sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Farewell em grande estilo

Desde A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, para me reportar a um texto clássico, sabe-se que a arte do ator de cinema está em parte nas mãos do diretor do filme. Um enquadramento, um movimento, uma angulação de câmera etc., podem subtrair ou acrescentar ao seu desempenho, o que levou grandes estudiosos da sétima da arte a afirmar que "algumas obras-primas do cinema só acessoriamente utilizam o homem", isto é, o ator.

Segundo André Bazin, autor de O Que é o Cinema?, registros aparentemente banais podem dizer além do que é permitido ao ator numa cena fílmica: --- "Uma porta que bate, uma folha no vento, as ondas que lambem uma praia podem aceder à potência dramática [do filme]".

Polêmica à parte, o fato é que muitas vezes um grande ator ou uma grande atriz pode segurar o filme, encobrindo com a luminosidade de sua atuação as fragilidades de um roteiro, a insegurança de um diretor, o  baixo nível de sua direção de arte. Um grande ator é capaz de operar milagres e tornar inesquecíveis filmes ruins do ponto de vista cinematográfico. São numerosos os casos que poderia citar.

Digo isso a propósito de referir, com tristeza, a aposentadoria de um dos grandes atores do cinema, Daniel Day-Lewis, cujo "canto de cisne" fez-se ouvir com o filme Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson, a que assisti em sua estreia, ontem.

Não que, no caso, se trate de um filme ruim (muito pelo contrário), nem que Lewis tenha ido além do que fez em outros papéis, como Lincoln (2012), de Steven Spielberg, em sua luta tenaz pela libertação dos escravos no EUA, no filme de mesmo nome; o diretor em crise, Guido Contini, no musical Nine (2009), de Rob Marshall; o pretensioso mineiro Daniel Plainview, em Sangue Negro (2007), do próprio Thomas Anderson; o violento açougueiro The Butcher, de Gangues de Nova York (2002), de Martin Scorsese, ou o inexcedível Christy Brown, de Meu Pé Esquerdo (1989), para citar alguns dos seus melhores papéis. Não, Day-Lewis apenas reedita em Trama Fantasma o que sempre fez como ator, isto é, está perfeito em cena.

O filme não tem nada de extraordinário, embora sofisticado esteticamente falando. Tudo certinho, no que parece vir se tornando uma marca de Thomas Anderson: roteiro bem construído, estratégias narrativas clássicas, com um ou outro momento de estilização, a exemplo do "travelling" com angulações de câmera ousadas em planos de conjunto, cenário e figurinos, ritmo, tudo construído com a habilidade de um diretor competente e sensível.  Ao que se soma uma música que envolve o espectador numa atmosfera poética e sedutora do começo ao fim.

Mas de que fala Trama Fantasma?

Bem, o filme narra a história do costureiro Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), uma personagem bem elaborada do ponto de vista dramático: elegante, mas ciclotímica, obscurecida pela sombra da mãe já falecida e guiada em suas ações pela presença marcante da irmã Cyrill, notavelmente interpretada por Lesley Manville. Mas é o surgimento de Alma (Vicky Krieps), uma garçonete de restaurante de estrada, que Woodcock traz para o seu ateliê (e por quem se apaixona), quem passa a constituir o eixo dramático de Trama Fantasma, emprestando ao filme um perfume bergmaniano capaz de o redimensionar como obra de arte. Como a Alma de Persona (Bibi Andersson), o belíssimo filme de Ingmar Bergman, a Alma de Thomas Anderson revela a mesma complexidade psicológica: é doce, fria, frágil e astuciosa ao mesmo tempo. Ademais, no filme de Anderson Alma absorve o que, em Bergman, é o sonho doentio de Elizabeth Vogler, a personagem soberbamente interpretada por Liv Ullmann: o desejo de ser a própria alma do objeto amado, no caso, Woodcock.

Mas não é a simples composição da personagem, por importante que seja, que me fez lembrar de um certo Bergman ao assistir ao filme de Anderson. É que Bergman, como poucos na mesma dimensão, conseguiu explorar o tema do amor com tanta verticalidade, com sondagem psicológica em níveis tão profundos, que fez disso sua marca. Thomas Anderson nos faz lembrá-lo com estilo, sabendo tirar dos recursos de linguagem aquilo de que necessita para tratar os grandes conflitos da alma  ---  e transmiti-los com exatidão ao espectador.  

