domingo, 11 de fevereiro de 2018

Bom filme, mas ruim

 À saída do cinema, faço para o amigo César Rossas (da Academia Cearense de Cinema) o sucinto comentário sobre o badaladíssimo Eu, Tonya: --- "Bom, mas ruim!" Paradoxo à parte, é o juízo que me ocorre a propósito do filme de Graig Gillespie sobre a patinadora americana Tonya Harding, acusada de sabotar violentamente, nos anos 1990, a carreira de uma rival das pistas. 

Em que pese ousado do ponto de vista da construção narrativa, o filme sobressai mesmo é pelo desempenho do elenco, com destaque para a mais que convincente interpretação da atriz Margot Robbie no papel principal, bem como de Allison Jenney como a mãe megera da protagonista, não por acaso concorrentes as duas ao Oscar de atriz principal e coadjuvante, respectivamente. 

Vamos por partes. Graig Gillespie, que se notabilizara por assinar a direção de filmes menores, como Garota Ideal e Horas Decisivas, escolhe com desembaraço estratégias narrativas complicadas para o gênero de Eu, Tonya, um drama movido a violência e apoiado em fatos reais com nítida vocação sensacionalista. Trata-se, sabemos, de um misto genealógico delicado de ser explorado sem que se corra o risco de despencar no dramalhão xaroposo, desses que se veem aos montes. 

Não é o que se dá, como disse, no caso da produção americana em foco. Pelo contrário, Gillespie conduz com inventividade a narrativa, e joga com habilidade no campo escorregadio em que Tonya Harding literalmente se equilibra, dando-se ao luxo de proporcionar ao espectador momentos de dança com patins capazes de roubar o fôlego. 

Além disso, consegue estruturar o filme com segurança, dosando com precisão suas ambiguidades discursivas ao longo dos 120 minutos de projeção. Eu, Tonya é um exemplo clássico do que se convencionou chamar de "mockumentary", isto é, uma mistura de documentário e ficção. 

Sob esse aspecto, aliás, é notável a sequência de abertura do filme, ainda que suscite no espectador, a princípio, um certo estranhamento: é verdade ou ficção? Nada, contudo, que as sequências seguintes não esclareçam, o que conta em favor do filme na perspectiva do roteiro, muito bom, e da direção propriamente dita. 

Até aí, como está claro, Eu, Tonya é um filme acima da média em se tratando do cinema americano da atualidade. Um bom filme. Mas, a que se deve a contradição intencional do título desta coluna? Tentarei explicar. 

Apoiado num fato de repercussão mundial, como disse acima, o escândalo que envolveu a figura vitoriosa da patinadora Tonya Harding num caso de suborno violento contra Nancy Kerringan, sua concorrente, que teve um joelho esfacelado por um golpe de bastão, crime atribuído a Jeff Gillooly, com quem Harding  fora casada, o roteiro é bem construído e lida de forma bem sucedida com o desafio de apresentar artisticamente, sem ser tendencioso, assunto tão complexo e de domínio público. 

Nesse sentido, o roteirista Steven Rogers foi exemplar: deu ao espectador a oportunidade de assumir posição, o que não se pode conscientemente julgar como um tipo de omissão. Não, Rogers, no que me parece essencial como crítica à realidade, expôs a neurose americana com grande mérito. A neurótica mãe de Tonya Harding é mesmo a metáfora do americano típico. 

Sem esquecer os meios pouco republicamos com que os especialistas julgam a patinação, quase sempre movidos, como o filme deixa claramente ver, por interesses desproporcionais e injustos. Tonya, em rigor, é avaliada menos por seu talento como patinadora que por sua origem humilde, emblematicamente representada na forma como se veste para as competições. 

O lado ruim do filme, para concluir, está em Graig Gillespie expor, sem qualquer senso de medida, a violência doméstica. Pior: em explorá-la como um elemento de humor, numa espécie desnecessária e mal colocada de histrionismo apelativo e politicamente incorreto. O sangue escorre como um componente estético de mau gosto, para não falar das vezes em que minimiza a agressão física como um Sam Peckinpah da modernidade. Nesse sentido, Tarantino parece ter perdido sua posição no pódio de Hollywood.

 

 

 

 

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