Com o basta dado por Hollywood a celebridades do porte de James Toback, Harvey Weinstein e Kevin Spacey, velhas questões voltam a ser debatidas nos meios artísticos do mundo inteiro: Vida e obra são coisas distintas? É possível separar por completo a obra de um autor da sua vida? Se esta revela práticas condenáveis, aquela deve ser também condenada? Qual a importância de sua [do autor] índole política, afetiva ou erótica em face do que nos legou intelectual ou artisticamente?
Agora, por último, vem a público outra vez o drama de Woody Allen por supostas práticas de pedofilia contra a filha adotiva Dylan Farrow, em 1992, quando ela era criança.
Acusado, pois, de ter molestado a própria filha, um dos maiores gênios do cinema contemporâneo vê-se diante da ameaça de ter contratos rescindidos e da recusa de prestigiados atores e atrizes de participar de suas próximas realizações. Além disso, alguns desses astros têm publicamente pedido desculpas a seus fãs e, em particular, a Mia Farrow, mãe de Dylan, por terem participado de filmes de Woody Allen. Foi o que fez Mila Sorvino, revelada pelo diretor em Poderosa Afrodite, por cujo papel foi premiada com o Oscar de melhor atriz. Também o prestigiado ator Colin Firth divulgou se ter distanciado do realizador do impagável Neblinas e Sombras.
Mais relevante, ainda, é o fato de que Kate Winslet, segundo rumores, tenha sido excluída da lista de indicados ao Oscar 2018 pela simples razão de ter atuado em Roda Gigante, o mais recente filme escrito e dirigido por Allen.
Timothée Chalamet e Rebeca Hall, criticados por Dylan Farrow por atuarem no novo filme do diretor nova-iorquino, ainda por ser lançado, doaram seus cachês a organizações assistenciais contra o assédio e a agressão sexual e para a Time's Up, movimento levado a efeito por Hollywood pelas mesmas razões.
Vira e mexe, tenho sido abordado por amigos e leitores sobre a matéria polêmica. Faço aqui breves considerações, que, numa perspectiva foucaultiana, tenho a consciência de ser uma mera opinião, como toda opinião, sujeita a contestações em face das quais torno evidenciado o meu irrestrito respeito.
A interpretação de uma obra, a exemplo de um romance, uma peça de teatro, uma tela, uma composição musical ou um filme, como um produto autoral, se dá, em alguma medida, a partir de sua relação com a biografia de quem lhe deu forma, tornando possível a sua fruição individual ou coletiva. Mas isso, é importante frisar, é apenas um caminho dos muitos de que se deve lançar mão a fim de compreender a verdadeira essência do objeto estético, sem esquecer que, para ser obra de arte efetivamente falando, o objeto há que ser contemplado esteticamente. E isso pressupõe, pois, penetrar seu interior, abrir portas que a revelem como uma realidade independente.
Como nos adverte Luigi Pareyson, em Os Problemas da Estética, toda arte visa à impessoalidade, porque todo artista nutre, ainda que inconscientemente, algo como uma ânsia de imortalidade, ou seja, "quer fazer alguma coisa que dure mais que ele." A obra de arte é a um só tempo pessoal e suprapessoal, "porque na individualidade vive a universalidade do espírito."
Um filme, para trazer a discussão até à figura do cineasta Wood Allen, como qualquer atividade humana, obedece a uma iniciativa pessoal, traz mesmo, consigo, a energia íntima de quem a realiza, o ser individual que busca encontrar nela a afirmação de si. Mas há um limite a ser observado, sob pena de a obra perder a sua dignidade artística para se tornar um mero espelho através do qual a imagem do artista, como homem, se fará perceber.
Entre a obra e o autor, a exemplo do que assevera Octavio Paz a propósito de Juana Inés de la Cruz, se interpõe um elemento que os separa. No caso que vimos abordando, o espectador, posto que um filme, uma vez exibido publicamente, passa a ter uma vida independente da vida do seu realizador. Nesse momento, desvinculado das mãos que lhe deram forma significante, um filme se abre, assim, para o espectador, enquanto se fecha, cada vez mais, para o seu autor.
Além disso, toda obra de arte é um produto social e histórico. Assim como é impossível separar de todo a relação entre a vida de um autor e sua obra, é um despropósito ignorar a relação que esta mantém com a sociedade, refletindo seus conflitos, suas inquietações, suas dores e suas esperanças. Mas isso não quer dizer que um filme, um poema, uma peça teatral ou um romance não tenham vida própria, e que não sejam capazes de romper com as amarras que os prendem ao mundo individual do artista e aos limites do tempo histórico dentro do qual se dão a ver como realização humana.
Até onde sei, a filmografia de Wood Allen em momento algum se deixou contaminar pelos distúrbios pessoais que se lhe vêm atribuindo, mesmo quando, como um Bergman redivivo, faz um cinema de sondagem psicológica, de discussão dos conflitos existenciais do homem, da mulher e de seus relacionamentos, bem na linha do que fez, soberbamente, em filmes menos conhecidos como Crimes e Pecados e Interiores.
Se o homem errou e deve pagar por isso, se confirmadas as graves acusações que lhe têm sido feitas (e que o tornam, nesse caso, moralmente indefensável), a obra até aqui realizada me parece digna de figurar entre as maiores do cinema de todos os tempos. E essa, por isso mesmo, haverá de se tornar imortal.
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