Por isso, não é sem razão que se pode dizer que é o tratamento formal dispensado ao conflito de Woodcock e Alma, ao lado da direção de atores, que faz de Trama Fantasma um filme denso, inteligente e refinado do ponto de vista estético. Como num filme de Bergman, pois, o amor é o tema central de Trama Fantasma, com a diferença de ser percebido pelo que tem de contraditório, a felicidade que se desfaz sob o peso das angústias e das frustrações.

Daniel Day-Lewis encerra, pois, sua carreira, em grande estilo. E brilha com destaque em meio a um grande elenco. 

 

 

 

 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

200 anos de Karl Marx

2018 assinala o segundo centenário de nascimento de um dos maiores pensadores de todos os tempos. Refiro-me ao alemão Karl Marx, nascido na Renânia, em 5 de maio de 1818. Na contramão do que desejam seus detratores, via de regra o que existe de mais tacanho do ponto de vista intelectual, a data vem merecendo comemoração no mundo inteiro, no bojo de publicações diversas, biografias, reedições de livros, simpósios, lançamentos de documentários e filmes etc., que vão da simples biografia do homem e do intelectual extraordinário que foi, à revisão criteriosa de sua vasta produção como o mais importante teórico do socialismo.

Em grande parte, claro, tais investidas visam a desconstruir (no mau sentido) a teoria marxista, mesmo quando disso resultam livros importantes sob muitos aspectos, a exemplo do que pretende ser "a biografia definitiva" do filósofo alemão escrita pelo inglês Gareth Stedman Jones, não sem razão apresentada com o subtítulo "Grandeza e Ilusão". Ainda assim, não há como ignorar que se trata de um estudo sério, muito embora contaminado pela doença incurável dos valores de um capitalismo em crise que, pelos menos no cariz vigente, cedo ou tarde tende a desmoronar sob o peso dos muitos males oriundos de sua própria contradição.

Nessa perspectiva, por oportuno, é que me ocorre lembrar aqui as imperdíveis leituras do marxismo materializadas em livro por outro estudioso inglês, David Harvey, cujos trabalhos vêm sendo publicados, em português, em grande escala nos últimos anos. Em meio aos muitos e notáveis títulos do autor de A Condição Pós-Moderna, e alusivos ao tema em pauta, merecem destaque os dois volumes de Para Entender Marx, publicados pelo Boitempo Editorial, com tradução de Rubens Enderle. Como o título sugere, trata-se de um criterioso guia sobre a obra máxima de Karl Marx, O Capital, com a vantagem de ir muito além do que comumente fazem os guias de leitura tradicionais.

Harvey, que, merecidamente, é considerado por muitos o mais competente intérprete vivo do marxismo, realizou com Para Entender Marx I e II uma viagem extremamente sedutora pelos fundamentos econômicos que norteiam esse livro incontornável, mas foi muito além disso. Desfazendo preconceitos, não raramente motivados por interesses estranhos ao inquestionável valor da obra, o britânico apresenta os três volumes de O Capital com a sensibilidade de um leitor atento e por demais honesto.

É possível aqui, portanto, evidenciar que Harvey lança mão das propostas teóricas de Umberto Eco, deslocando os problemas da interpretação para a relação "texto-leitor", em lugar da relação tradicional "autor-leitor", no que destaca o papel participativo deste no entendimento das teses marxistas, de resto uma questão amplamente examinada por semioticistas do naipe de Charles Sanders Peirce, Jacques-Derrida e Roland Barthes. É nisso, pois, que se estabelece o caráter atualizador da leitura realizada pelo autor do guia, de que, claramente, resulta a percepção de que Karl Marx escreveu uma obra para o seu tempo e para o futuro que se projetaria até nós.

Vai além, muito além, para demonstrar a abrangência do marxismo como método de análise, dando a ver a leveza do discurso em que pontuam filósofos, escritores, artistas e a própria sociedade como um todo. Supera, com isso, a ótica endurecida dos muitos discursos já existentes e evidencia o quanto pode ser enriquecedora a leitura de O Capital.

