósofo Caio Plínio Cecílio Segundo, mais conhecido como "Plínio, o Velho", para os romanos significava dizer que sob o efeito do álcool o homem libera suas convicções mais profundas, algo, guardadas as devidas particularidades, como a voz do inconsciente de que nos falaria Freud a partir do surgimento da psicanálise com "A interpretação dos sonhos", e que silenciamos sob o peso das conveniências as mais diversas.

Para o pai da psicanálise, "A voz do inconsciente é sutil, mas não descansa até ser ouvida". Ela se faz ouvir através dos nossos "atos falhos", como define um equívoco da fala provocada pelo desejo inconsciente reprimido. Para Freud, os atos falhos são diferentes do erro comum, pois que nenhuma ação, gesto ou palavra ocorre acidentalmente.   

Como literatura, sempre me seduziu a metáfora usada entre os profissionais da psicanálise para definir a mente como um "iceberg", posto que sua parte visível é tão-somente um pequeno pedaço de sua totalidade. A parte submersa, escondida nas águas, é sempre muito maior.

Assim é mesmo a mente humana: o consciente é apenas a parte visível, enquanto o inconsciente é a parte submersa, escondida sob as águas profundas.

No contexto de uma campanha marcada pela passionalidade, em que o ódio aflora com uma força apavorante e ficamos "cegos" (como todos, com razão, afirmam), ocorre-me lembrar que, na linha do vinho e dos atos falhos libertadores dos desejos inconscientes, o voto em alguma medida revela as nossas convicções mais íntimas, muitas vezes silenciadas pela "vergonha" de torná-las públicas.

Mais que uma escolha entre ideologias distintas, direita e esquerda, centro ou extrema, é o conteúdo do que professam nossos candidatos e a nossa identificação com eles que orientam  ---  como o vinho de Plínio ou os atos falhos de Freud  ---, as nossas opções, e que nos levam à urna para depositar nosso voto. Não o fazemos isentos de expressar, pelo voto, nossas convicções e nossos desejos, a parte escondida do iceberg.

Se voto num candidato que professa "conscientemente" a rejeição às diferenças e às minorias (mulheres, homossexuais, negros, índios etc.), que dissemina a violência como forma de intimidar o outro, fala por mim este voto  ---  e sua voz diz das minhas convicções, do meu pensamento, das minhas ideias, enfim, de tudo aquilo que defendo no íntimo do meu ser. Através dele expresso o que quero para o meu país e o meu povo, o que penso sobre direitos humanos, como a dizer a plenos pulmões: " --- Sim, sou contra negros, mulheres, homossexuais, índios. Exalto a violência e abomino a democracia. E, pasmem!, mais que tudo, sou favorável à tortura!

O voto, tanto quanto o vinho, revela o homem.  

 

 


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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em apoio a Oswaldo Barroso

A democracia está em jogo. Os interesses do povo brasileiro estão em jogo. Estão em jogo a nossa soberania e a nossa dignidade enquanto Nação. Está em jogo a nossa liberdade.

No momento em que se festejam os 30 anos da Constituição Cidadã, urge atentar para o que estabelece o seu artigo terceiro como objetivo pétreo: "Construir uma sociedade livre, justa e solidária".

Mas urge, acima de tudo, não perder de vista que essa conquista não se deu por um passe de mágica, tampouco pela benevolência dos que estiveram à frente do regime ditatorial imposto aos brasileiros com o golpe de 1964  ---  bem como aqueles que dele se beneficiaram em qualquer medida e em qualquer instância  ---  responsáveis pelo trucidamento do país e parte significativa do seu povo. 

A Constituição e o que ela representa em nome da cidadania no Brasil, são frutos do sacrifício de muitos brasileiros, gente que lutou e que, não raro, derramou seu sangue ou perdeu a própria vida para que pudéssemos viver, desde o fim da ditadura militar e a consolidação das conquistas populares em termos de direitos civis e políticos, a partir de 1985, as nossas garantias fundamentais na perspectiva de um Estado de Direito.