Mas, na hipótese de que o leitor ainda não se considere "preparado" para ler a obra-prima do marxismo, é também de David Harvey uma das publicações mais recomendáveis da safra comemorativa dos 200 anos de Karl Marx: 17 Contradições e o Fim do Capitalismo, também da Boitempo, constitui uma análise consistente das crises do capitalismo. Aqui, Harvey desmistifica o poder da inovação como uma conquista do capital e mostra que, sob o domínio da ótica capitalista, ela (a inovação) vem sendo historicamente explorada a fim de concentrar a riqueza e gerar a desigualdade.

Para o bem ou para o mal, segundo a perspectiva da esquerda e da direita, o certo é que as contribuições de Karl Marx, decorridos duzentos anos desde o seu nascimento, voltam a ocupar posição inigualável na luta em favor de um mundo mais humano e mais justo. Viva Marx!  

 

 

 

 

 

 

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Bom filme, mas ruim

 À saída do cinema, faço para o amigo César Rossas (da Academia Cearense de Cinema) o sucinto comentário sobre o badaladíssimo Eu, Tonya: --- "Bom, mas ruim!" Paradoxo à parte, é o juízo que me ocorre a propósito do filme de Graig Gillespie sobre a patinadora americana Tonya Harding, acusada de sabotar violentamente, nos anos 1990, a carreira de uma rival das pistas. 

Em que pese ousado do ponto de vista da construção narrativa, o filme sobressai mesmo é pelo desempenho do elenco, com destaque para a mais que convincente interpretação da atriz Margot Robbie no papel principal, bem como de Allison Jenney como a mãe megera da protagonista, não por acaso concorrentes as duas ao Oscar de atriz principal e coadjuvante, respectivamente. 

Vamos por partes. Graig Gillespie, que se notabilizara por assinar a direção de filmes menores, como Garota Ideal e Horas Decisivas, escolhe com desembaraço estratégias narrativas complicadas para o gênero de Eu, Tonya, um drama movido a violência e apoiado em fatos reais com nítida vocação sensacionalista. Trata-se, sabemos, de um misto genealógico delicado de ser explorado sem que se corra o risco de despencar no dramalhão xaroposo, desses que se veem aos montes. 

Não é o que se dá, como disse, no caso da produção americana em foco. Pelo contrário, Gillespie conduz com inventividade a narrativa, e joga com habilidade no campo escorregadio em que Tonya Harding literalmente se equilibra, dando-se ao luxo de proporcionar ao espectador momentos de dança com patins capazes de roubar o fôlego. 

Além disso, consegue estruturar o filme com segurança, dosando com precisão suas ambiguidades discursivas ao longo dos 120 minutos de projeção. Eu, Tonya é um exemplo clássico do que se convencionou chamar de "mockumentary", isto é, uma mistura de documentário e ficção. 

Sob esse aspecto, aliás, é notável a sequência de abertura do filme, ainda que suscite no espectador, a princípio, um certo estranhamento: é verdade ou ficção? Nada, contudo, que as sequências seguintes não esclareçam, o que conta em favor do filme na perspectiva do roteiro, muito bom, e da direção propriamente dita. 

Até aí, como está claro, Eu, Tonya é um filme acima da média em se tratando do cinema americano da atualidade. Um bom filme. Mas, a que se deve a contradição intencional do título desta coluna? Tentarei explicar. 

Apoiado num fato de repercussão mundial, como disse acima, o escândalo que envolveu a figura vitoriosa da patinadora Tonya Harding num caso de suborno violento contra Nancy Kerringan, sua concorrente, que teve um joelho esfacelado por um golpe de bastão, crime atribuído a Jeff Gillooly, com quem Harding  fora casada, o roteiro é bem construído e lida de forma bem sucedida com o desafio de apresentar artisticamente, sem ser tendencioso, assunto tão complexo e de domínio público. 

Nesse sentido, o roteirista Steven Rogers foi exemplar: deu ao espectador a oportunidade de assumir posição, o que não se pode conscientemente julgar como um tipo de omissão. Não, Rogers, no que me parece essencial como crítica à realidade, expôs a neurose americana com grande mérito. A neurótica mãe de Tonya Harding é mesmo a metáfora do americano típico. 

Sem esquecer os meios pouco republicamos com que os especialistas julgam a patinação, quase sempre movidos, como o filme deixa claramente ver, por interesses desproporcionais e injustos. Tonya, em rigor, é avaliada menos por seu talento como patinadora que por sua origem humilde, emblematicamente representada na forma como se veste para as competições. 

O lado ruim do filme, para concluir, está em Graig Gillespie expor, sem qualquer senso de medida, a violência doméstica. Pior: em explorá-la como um elemento de humor, numa espécie desnecessária e mal colocada de histrionismo apelativo e politicamente incorreto. O sangue escorre como um componente estético de mau gosto, para não falar das vezes em que minimiza a agressão física como um Sam Peckinpah da modernidade. Nesse sentido, Tarantino parece ter perdido sua posição no pódio de Hollywood.

 

 

 

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O Iago Brasileiro

Que pena um intelectual da estatura de Fernando Henrique Cardoso deixar que lhe chegue com a velhice a desfaçatez. Deplorável o que vem declarando à grande imprensa o autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina, livro de 1967 em que professa a necessidade de uma militância anti-imperialista no continente. De lá para cá, o que se viu, despudoradamente, foi o intelectual de esquerda dar lugar ao político da pior estirpe, este que considera lícito o golpe de 2016 e dá a ver, com indisfarçável cinismo, a sua satisfação com a retirada de Lula da eleição para presidente em 2018.

Diante da morte anunciada do candidato do PSDB nas urnas, FHC, agora, como um lagarto peçonhento, cospe para um lado e outro na tentativa de abocanhar o seu quinhão no processo de sucessão presidencial: --- "O estilo dele [Luciano Huck] é peessedebista. É um bom cara", afirmou, para, em seguida, telefonar a Alckmin minimizando o seu flerte com o candidato da Globo. É próprio dele afagar com as duas mãos, bater e assoprar, construir discursos ambivalentes, que carregam em si dois valores, numa tentativa desavergonhada de sair bem na foto. Até quando a tendência a atrair sobre si as atenções definirá as posições de FHC, não se sabe, mas que o ex-guevarista estará nas mídias por um bom tempo ainda, isto é certo.

Como lembra o articulista de direita Reinaldo Azevedo, em sua coluna desta sexta-feira na Folha de S. Paulo, é do feitio de FHC negociar a mãe com o diabo a fim de alcançar seus objetivos pessoais ou grupistas. Como candidato do Plano Real à Presidência, quem há de não lembrar, "buscou o apoio da 'velha política', encarnada pelo PFL, para fazer as reformas modernizadoras que a esquerda e a centro-esquerda se recusavam a apoiar". Agora é dele "a mão que balança o berço em que Huck balbucia infantilismos sobre política".

Se, há coisa de oito meses, FHC professava a necessidade de antecipação das eleições para presidente, lembra Azevedo, não faz muito considerava uma "loucura, loucura, loucura" (sic) o "Fora Temer", reeditando a dubiedade de suas propostas e, acima de tudo, de suas intenções quase sempre inconfessáveis. Age, mais uma vez, como o Iago da política brasileira, aquele personagem de Shakespeare que se imortalizou como o maior vilão da literatura mundial, cujo nome tem origem no demônio mitológico que pode significar Maldade ou Vingança.

 

 

 

 

 

 

  

 

 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Enquanto arte, é imortal

Com o basta dado por Hollywood a celebridades do porte de James Toback, Harvey Weinstein e Kevin Spacey, velhas questões voltam a ser debatidas nos meios artísticos do mundo inteiro: Vida e obra são coisas distintas? É possível separar por completo a obra de um autor da sua vida? Se esta revela práticas condenáveis, aquela deve ser também condenada? Qual a importância de sua [do autor] índole política, afetiva ou erótica em face do que nos legou intelectual ou artisticamente?

Agora, por último, vem a público outra vez o drama de Woody Allen por supostas práticas de pedofilia contra a filha adotiva Dylan Farrow, em 1992, quando ela era criança.

Acusado, pois, de ter molestado a própria filha, um dos maiores gênios do cinema contemporâneo vê-se diante da ameaça de ter contratos rescindidos e da recusa de prestigiados atores e atrizes de participar de suas próximas realizações. Além disso, alguns desses astros têm publicamente pedido desculpas a seus fãs e, em particular, a Mia Farrow, mãe de Dylan, por terem participado de filmes de Woody Allen. Foi o que fez Mila Sorvino, revelada pelo diretor em Poderosa Afrodite, por cujo papel foi premiada com o Oscar de melhor atriz. Também o prestigiado ator Colin Firth divulgou se ter distanciado do realizador do impagável Neblinas e Sombras.