Nos últimos anos, por força de uma política de atenção para com os que mais necessitam, os índices de pobreza caíram significativamente e o Brasil saiu do mapa da miséria. Foram criadas 20 milhões de novas vagas no mercado de trabalho, e as portas das universidades, através de programas de incentivo como o ProUni, foram abertas para os menos favorecidos. A universidade pública cresceu e se espalhou por este imenso território. Políticas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, possibilitaram o resgate da dignidade humana de milhões de brasileiros e brasileiras.

Ingenuamente, acreditamos que fossem definitivos os avanços em termos de direitos civis, políticos e sociais no país. Ledo engano.   

É real o risco de retrocesso e dolorosamente previsíveis suas consequências.

Correm risco a democracia e o que advém dela: os direitos mais sagrados de um povo.

Muitos brasileiros estão amedrontados, e não sem motivos. 

As ameaças já não são simples ameaças, e suas consequências se fazem perceber nos atos de preconceito de raça e cultura: pessoas são hostilizadas, agredidas e, como no caso do artista popular Moa do Catendê, em Salvador, fria e covardemente assassinadas por expressarem suas convicções democráticas. Corpos são marcados a golpes de canivete com a suástica, o símbolo da intolerância nazista e dos horrores que seus seguidores apregoam.

Diante desse quadro tenebroso, o autoritarismo e seus tentáculos se propagam com uma rapidez assustadora, ganham as ruas, as instituições, os bares, restaurantes, os estádios, praças, escolas e, na contramão de tudo o que condiz com o seu nome, a própria universidade, a exemplo do que se verificou há poucos dias nos espaços da Universidade Estadual do Ceará, quando o professor Oswald Barroso foi objeto de uma repreensão, por parte de um Coordenador de Curso, pelo simples fato de que ministrava aula sobre a produção musical brasileira de protesto durante a ditadura militar. 

Para essa gente, é preciso negar a História a fim de tornar cada vez mais concreta a possibilidade de que ela se repita.

Em face de tudo isso, que se sabe uma urdidura em favor do retrocesso e do ataque frontal à democracia, em defesa do trabalho intelectual e o exercício pleno da atividade docente, vimos, por este instrumento, manifestar o nosso mais veemente repúdio à atitude do coordenador de curso da UECE ora referido, e tornar público o nosso irrestrito apoio, na pessoa do professor Oswaldo Barroso, a todos os professores, intelectuais e artistas que venham sendo cerceados em suas atividades profissionais, fora ou dentro da sala de aula.     

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O Novo Iluminismo?


Vem à luz, com o atraso de costume em se tratando de nossas melhores livrarias, o badalado O Novo Iluminismo, do canadense Steven Pinker. Chega com o charme de um livro já vitorioso, quer pelo índices de vendagem, quer pela elogiosa receptividade junto ao público mais exigente em publicações do gênero.

 

Não sem razão, pois, e visando a cumprir uma das vocações deste blog, é que me debrucei sobre o livro desde as primeiras horas de ontem, 16 de outubro de 2018, até o final de manhã desta quarta-feira 17, quando, ao final de suas 528 páginas, decido sentar à frente do computador para fazer do livro breves considerações.

 

Trata-se de um estudo vigoroso sobre o mundo contemporâneo em suas diferentes vertentes, amparado, responsavelmente, em dados que possibilitam ao autor fazer uma defesa entusiástica do que define como um novo Iluminismo, ou seja, um período em que a razão, a ciência, o progresso e o humanismo reinantes confirmam a vitória do conhecimento sobre os diferentes males da sociedade. O livro, indisfarçavelmente, como é de se esperar, apoia-se nos valores do liberalismo clássico, e constitui, por isso, um discurso intencional de apagamento das forças ideológicas que se contrapõem ao modelo de sociedade vigente.

 

Mas, por um gesto de correção intelectual, é preciso que se reconheçam as suas imensas qualidades, que vão da elegância do texto ao fôlego dos levantamentos feitos sobre os mais variados temas, como saúde, educação, igualdade de direitos, democracia, violência, relações internacionais, terrorismo, crimes de ódio, intolerância, participação política, representatividade, tecnologia, informação, enfim, uma quase completa visualização da realidade social, econômica e política mundial na atualidade.

 

O Novo Iluminismo, como deixa evidenciado o título, é um livro que surge (coincidência?) num momento em que o pensamento dos integrantes da Escola de Frankfurt parece readquirir novo prestígio nos meios acadêmicos, notadamente Walter Benjamin, Habermas e Theodor Adorno, cujas obras vêm sendo reeditadas com reconhecido sucesso, no Brasil e no mundo.

 

Na contramão do que fizeram esses pensadores, notadamente Adorno e Horkheimer, no clássico Dialética do Esclarecimento, para me referir à pedra angular das ideias centrais dos frankfurtianos, a leitura que Steven Pinker faz do Iluminismo, enquanto exigência de aplicação da razão como forma de compreender o mundo e mobilizá-lo em direção ao progresso e bem-estar humanos, é desafiadoramente positiva.

 

Para Adorno, partindo-se do pressuposto de que o Iluminismo visava, em essência, a libertar o homem do medo, levando-o a tornar-se, pela razão, ciência e técnica, senhor da realidade de fantasias e ilusões até então dominantes, o que se viu foi o contrário disso: o homem tornou-se objeto manipulável da ciência e da técnica, instrumento mesmo do que chamou de "indústria cultural" que impede o desenvolvimento da capacidade crítica das massas.

 

A visão de Steven Pinker é bem outra. Considerando o  Iluminismo atemporal, o intelectual canadense professa que o ideais da razão, da ciência, do progresso e do humanismo como forma de estabelecer o bem-estar de todos, em todos os lugares, são vitoriosos e vivemos, hoje, num mundo indiscutivelmente melhor.

 

Falta ao livro de Pinker, como se vê, uma percepção mais individualizada do que vem acontecendo em muitos países, a exemplo do que se vê no Brasil hoje, onde os valores do humanismo são deixados de lado em favor de um ideário de violência, autoritarismo, ódio aos nordestinos, à mulher e às minorias. E que tende, perigosamente, a ser legitimado pelo voto, o que será  ---  antes de tudo  ---, desumanamente trágico.   

 

 

 

  

 

  

 


 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Fascismo: Um Alerta

Acabo de ler um livro desconcertante, e lamento muito que todos não o façam num momento tão delicado de nossa história. Escrito por uma intelectual posicionada à direita do espectro político, Madeleine Albright, ex-diplomata americana nascida na antiga Tchecoslováquia, o livro intitula-se Fascismo: Um Alerta, e foi eleito best-seller número 1 pelo New York Times, em 2018.

Trata-se de um libelo de acusação ao que Albright define como uma "doutrina de raiva e medo", expressão com que abre o livro a partir de suas recordações mais traumáticas das monstruosidades do nazifascismo. Ela era, à época, 1939, a menina pequena que mal havia dominado a arte de caminhar, como diz nas primeiras linhas do livro, quando tropas alemãs invadiram a cidade de Praga iniciando o regime de terror que desencadearia na Segunda Guerra Mundial.

Fascismo: Um Alerta, como o próprio título sugere, não é, todavia, mais um livro a desfolhar os horrores do totalitarismo de direita nascido do poder de convencimento de um desajustado chamado Adolf Hitler. Antes pelo contrário, o livro tem por objetivo alertar contra os riscos que vivem países de diferentes continentes em face da onda de direita que ameaça varrer, entre outros, o Brasil, desde que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. "Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado, que estava quase sarada, diz ela, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e cutucar a cicatriz".

Albright constrói sua narrativa em bases quase socráticas: Por que a democracia está hoje "sob ataque e recuando"?  Por que tanta mobilização de esforços para se botar por terra o que se conquistou com o sangue de milhões de pessoas? Por que este abismo que separa ricos e pobres só tem aumentado e tende a continuar aumentando? Por que se têm aberto fissuras imensas entre cidade e campo, detentores de educação superior e os que não a possuem? E por que, arremata, a esta altura do século XXI, voltamos a falar de fascismo?

Reconhecendo o peso dos EUA sobre o mundo, a autora levanta a reflexão que me parece crucial: "Os Estados Unidos já tiveram presidentes imperfeitos antes; na verdade, é só o que tivemos. Mas nunca havíamos tido uma autoridade máxima no Executivo, na era moderna, cujas declarações e atos entrassem em tamanho choque com os ideais democráticos". Dialetizando, pois, com os pressupostos do capitalismo a que serviu por tantos anos (ela foi embaixadora dos EUA durante o governo de Bill Clinton), Albright enxerga o mundo como "um campo de batalha onde cada país está decidido a dominar todos os outros; onde nações competem como empreendedores imobiliários no intuito de arruinar rivais e espremer cada centavo de lucro de cada acordo".