Mais relevante, ainda, é o fato de que Kate Winslet, segundo rumores, tenha sido excluída da lista de indicados ao Oscar 2018 pela simples razão de ter atuado em Roda Gigante, o mais recente filme escrito e dirigido por Allen.

Timothée Chalamet e Rebeca Hall, criticados por Dylan Farrow por atuarem no novo filme do diretor nova-iorquino, ainda por ser lançado, doaram seus cachês a organizações assistenciais contra o assédio e a agressão sexual e para a Time's Up, movimento levado a efeito por Hollywood pelas mesmas razões.

Vira e mexe, tenho sido abordado por amigos e leitores sobre a matéria polêmica. Faço aqui breves considerações, que, numa perspectiva foucaultiana, tenho a consciência de ser uma mera opinião, como toda opinião, sujeita a contestações em face das quais torno evidenciado o meu irrestrito respeito.

A interpretação de uma obra, a exemplo de um romance, uma peça de teatro, uma tela, uma composição musical ou um filme, como um produto autoral, se dá, em alguma medida, a partir de sua relação com a biografia de quem lhe deu forma, tornando possível a sua fruição individual ou coletiva. Mas isso, é importante frisar, é apenas um caminho dos muitos de que se deve lançar mão a fim de compreender a verdadeira essência do objeto estético, sem esquecer que, para ser obra de arte efetivamente falando, o objeto há que ser contemplado esteticamente. E isso pressupõe, pois, penetrar seu interior, abrir portas que a revelem como uma realidade independente.

Como nos adverte Luigi Pareyson, em Os Problemas da Estética, toda arte visa à impessoalidade, porque todo artista nutre, ainda que inconscientemente, algo como uma ânsia de imortalidade, ou seja, "quer fazer alguma coisa que dure mais que ele." A obra de arte é a um só tempo pessoal e suprapessoal, "porque na individualidade vive a universalidade do espírito."

Um filme, para trazer a discussão até à figura do cineasta Wood Allen, como qualquer atividade humana, obedece a uma iniciativa pessoal, traz mesmo, consigo, a energia íntima de quem a realiza, o ser individual que busca encontrar nela a afirmação de si. Mas há um limite a ser observado, sob pena de a obra perder a sua dignidade artística para se tornar um mero espelho através do qual a imagem do artista, como homem, se fará perceber.

Entre a obra e o autor, a exemplo do que assevera Octavio Paz a propósito de Juana Inés de la Cruz, se interpõe um elemento que os separa. No caso que vimos abordando, o espectador, posto que um filme, uma vez exibido publicamente, passa a ter uma vida independente da vida do seu realizador. Nesse momento, desvinculado das mãos que lhe deram forma significante, um filme se abre, assim, para o espectador, enquanto se fecha, cada vez mais, para o seu autor.

Além disso, toda obra de arte é um produto social e histórico. Assim como é impossível separar de todo a relação entre a vida de um autor e sua obra, é um despropósito ignorar a relação que esta mantém com a sociedade, refletindo seus conflitos, suas inquietações, suas dores e suas esperanças. Mas isso não quer dizer que um filme, um poema, uma peça teatral ou um romance não tenham vida própria, e que não sejam capazes de romper com as amarras que os prendem ao mundo individual do artista e aos limites do tempo histórico dentro do qual se dão a ver como realização humana.

Até onde sei, a filmografia de Wood Allen em momento algum se deixou contaminar pelos distúrbios pessoais que se lhe vêm atribuindo, mesmo quando, como um Bergman redivivo, faz um cinema de sondagem psicológica, de discussão dos conflitos existenciais do homem, da mulher e de seus relacionamentos, bem na linha do que fez, soberbamente, em filmes menos conhecidos como Crimes e Pecados e Interiores.

Se o homem errou e deve pagar por isso, se confirmadas as graves acusações que lhe têm sido feitas (e que o tornam, nesse caso, moralmente indefensável), a obra até aqui realizada me parece digna de figurar entre as maiores do cinema de todos os tempos. E essa, por isso mesmo, haverá de se tornar imortal.