Num rompante didático que é mesmo o eixo central do livro, Albright empenha-se em definir o que é o fascismo e em como saber identificá-lo: "O fascista é nacionalista, autoritário, antidemocrático". Referindo-se a um grupo de alunos seus num curso de pós-graduação ministrado por ela em Georgetown, Albright ecoa as palavras de alguns desses alunos para deixar ainda mais claro o perfil de um fascista e suas práticas mais comuns: "O medo é a razão de o alcance emocional do fascismo se estender a todos os níveis da sociedade. Não existe movimento político que floresça sem apoio popular, mas o fascismo depende tantos dos ricos e poderosos como do homem ou da mulher da esquina  ---  dos que têm muito a perder e dos que não têm nada".

Fascismo: Um Alerta, de Madeleine Albright, é um livro importante, sobremodo por extrapolar as fronteiras daquilo que, no espectro político, se define como esquerda, o que isenta suas motivações políticas num momento em que o mundo assiste, impotente, à agonia dos valores da democracia. É nessa perspectiva, por sinal, que a intelectual proporciona ao leitor uma análise que não dá margem à objeção ou resposta: "Enquanto uma monarquia ou ditadura militar são impostas à sociedade de cima para baixo, a energia do fascismo é alimentada por homens e mulheres abalados por uma guerra perdida, um emprego perdido, uma lembrança de humilhação ou sensação de que seu país vai de mal a pior. Quanto mais dolorosa for a origem da mágoa, mais fácil é para um líder fascista ganhar seguidores ao oferecer a perspectiva de renovação ou prometer restituir-lhes o que perderam".

Ao que acrescenta: "Para alimentar o fervor, fascistas tendem a ser agressivos e militaristas".

"Ainda mais perturbadora, afirma, é a habilidade com que regimes inescrupulosos e seus agentes espalham mentiras por websites fajutos e pelo Facebook". Para ela, "a tecnologia possibilitou que organizações extremistas erguessem câmaras de eco em apoio a teorias de conspiração, falsas narrativas e visões ignorantes sobre religião e raça". Eis o alerta de Madeleine Albright. 

 

 

 

    


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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Como morre a democracia

Encerra-se a apuração com uma surpreendente reação do PT frente às forças de ultradireita alinhadas em torno de Jair Bolsonaro. O PT vai ao segundo turno, em desvantagem, é verdade, mas com chances de reverter os números que se projetam nas muitas análises levadas a efeito pela crônica política brasileira, com raríssimas exceções merecedora de algum de respeito.

O show de canalhice da Globo, à frente os fantoches liderados pelo infame Merval Pereira, do Globonews, por exemplo, beira o que existe de mais sórdido em termos de jornalismo. Insistem em bater na tecla de que a eleição do candidato do PSL é inevitável e que o Partido dos Trabalhadores sai das eleições de 2018 reduzido a cinzas.

Quanta desfaçatez. Os idiotas não têm olhos para enxergar o que parece óbvio: o PT enfrentou no primeiro turno os mais abomináveis instrumentos de manipulação do processo, a pouca vergonha de uma STF nitidamente inclinado a atrapalhar o pleito em favor de Jair Bolsonaro, na perspectiva do que fez seguidas vezes na última semana: cancelou 3,5 milhões de títulos no Norte-Nordeste (expressivamente favorável a Fernando Haddad); impediu sem amparo legal a entrevista de Lula à Folha de S. Paulo, e usou desavergonhadamente uma delação premiada, de abril, às vésperas da eleição, com o intuito de prejudicar as candidaturas do PT na votação desse domingo.

Ainda assim, o PT elegeu a maior bancada de deputados federais, três senadores (o efeito da maracutaia ceifou Dilma Rousseff e Eduardo Suplicy, em Minas e São Paulo, respectivamente) e três governadores no primeiro turno. Fátima Bezerra, o quarto nome, deverá ser eleita no segundo turno no Rio Grande do Norte.

Não bastasse o jogo consentido de tramoias, com o Judiciário encabeçando a podridão e o cabotinismo mais rasteiro, o TSE arma um palco de indignos para tentar vender ao mundo a ideia de que o Brasil exercitou a Democracia exemplarmente bem. Como caras-pálidas? Como assim?

É ler o recomendadíssimo Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois respeitados pesquisadores de Harvard, para entender que, diferentemente do que houve antes, a democracia está sendo assassinada em dezenas de países sob os auspícios da "legalidade". Exatamente como ocorre hoje no Brasil, ou desde o golpe de 2016 para ser mais preciso, para ficar num exemplo clássico do que o cientista político Larry Diamond, citado pelos autores desse livro incontornável, define como "recessão democrática"  ---  o fim do processo contínuo de ampliação das democracias no mundo.

O que se vê no Brasil, e as eleições de ontem confirmam, é que se materializa de forma dificilmente reversível um trabalho de desconstrução dos alicerces da democracia. Tudo feito sob a forma da lei, num conluio indisfarçado envolvendo os tribunais superiores, parte significativa da imprensa e o alto baronato da Av. Paulista, da Faria Lima e adjacências.

No Brasil que se esboça com eleições de 2018, como está visível à frente de todos, a democracia está seriamente ameaçada, de modo legal, com a chancela despudorada das instituições às quais cabia salvaguardá-la. É uma vergonha! 

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Back to black

Tenho o hábito de ouvir música ao acordar. Eis que hoje, a dois dias da eleição, como que por sortilégio, pego na estante um CD de Chico Buarque: Almanaque, é como se intitula, e foi lançado em 1981. É o CD em que figura como carro-chefe o clássico Cálice, dele, Chico, e Gilberto Gil.

E vou reparando, enquanto preparo o café, no que tem a arte de sinfrônico, de sintonizador com épocas as mais diferentes: "Pai, afasta de mim este cálice, pai, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue".

Lembro de minhas aulas de literatura, ajudando os alunos a descobrir as belas metáforas, o jogo de palavras, os artifícios de que lança mão o poeta a fim de tornar possível a veiculação de sua música nos anos de chumbo, que pensávamos, até há pouco, afastado de nossa vida dali para sempre.

O cálice da letra, muito antes de ser uma referência concreta ao graal, à taça propriamente dita, expressa, sonoramente, o protesto do eu-lírico contra o silêncio que lhe é imposto pela Ditadura então vigente: "Cale-se!", a voz autoritária da censura, impedindo a liberdade de expressão e o direito de pensar livremente, diferente do estabelecido pelos tiranos de plantão.

E vem, na sequência do CD, a belíssima canção Angélica: "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento / Só queria lembrar o tormento / Que fez meu filho suspirar".

A música foi composta em homenagem a Zuzu Angel, figurinista e estilista, amiga de Chico, com quem Zuzu costumava dividir suas aflições de mãe, diante das ameaças que seu filho, Stuart Angel Jones, vinha sofrendo dos militares. A história, infelizmente, todos sabem, ou deveriam saber: Stuart, preso no quartel do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, viria a ser torturado e arrastado por um jipe militar, a boca no cano de descarga do veículo até morrer, asfixiado, aos 25 anos, em junho de 1971.

Zuzu levaria a efeito um dos movimentos mais corajosos de que se tem notícia no Brasil contra os horrores da ditadura militar. Sua voz ultrapassou fronteiras e ganhou o mundo como símbolo da indignação contra os horrores do regime implantado no país em 1964.

Mas, também ela, passaria a ser ameaçada pelas autoridades militares. A Chico Buarque, Zuzu entregaria a cópia de um bilhete com os seguintes dizeres: "Se algo vier a acontecer, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu filho".

"Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar / Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar".

Consta que o corpo de Stuart Angel Jones, nunca encontrado, teria sido atirado de um helicóptero da Marinha em alto mar.

Em 14 de maio de 1976, exatamente um ano desde que escrevera o bilhete deixado em mãos de Chico Buarque de Holanda, o carro em que Zuzu trafegava foi trancado por um desconhecido na saída do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro.

Angélica, como carinhosamente a trata Chico Buarque na sua bela canção, que escuto nesta antevéspera da eleição de 2018, perdera a batalha contra os assassinos do seu filho.